“Quero ver filha de diarista em Cambridge”, diz aluna que faz vaquinha para estudar na Inglaterra
Kelly Cristina, 17 anos, do Colégio Pedro II (RJ), passou em concorrida seleção de universidade para curso de verão sobre liderança feminina
atualizado
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Quando deseja viajar, Kelly Cristina Nogueira de Araújo, 17 anos, embarca na magia dos livros. Nascida na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ela, que nunca andou de avião, mergulha no universo de Harry Potter enquanto fantasia conhecer outros cenários para a vida. Em 21 de janeiro, o sonho se aproximou da realidade quando recebeu uma carta de aceitação, com oferta de bolsa, em um curso de verão na universidade de Cambridge, na Inglaterra, uma das melhores e mais antigas instituições de ensino do mundo.
A universidade selecionou a brasileira entre centenas de concorrentes do mundo inteiro para o curso de versão sobre lideranças femininas, o Female Future Leaders, com duração de duas semanas, em julho de 2021. Ela escreveu uma redação sobre elitismo na literatura, que chamou a atenção de um exigente comitê de seleção.
A bolsa, porém, não custeia o total das despesas em libras esterlinas — uma libra custa quase R$ 8 reais. A família de Kelly não teria condições de bancar nem mesmo as passagens de avião até a Inglaterra. Por isso, a adolescente começou um financiamento coletivo no site Vakinha.
A meta é conseguir cerca de 5.120 libras (R$ 40 mil) para bancar alimentação, passagens, passaporte e parte da taxa de inscrição. Kelly havia conseguido R$ 4.835 até esta quarta-feira. Ela tem até 5 de março para confirmar a sua inscrição e pagar pela matrícula.
A mãe de Kelly, Osana Nogueira, 54, trabalha como empregada doméstica desde os 15 anos. Ela saiu de Minas Gerais em busca de emprego no Rio de Janeiro. No estado fluminense, conheceu o pedreiro pernambucano José de Araújo, 50, que começou a trabalhar aos 16 na construção civil. Juntos, eles tiveram Kelly.
Os dois desejam um futuro com mais possibilidades de escolha para a filha única do casal. “Os meus pais batalham desde cedo e fizeram de tudo por mim. São o meu maior exemplo, a minha referência. A história deles ilustra para mim como funciona a nossa sociedade, explica a nossa condição financeira. Eles trabalham muito, mas não têm mobilidade social”, ressalta a jovem.
Foi a patroa de Osana, que Kelly chama de avó, quem pagou os estudos da menina no ensino fundamental e um curso de inglês. No ensino médio, em 2019, Kelly candidatou-se para uma vaga no Colégio Pedro II, na unidade de Realengo, e passou na prova com boa colocação. A escola pública é uma das mais respeitadas do país e tem um concorrido processo seletivo. Fundado em 2 de dezembro de 1837, o colégio tem entre ex-alunos nomes como Fernanda Montenegro, Luiz Fux, Fátima Bernardes, Lima Barreto, Noel Rosa e Mr. Catra.
“Entrar no Pedro II foi transformador. Você vê milhares de mundos em um lugar só. Além do ensino e das oportunidades, você tem diversidade, e isso ampliou as minhas ambições. Eu não sabia o que eu podia fazer”, lembra. Em 2019, Kelly viu colegas se inscreverem para os cursos de verão em Cambridge e começou a se planejar para a próxima edição. Teve ajuda de uma professora para revisar a redação e mandou a inscrição em 2020, sem botar muita fé na aprovação. O e-mail com a boa surpresa chegou cerca de 30 dias depois.
“A viagem mais longa que já fiz foi de ônibus, para Minas Gerais. Nunca tinha pensado que seria possível ter uma experiência fora do país. Isso abriria muitas portas e os meus horizontes como mulher e como profissional”, assinala a adolescente.
Em Cambridge, Kelly não escolheu o curso de liderança feminina por acaso. Em 2018, na época das eleições nacionais, ela viu despertar um interesse maior por política e sociologia. “Comecei a me perguntar como as eleições iam mexer com a minha vida diretamente, com a vida da minha família. Estudei política, história e sociologia. A minha mãe é diarista, mulher negra. A partir do momento que passei a entender sobre essas coisas, comecei a ter melhor compreensão do mundo”, relata.
Além dos pais, Kelly tem como inspiração a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, a filósofa e ativista antirracista Angela Davis e a atriz Viola Davis. “Desde que abri os meus olhos para quem foi Marielle, e infelizmente ela já tinha sido morta, eu passei a admirá-la muito”, frisa.
Em seu último discurso antes de morrer por tiros de submetralhadora, na noite de 14 de março de 2018, Marielle Franco havia participado do debate “Jovens Negras Movendo as Estruturas”. Na ocasião, a então vereadora contou que, ao entrar na faculdade, só havia ela e mais uma mulher negra no curso de Ciências Sociais da PUC.
Também relembrou o curso pré-vestibular comunitário feito na favela da Maré. “Demorei a entender que aquele lugar também era meu. Eu não tinha autoidentificação, nem o lugar da mulher negra favelada. Essa é uma construção que vai se formando”, disse. Até o momento, quase dois anos depois do crime, os responsáveis por mandar matar Marielle Franco não foram apontados.
Assim como defendia Marielle, Kelly acredita na educação como instrumento de transformação social. A jovem deseja ser a primeira pessoa em sua família a cursar uma universidade – ela está em dúvida entre geografia e serviço social. “Nesse percurso, eu ainda não digeri completamente o que significa ir para Cambridge. Por mais que eu não tenha conseguido o dinheiro, só a possibilidade de ir já muda tudo.”
O curso
A Universidade de Cambridge é a segunda mais antiga em língua inglesa do mundo, atrás apenas de Oxford. Estudiosos como Isaac Newton e Charles Darwin passaram por ali. O curso de verão oferece a jovens mulheres entre 16 e 18 anos uma “exploração multidisciplinar de liderança para mulheres jovens engajadas e motivadas”. O programa abrange uma variedade de temas: ciência, tecnologia, engenharia, matemática e negócios.
“Ao longo de duas semanas, você explorará uma ampla gama de assuntos de nível universitário, destinados a apoiar as jovens a desenvolver a confiança e as habilidades de futuras líderes. Você descobrirá assuntos como política, negócios, direito e ciência, por meio de uma série de palestras e workshops interativos que são projetados para promover sua paixão pelo aprendizado e desenvolver suas habilidades de liderança”, diz o programa.
Entre as professoras, estão ex-atletas olímpicas medalhistas de ouro, neurocientistas, consultoras em carreira e outras profissionais de renome internacional.
Serviço
A vaquinha para ajudar Kelly a estudar em Cambridge pode ser acessada aqui.