Refugiados e imigrantes denunciam xenofobia no sistema público de saúde durante pandemia
Quando levados em conta os 953 casos e as 715 mortes por Covid-19 até julho, letalidade no grupo é de 75%, mas há problema de registro
atualizado
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É comum dizer que o Brasil viveu pandemias diferentes. A pandemia dos pobres e a dos ricos. As diferenças de abordagem, recursos e números de casos e mortes dependem do bairro, estado ou município. Há tantas pandemias quanto são as realidades do país, e uma delas é a dos imigrantes e refugiados. Segundo dados do Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra), do Ministério da Justiça, entre 2011 e 2018, 774,2 mil deles foram registrados no país. Qual pandemia essas pessoas viveram no país que adotaram, longe de seus lugares de origem? Por enquanto, não se sabe com segurança.
Desde o início da pandemia, entidades representativas de imigrantes e refugiados tentam obter informações sobre como a Covid-19 impactou essa população, que muitas vezes vive em situação de extrema vulnerabilidade. A primeira resposta oficial do Ministério da Saúde chegou somente em agosto, cinco meses após o anúncio das primeiras medidas sanitárias emergenciais.
Após interpelação do Projeto de Promoção dos Direitos dos Migrantes (ProMigra), o órgão informou que, até 30 de julho, houve 2.950 notificações de infecções pelo novo coronavírus em estrangeiros no Sistema e-SUS VE, cujos formulários contêm o campo nacionalidade. Dentre esses registros, 953 se transformaram em casos confirmados, seja por teste ou critério clínico epidemiológico.
No entanto, quando se trata de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), cujo monitoramento ajuda a avaliar a subnotificação do novo coronavírus, o formulário epidemiológico não possui campo de identificação para estrangeiros. Segundo o ministério, na ficha existe apenas lugar para identificar o país de origem, marcado quando a pessoa reside fora do Brasil.
Mesmo assim, usando os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), o Ministério da Saúde divulgou números sobre as mortes por Covid-19 e SRAG entre imigrantes e refugiados, filtrando do total de formulários os que contêm o campo nacionalidade e excluindo os marcados como brasileiros e os deixados em branco. A partir dessa aproximação, foram computadas 715 mortes de estrangeiros nas quais houve confirmação de Covid-19 e 289 óbitos por SRAG até o fim de julho.
Para quem lida com a situação, no entanto, esses números estão longe de refletir a realidade. Um dos motivos é que as ferramentas do sistema de saúde não foram desenhadas (nem os agentes de saúde treinados) para detectar os imigrantes e refugiados.
“No e-SUS VE, por exemplo, tem a variável estrangeiro, mas ela só aparece quando a pessoa que está preenchendo não coloca o CPF. Todos os imigrantes e refugiados no Brasil com a situação regularizada têm CPF. O agente público entrevistando o paciente leva o CPF em consideração e acaba informando casos de estrangeiros como brasileiros”, explica o sanitarista haitiano James Lalane, pesquisador do programa de pós-graduação em Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados (Rede).
Nos meses iniciais da pandemia, James trabalhou como voluntário na área de vigilância epidemiológica no Hospital das Clínicas da USP, atuando justamente no preenchimento de formulários. Ao notar que imigrantes e refugiados atendidos no hospital muitas vezes não eram assim computados no sistema, escreveu uma nota técnica solicitando mudanças nos campos dos documentos de atendimento, enviada ao Ministério da Saúde no dia 6 de maio. Segundo ele, o órgão nunca respondeu.
A adequação dos formulários não é a única questão. Segundo Alexandre Branco Pereira, coordenador da Rede, os dados divulgados pelo Ministério da Saúde são problemáticos porque implicariam uma mortalidade altíssima. Quando levados em conta os 953 casos e as 715 mortes confirmadas por Covid-19 até julho, a taxa de letalidade seria de 75%. Em agosto, para se ter uma ideia, a letalidade do vírus no Brasil estava em 3,4%.
A psicóloga Berenice Young-Rabines, da Missão Paz, instituição católica de apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados em São Paulo, também vê os dados com ceticismo. “É uma lista com números muito pouco prováveis. A desculpa é que o país tem tantos problemas, há tantas coisas a atender, quem vai se ocupar disso? Novamente, os imigrantes estão sendo invisibilizados. Se deixarmos assim, não seremos parte da história quando a história for contada”, afirma.
