Rede de apoio a prostitutas arrecadou meio milhão de reais para auxiliar vítimas da pandemia
A Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais buscou doações até fora do Brasil para garantir o sustento de centenas de famílias
atualizado
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Profissionais do sexo estão entre as categorias que tiveram redução de renda durante a pandemia, diante das recomendações de isolamento social. A Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS) mobilizou empresários, organizações não governamentais (ONGs) e voluntários em nove estados brasileiros e até na Europa, para garantir alimentação e proteção a esse público, majoritariamente feminino.
A central reúne nove associações e dois coletivos representantes dessas profissionais. Desde março, quando se iniciaram as restrições referentes ao coronavírus no Brasil, eles organizaram lives, campanhas em redes sociais, vaquinhas e buscaram auxílio fora do Brasil. Como resultado da mobilização, foram arrecadados cerca de R$ 500 mil, que passaram pela conta da CUTS e foram destinados a essas mulheres e suas famílias. A maior parte do recurso foi doada em euros pela RedTrasex, uma associação internacional de apoio a trabalhadoras do sexo à qual a CUTS é filiada.
“Na primeira onda, a gente conseguiu tirar essas mulheres da rua, garantir cesta básica, pagar água, luz e fornecer outras doações como roupas e calçados para elas e seus filhos. Agora, a situação está ficando cada vez mais difícil, então iniciamos uma redução de danos”, explica Célia Gomes, presidente da CUTS e da Associação de Prostitutas do Estado do Piauí, que tem 800 mulheres cadastradas.
A CUTS completou cinco anos de existência neste mês. Nasceu da necessidade de fazer com que as demandas dessas pessoas sejam ouvidas. “Somos uma central que começou no Nordeste e hoje abraça quase todas as regiões do Brasil. Estamos em constante diálogo para que ninguém solte a mão de ninguém, pois travamos brigas diversas contra uma sociedade e governos preconceituosos”, afirma Célia.
A ONG participa de editais na área de saúde, direitos humanos, habitação, cultura e assistência social. Em 2020, um ano atípico, precisou deixar de lado atividades como rodas de conversa e trabalhos de prevenção ao HIV, por exemplo, para se dedicar ao socorro das vítimas do coronavírus.
Não há números oficiais sobre quantas trabalhadoras do sexo foram infectadas ou perderam a vida devido à Covid-19. As associações que formam a CUTS prestaram auxílio a pelo menos 10 famílias de mulheres que morreram infectadas pelo vírus durante a pandemia. Foram casos em Sergipe, Minas Gerais, Manaus, Piauí e Brasília.
“Sempre estivemos vulneráveis, ficamos mais ainda. Não existiu nenhum apoio do governo. Não foi pensada nenhuma política para a gente. Agora, na segunda onda, está muito difícil segurar esse público fora do mercado de trabalho presencial. Orientamos a ter cuidados: trabalhadora sexual não beija na boca! Use máscara, peça ao parceiro para que use também”, orienta Célia.
Os nove estados que fazem parte da CUTS organizaram distribuição de máscaras, preservativos e álcool em gel. No DF, a ONG Tulipas do Cerrado elaborou uma cartilha com informações sobre proteção, saúde mental e fake news para as trabalhadoras do sexo.
A CUTS recebeu pedidos de ajuda de mulheres de todo o país, em especial da região Nordeste, diante de dificuldades para acessar benefícios como o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial durante a pandemia. As famílias que não conseguiram esse apoio do Estado tiveram preferência nas ações da ONG, que fortaleceu sua articulação nacional durante esse período.
“Nós fizemos muito mais do que podíamos. Nós nos organizamos: o estado que recebeu mais ajuda enviou para o que mais precisava. Foi uma grande rede de apoio formada por essas mulheres”, descreve Célia.
Uma das maiores conquistas da CUTS foi associar-se à RedTrasex, uma rede internacional de prostitutas. A ONG também recebeu apoio do Fundo Elas, do Fundo Brasil e de diversas empresas. “Nosso maior desafio é fazer com que a profissão seja considerada um trabalho a ser respeitado como outro qualquer, visto pelos governantes de outra maneira”, reivindica.
A gente quer ser incluída como todas as mulheres, em todos os sindicatos, associações. Queremos ter o nosso direito também garantido
Célia Gomes
História de vida
Aos 54 anos, Célia Gomes não trabalha mais como prostituta. Atualmente, é dona de um bar em Teresina (PI). Após um casamento “muito ruim”, como ela mesma descreve, precisou mudar-se da terra natal, o Maranhão, e foi para o Pará, onde não conseguiu trabalho. “Fui parar no bordel e trabalhei com sexo, até que conheci meu marido, construí uma família e parei”, lembra.
“Quando eu comecei, era muito esquisito. Não tinha ninguém que nos ensinasse a fazer uma prevenção, não existia nem preservativo. Naquele tempo não se infectou com HIV quem teve sorte. Havia muita violência também, muito mais que hoje”, relata.
Célia acredita que trabalhos de ONGs e associações são essenciais para diminuir a violência e levar informação às mulheres que trabalham no setor. “Há quem tenha entrado nessa vida por falta de opção, há quem ache divertido. Nosso papel é buscar melhor qualidade de trabalho e de vida.”
Célia é viúva há 3 anos e tem duas filhas; também tornou-se avó. “Minha família sabe do meu passado, nunca tive vergonha, não fiz nada de errado, tudo que fiz foi trabalhar. As trabalhadoras não devem ter medo de mostrar a cara.”