Quem são as brasileiras desconhecidas que lucram até R$ 38 mil por mês fazendo lives
As denominadas streamers sustentam-se financeiramente com presentes dos espectadores e garantem não apelar para a pornografia
atualizado
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De frente para o computador, uma jovem carioca dança sozinha, completamente vestida, dentro do seu quarto. Do outro lado da tela, centenas de desconhecidos mundo afora assistem à live. Eles enviam à garota quantias em dinheiro, em forma de moeda virtual, para que ela continue se divertindo.
— Vou te fazer um pedido inusitado, diz um homem, no chat da transmissão.
— Claro, pode falar.
— É que eu queria muito ver as suas estrias.
Silêncio do outro lado da tela.
— Eu posso pagar se você me mandar uma foto delas.
O diálogo inusitado ocorreu durante uma live de Nati Amaral, 24 anos, que trabalha como streamer, uma profissão em alta, em tempos de distanciamento social. Comum no universo dos games, o termo também se refere a profissionais que vivem de fazer lives – em sua maioria, mulheres. Elas mostram seu cotidiano e recebem dinheiro de seguidores por isso, usando apps de streaming como Bigo Live, LiveMe, Kwai e FancyMe. Há quem ganhe mais de R$ 30 mil por mês com essa atividade.
“Ganhe dinheiro sem sair de casa” é um convite tão tentador que parece um golpe, mas elas garantem que, nesse caso, não é. Nati Amaral é mãe de três crianças e, antes de começar nessa profissão, estava desempregada e vendia brigadeiros nas ruas do Rio de Janeiro.
“Estava passando por um momento difícil. Eu faço uns bicos como modelo plus size e um amigo me apresentou uma agência de streamers. Pensei que devia ser a maior furada, fiquei com o pé atrás, porque isso nunca tinha passado pela minha cabeça”, relata.
Em abril de 2020, Nati fez uma entrevista, passou no processo de seleção e, desde então, tem contrato com a Agência Morango, que recruta novos usuários para o app Bigo Live. “É bem aleatório, faço live cantando, dançando, fazendo maquiagem, conversando com as pessoas. Já reuni 1.500 pessoas. Há 9 meses, eu vivo como streamer, um trabalho que me proporciona estar em casa com meus filhos”, diz.
A renda proveniente da interface varia muito, segundo Nati. Para fazer jus ao salário fixo mensal, é necessário bater metas. Adicionalmente, streamers recebem o valor oriundo dos presentes dos fãs, denominados de “beans”, uma moeda virtual – 210 beans equivalem a um dólar. A plataforma fica com 70% do valor dos presentes.
“Ganho entre R$ 4 mil e R$ 5 mil, somando o salário (livre de descontos) e os presentes, a depender do câmbio”, explica. Já houve meses em que Nati faturou R$ 9 mil. Ela trabalha cerca de 3 horas por dia e tem folga uma vez por semana. “Quando uma agência te contrata, você tem que fazer um mínimo de horas mensais, pelo app. São, em média, 40 horas.”
Nati admite ter vendido a foto das estrias ao fã que pediu a imagem. “Mandei uma foto da minha barriga e consegui bater minha meta. Depois disso viramos amigos e ele nunca mais me pediu”. Ela reforça que o Bigo Live, que ela usa para as transmissões, proíbe nudez, prostituição, consumo de álcool ou cigarros nas lives.
Biquíni, por exemplo, só pode ser usado se a garota estiver na praia. Há moderadores nas lives para banir quem quebra essas regras. “Às vezes, no calor do Rio de Janeiro, a gente quer usar um decote maior e é banida por conta disso”.
É comum, porém, que parte das mulheres ali negociem o envio de imagens, inclusive sensuais, fora da plataforma, por outros meios, como o Instagram e o WhatsApp. “Os caras têm uns fetiches bem doidos. Pedem foto de axila, teve um que me ofereceu muito dinheiro para gravar um vídeo de alguém fazendo cosquinha em mim. Outro me ofereceu 10 mil dólares para passar uma semana com ele no Egito”, descreve Nati.
Boa parte dos fãs de Nati no app são estrangeiros, e a maioria dos chamados “suportes” – que contribuem regularmente – são árabes. “As pessoas que chegam até mim são muito sozinhas, querem amizade, companhia, ainda que seja por horas ou minutos. Estão ali por uma necessidade de amizade, de ser entretido de alguma forma.”