Dados confiáveis sobre a incidência da Covid-19 entre imigrantes e refugiados ajudariam a traçar políticas adequadas de prevenção e atendimento a essa população, levando em consideração diferenças culturais e linguísticas. “Os imigrantes estão sendo atendidos como brasileiros, e sabemos que eles têm uma cultura de cuidado diferente daquela dos brasileiros”, afirma James Lalane, que defende a criação de uma coordenadoria de saúde para imigrantes e refugiados no país.
O Metrópoles entrou em contato com o Ministério da Saúde solicitando atualização dos dados sobre a incidência do novo coronavírus entre imigrantes e refugiados após o mês de julho. Apresentou, ainda, os questionamentos feitos pela Rede em relação aos números já divulgados, pedindo um posicionamento. Solicitou também entrevista com um representante da pasta sobre o tema. Por meio de sua assessoria de comunicação, o ministério apenas informou que não dispõe dos dados com o recorte da população de imigrantes e refugiados.
A reportagem ainda procurou a Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) com o intuito de saber o que foi feito para atender essa população durante a pandemia. Segundo Luiz Godinho, porta-voz da Acnur no Brasil, além de doações para o hospital de campanha de Boa Vista (RR), a agência divulgou medidas de higiene e prevenção traduzidas para diversas línguas, tanto por meio de grupos de WhatsApp quanto de banners posicionados em abrigos de refugiados. Além disso, lançou a plataforma Help Acnur, para doações e divulgação de orientações sobre a Covid-19.
“Eu vejo aqui como uma outra guerra”
Os imigrantes e refugiados têm acesso garantido ao Sistema Único de Saúde (SUS) com base no direito universal à saúde, previsto na Constituição Federal, e, mais recentemente, segundo a Lei n° 13.445/2017, a nova Lei de Imigração. Mas, na prática, os relatos de quem precisa recorrer à saúde pública são de dificuldade de acesso, devido à barreira da língua, falta de orientação aos agentes públicos e até episódios de preconceito explícito.
Vivendo em São Paulo desde 2014, o refugiado sírio Abdulbaset Jarour trouxe a mãe e a irmã para morarem com ele em 2018. Neste ano, enquanto os brasileiros estavam apreensivos com as notícias da pandemia no país, ele corria para regularizar o passaporte da mãe, Khdouj Makzum. Ela e a filha não tinham se adaptado bem ao Brasil e decidiram viver em Beirute, no Líbano. A filha embarcou no fim de fevereiro e a mãe iria encontrá-la assim que o passaporte fosse renovado. A Síria, de onde a família veio, sofre com uma guerra civil desde 2011.
Como era diabética e hipertensa, Khdouj fazia acompanhamento médico no Brasil. Abdul, como Abdulbaset é chamado pelos amigos, acredita que a mãe foi contaminada pela Covid-19 no hospital do bairro da Lapa, onde se tratava. Com dor no corpo e falta de ar, ela procurou o hospital mas recebeu medicação, soro e foi mandada para casa. No entanto continuava piorando. Após a saturação de oxigênio no sangue cair abaixo de 90%, Abdul foi orientado a levá-la ao pronto-socorro, onde uma radiografia indicou comprometimento do pulmão. Diagnosticada com Covid-19, ela foi transferida para o Hospital das Clínicas, onde morreu em 13 de maio.
“Temos o direito a usar o serviço público, mas os funcionários são pessoas que não estão preparadas para atender imigrantes e refugiados. E alguns tinham xenofobia. Onde minha mãe estava internada, fomos bem atendidos. Mas ela usava roupa preta, véu. Você vê o olhar do preconceito. Eu vejo o Brasil como uma outra guerra. É uma guerra política. É uma guerra do crime. Aqui não tem segurança. Só Deus”, afirma o refugiado sírio, que é produtor de eventos e vice-presidente da organização não governamental (ONG) para imigrantes África do Coração.
O empresário Patrick Akon, do Haiti, também teve Covid-19 e foi internado em São Paulo. No início, quando começou a perder olfato e paladar, se isolou da esposa e do filho em casa. Dois dias depois, sentiu-se fraco e com dificuldades para respirar. A esposa chamou o Samu, que não apareceu. Então, levou Akon para o hospital no carro da irmã. Após cerca de uma semana internado, ele teve alta. Mas não se esqueceu do que viveu.
“Senti que eu era diferente, que alguns médicos tinham medo. Alguns eram ‘da hora’, vinham falar comigo, e outros não estavam querendo mexer em mim. Essa questão do racismo é muito forte no Brasil. Se fosse um francês, um americano, seria diferente. O tratamento entre mim e os brancos que tinham Covid era diferente. E isso dói, dói muito”, diz.