“Quero me sentir realizada”, diz 1ª trans eleita para conselho da OAB
Pioneirismo da advogada Amanda Souto também inclui passagem pela presidência da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-GO
atualizado
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Goiânia – A advogada goiana Amanda Souto Baliza, de 30 anos, foi a primeira jurista trans eleita como conselheira seccional em todo o sistema da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). E o pioneirismo não para por aí, ela também foi a primeira mulher trans a presidir uma comissão da entidade, além da primeira a retificar o registro civil junto à seccional de Goiás, deixando o nome que recebeu ao nascer definitivamente no passado.
Do nascimento no interior de Goiás, até a posse como conselheira da seccional para o triênio 2022/2024, Amanda enfrentou diversas situações a princípio desafiadoras, porém, dando a volta por cima, vencendo uma a uma. Com planos para ampliar a atuação na defesa dos direitos humanos, a advogada está construindo uma trajetória de sucesso e superação.
“Quero me sentir extremamente realizada e sinto que estou no caminho”, disse ela ao Metrópoles, resumindo seus planos.
Caminho na advocacia
Amanda contou que o caminho entre o início da atuação profissional e a chegada ao conselho foi longo. Ela relata que se formou bem jovem, aos 21 anos, após ingressar na faculdade de direito aos 16 anos, em Anápolis, a 55 km de Goiânia. Ela afirmou que logo após a formatura já começou a trabalhar na área, sempre como advogada contratada em escritórios.
De acordo com ela, nunca havia sofrido preconceitos, no entanto, a situação mudou quando começou a transição sexual, em 2018. “Não posso afirmar que foi por isso [transição], mas o timing foi muito esquisito”, conta ela sobre uma demissão, durante esse processo. Segundo a advogada, foi uma época bastante difícil, em que tinha dificuldade em relação a empregabilidade e a recolocação no mercado de trabalho.
Foi justamente nesse período em que Amanda viveu a situação mais marcante, segundo ela, “constrangedora”. “Sempre conto essa história porque me marcou muito. Eu mandei meu currículo para uma empresa que gostaria de trabalhar, um local com jurídico grande, que atuava em áreas que eu gosto, e quando a responsável do RH me ligou, pedindo para falar com a Amanda, eu respondi que era eu, ao ouvir minha voz, ela desligou o telefone”, relembra.
A jurista conta que apesar do momento difícil, isso lhe deu um “click” de que seria necessário diversificar as formas de atuação.
Apesar das complicações da pandemia, Amanda relatou ao portal que foi nesse momento que conseguiu dar a volta por cima. “2018 e 2019 foram anos muito difíceis, fiquei desempregada, sem renda, minhas reservas acabaram. Com isso, comecei a frequentar, como membra, da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero e isso me despertou o interesse em criar algo voltado ao público LGBTI+”, conta.
Ela explica que procurou pessoas do movimento em Goiânia. “Como estávamos naquele momento inicial da pandemia, com tudo on-line, consegui acessar pessoas que talvez, por outro modo, eu não teria espaço. Entrei em contato com a Aliança Nacional LGBTI, fui inserida no jurídico e já comecei a me integrar”, explica.
Ela salienta que, no início, a atividade sequer era remunerada. “Mas fui ganhando experiência, fui aprendendo sobre os direitos e quando já estava com uma atuação mais consolidada, a presidente da comissão da OAB-GO recebeu uma proposta de emprego em Recife (PE) e eu fui nomeada. Assumi a comissão nesse contexto, as coisas foram melhorando e consegui espaço para atuar também na Aliança, onde atualmente sou coordenadora jurídica”, detalha.
Ela salienta o quanto a experiência foi positiva. “Mudou a gestão da OAB-GO, então saí da presidência da comissão e tomei posse como conselheira. Fizemos diversas parcerias com a sociedade civil, com órgãos do poder público, campanhas de doação de sangue, apoiamos a criação do grupo especializado no atendimento às vítimas de racismo e intolerância, tivemos uma atuação nesse sentido e também no sentido de capacitação para a advocacia que queira aprender sobre essa área”, disse ela, orgulhosa do trabalho desenvolvido.