Assim como Nati, há um ano, a professora de biologia Camila Heiderick, 28 anos, deixou a antiga profissão para se tornar streamer. “Um recrutador da agência me mandou direct no Instagram me convidando para conhecer o app. De cara eu fiquei com o pé atrás, pensei: não é possível ser tão fácil assim”, diz.
Depois de passar por duas entrevistas, Camila começou a trabalhar na Agência Morango, com o app Bigo Live. “Antes eu dava aula. Agora consigo ter uma renda superior à de professora. Por mês, eu ganho, em média, R$ 5 mil, mas já fiz até R$ 17 mil. O maior presente que já ganhei de uma vez foi R$ 1.600 reais. Crio meu próprio horário, trabalho onde e quando posso”, explica.
O tema das lives é livre. Camila dança, conversa e faz maquiagem artística, enquanto os fãs a assistem. “É um momento de interação com fãs que gostam de me acompanhar, conversar comigo. Enquanto assistem, eles mandam os presentes, os beans, que, somados ao salário fixo que a agência oferece, são o nosso ganho do mês”, relata.
O que motiva as pessoas a doarem o dinheiro, na visão de Camila, é querer demonstrar carinho pelas meninas. “No show de um cantor, jogam ursinho no palco; para a gente, mandam presentes. A grande maioria são homens.”
“Você cria uma amizade. Apesar de estarmos muito conectados, tem muita gente sozinha. Tenho seguidor que não teria oportunidade de conversar com mulheres bonitas na vida real. Tem quem diga que eu sou a melhor amiga. Essa pessoa se sente grata pela atenção e quer ajudar.”
Camila acredita que as lives passaram a ter um apelo maior durante a pandemia. “Muitos trabalhos foram prejudicados, então o app atraiu muitas meninas. É uma forma segura de ganhar dinheiro e, para o público, é um jeito sem riscos de se divertir.” As transmissões da ex-professora já reuniram até 2 mil pessoas.
A streamer diz sentir-se segura nessa atividade, apesar de já ter tido que lidar com alguns homens obsessivos. “Um cara gringo ficou fanático por mim e queria que eu desse atenção a ele 24h por dia. Ele ficava louco quando eu não respondia e inventou até que tinha sofrido um acidente por minha causa. Tem uns caras meio doidos que querem chamar atenção, mas isso não é exclusivo do app, acontece na vida”, afirma. Ela evita dar detalhes sobre a vida pessoal e mencionar, por exemplo, o bairro onde mora.
Quando o usuário baixa um app como o Bigo Live, aparece um feed com as lives feitas em vários países. A diferença para aplicativos como o Instagram é que você verá conteúdo de pessoas que não segue e também pode filtrar por países. As lives que aparecem primeiro são as “mais bombadas”.
Na corrida por se destacar, vale (quase) tudo. “Já fiz uma live dentro do galinheiro: estava em um sítio e abria as lives lá dentro. Bombou! Todo mundo amou estar no galinheiro comigo. O pessoal sabia a raça das galinhas”, diverte-se Camila.
Empreender
Há 5 anos, quando Thainá Morango, 28 anos, fundou a agência que leva seu apelido, pouco se ouvia falar sobre streamers no Brasil. Tudo começou com o convite de um grupo de empresários chineses para fazer parte da Bigo Live. “Tinha uma novela na época que era sobre uma mulher que traficava garotas. Eu sou muito curiosa, então fui ver o que era, mas levei uma amiga para ficar de olho e chamar a polícia, se algo desse errado”, lembra Thai, como é conhecida.
A proposta era mesmo para trabalhar com lives e, durante três anos, Thai viveu exclusivamente dessa atividade. Quando ganhou experiência, decidiu abrir a própria agência de seleção de talentos e gerenciamento de carreiras de influencers.
“Eu comecei a perceber que eu era privilegiada por trabalhar em casa, tinha 23 anos, uma boa situação financeira. Via meninas que precisavam acordar cedo, passar por sufoco, uma amiga minha tinha ficado grávida e tinha que aguentar homem sarrando nela em ônibus. A Bigo Live me fez a proposta de abrir a minha própria empresa e eu topei.” Atualmente, a agência emprega cerca de 300 pessoas.
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Uma boa streamer, de acordo com Morango, traça estratégias para fazer com que as pessoas gastem dinheiro com ela. “A gente faz live sobre qualquer coisa. Eu fazia miojo, conversava, me maquiava, cada dia botava uma peruca diferente e era uma personagem. Tinha dias que me fantasiava de homem e dizia que era o Tiago. Em outros momentos, usava uma luz negra com maquiagem neon, a pessoa me dava um presente e eu escrevia o nome dela brilhando no meu ombro”, lembra.