Preconceitos
Sobre situações preconceituosas, principalmente na área da advocacia, a jurista aponta que eram mais frequentes. “Hoje quando acontece é de forma mais velada”, relata. Mas Amanda ressalta que de todas as ocasiões, a que mais marcou foi a da entrevista de emprego. “A partir desse momento eu mudei a minha forma de pensar”.
“Me recordo que antes de mudar os documentos eu tinha muito medo de situações de constrangimento. muitas vezes estava de vestido, por exemplo, eu colocava o terno por cima, fazia a audiência, chegava no carro, deixava o terno e ia viver a vida”, ressalta Amanda.
A advogada entende que as coisas foram melhorando com o tempo. “Não tenho mais o receio que tinha antes. Os velados são mais presentes, olhares tortos, até mesmo a forma de comunicação. Já aconteceu na internet, por exemplo, um colega advogado se referia a uma advogada como sra., para mim ele usava sr. (a), são coisas sutis, só quem ofende e quem é ofendido é capaz de perceber”, explica.
Ela também destaca que, desde a transição, não conseguir restabelecer os mesmo patamares financeiros que recebia. Para o futuro, o objetivo é ampliar o trabalho com os direito humanos. “Profissionalmente quero me restabelecer, hoje não ganho o que eu ganhava antes da transição, então quero avançar nesse sentido e na atuação dos direitos humanos, na política classista, apoiar pessoas que eu acredito na política partidária”, explica.
Descoberta
Amanda conta que se descobriu muito jovem. “Naquela época eu não sabia nem dar um nome para isso, tinha uns 12 anos e uma série de comportamentos que vinham me acompanhando desde cedo, mas não conseguia identificar essa questão. Me recordo de alguns exemplos: um dia na escola, eu tinha uns 6 anos mais ou menos, era uma comemoração do Dia da Mulher, levaram todas as meninas para a frente da escola e eu ficava pensando por que eu não estava lá”, relembra.
A advogada destaca que tinha um sentimento verdadeiro que deveria estar entre as meninas perfiladas. “Eu gostaria de estar lá. Hoje a gente fala que brinquedo não tem gênero, mas na época essa marcação era muito forte, lembro de brincar com as bonecas das minhas primas”, conta ela.
A advogada declarou que foi reprimindo sentimentos, arrastando a situação, por achar que não precisaria enfrentar, até que se viu diante de um quadro depressivo severo. “Eu tinha uma ideia muito forte de que morreria cedo, então achava que não precisaria enfrentar isso. Mas com o passar do tempo, tive que recorrer à terapia, que foi algo que me ajudou bastante. Eu não tinha sonhos, a depressão foi muito intensa”, ressalta.
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Apoio familiar
Nascida em Mara Rosa e criada em Estrela do Norte, no norte goiano, Amanda viveu uma infância no interior. Por volta dos 10 anos, veio morar na capital em razão da separação dos pais. Ela conta que teve muita sorte em relação ao apoio dos familiares e amigos.
“A transição é uma coisa que envolve todo mundo. No começo, um ou outro amigo soltava alguma piada, mas com o tempo eles foram se tocando e o respeito cresceu muito. Foram essas pessoas que sempre estiveram comigo nos momentos mais difíceis da minha vida. Contei primeiro para o meu irmão que sempre esteve ao meu lado. Depois para a minha mãe, que ainda tem uma dificuldade, nunca me chamou de Amanda, mas me ama do jeito dela”, afirma.
O passo seguinte foi falar para o pai. Amanda conta que se lembra com carinho da reação dele. “Eu avisei que gostaria de conversar, ele foi até a minha casa e quando eu contei, ele se virou na maior calma e disse: Deus te fez assim e eu não vou sentir menos orgulho de você por isso. Eu chorei tudo o que tinha para chorar, jamais vou esquecer essas palavras. Depois, ele reuniu a família toda, explicou a situação e exigiu respeito”, completa ela.
A advogada conta ainda que entende as confusões na utilização dos pronomes de tratamento ou o nome, por parte dos pais. Para ela, eles seguem em seu próprio tempo e reconhece que fazem um grande esforço para lidarem com a transição.