O ambiente do Bigo Live tem aspectos que lembram games. É possível dar presentes em diversos formatos, como, por exemplo, o de um escudo ou um dragão. Da mesma maneira que há pessoas viciadas em jogar, tem gente que se vicia em gastar dinheiro assim, diz Morango. ”Outros têm um apego tão grande por alguém que conheceu ali, se apaixonam, querem fazer a garota feliz, ajudar. Tem os gifters fixos, que colaboram regularmente.”
Nessa atividade, Morango aprendeu a falar palavras em outros idiomas e fez amigos pelo mundo afora. Também já recebeu muitas ofensas e propostas que considera abusivas, como pedidos de nudes. “Às vezes me enviam dinheiro e pedem pornografia em troca. Eu posso estar sem um real, mas não aceito dinheiro com essa finalidade”, garante.
Thai se identifica como ativista pela quebra do padrão de beleza magro que é imposto às mulheres. “Eu defendo o corpo feminino, o corpo gordo. Faço trabalhos de lingerie e muitos confundem meu trabalho com a minha sexualidade, a Morango com a Thainá. São duas mulheres dentro de mim.”
Uma confusão comum, segundo Thai, é acharem que “cam girls” e “streamers” fazem a mesma coisa. “É completamente diferente. A cam girl fica de lingerie, está ali pra isso. É o trabalho dela. A streamer ganha dinheiro para interagir com o público”, diferencia.
Várias pessoas dentro do live pedem para mostrar peito. Os homens acham que, por terem pau, são reis. Toda mulher enfrenta isso em algum momento e nas lives tem muito.
Thai Morango
A número 1
A carioca Hanna Ribeiro, 27 anos, é a streamer mais famosa do Brasil, na plataforma Bigo Live e, desde 2017, já acumulou 19,8 milhões de beans, que equivalem a R$ 1 milhão em presentes.
“O Bigo fica com 70%, mas isso foi tudo que produzi para ser considerada a número 1 do Brasil”, relata. Como contratada do app, a carioca recebe um salário mensal de mais de R$ 26 mil, além dos presentes que totalizam cerca de R$ 12 mil – valor equivalente à meta estipulada de 500 mil beans. Somadas as rendas, Hanna ganha, em média, R$ 38 mil por mês. Caso fique dois meses sem bater meta, ela pode ser demitida.
A influencer já lançou dois livros para ensinar os segredos da profissão a outras mulheres que desejam “crescer de forma saudável”. “O que mais me confronta é o fato do app estar queimado por causa de meninas que tomaram decisões erradas. Se você faz uma coisa errada, todo mundo fica sabendo, não tem como vender conteúdo fora dali e ninguém descobrir”, afirma.
Formada em marketing, Hanna tinha sido demitida do cargo de assessora da Orla Rio, que administra quiosques nas praias, quando começou no Bigo. “Foi do nada. Sempre trabalhei com carteira assinada, fiz faculdade. Quando eu fui convidada, eu não acreditei que fosse real. Eu achei que a pessoa não me pagaria.”
Hanna define-se como dançarina e “um pouquinho comediante”. Depois que iniciou a carreira na plataforma, as lives tomaram uma proporção enorme. Após um ano, mudou-se para os EUA, onde vive atualmente com o noivo, que também é streamer.
Hoje, a carioca faz parte do time da Live House Internacional do Bigo, um canal dentro do app onde as hostess de mais sucesso ficam. “Sou dançarina residente do ID Music, toda sexta-feira. É onde eu mais consigo seguidores, ganho visibilidade. Sou conhecida internacionalmente”, orgulha-se.
Desde o começo, Hanna tinha o objetivo de ser a número 1 do Bigo. “Não tive ajuda de ninguém. Comecei a observar as outras streamers de sucesso. Já estou há 4 anos na plataforma, nunca tirei férias. Eu me dediquei muito, você tropeça várias vezes, precisa bater meta para estar ali, as pessoas vão desistindo.”
A brasileira mais bem-sucedida na interface também abriu a própria agência, a Build Entertainment Agency. “Estamos indo para 250 hostess. São pessoas de 18 a 32 anos, que tenham habilidade com público, que gostem de cozinhar, dançar, cantar, conversar. Que mostram interesse sobre esse trabalho”, explica.
Ela define o que move esse negócio. “Ali é muito sentimento: tem pessoas que perderam família, a casa, que perderam várias coisas. Estão tristes, se sentem sozinhas, quando elas veem que ali a pessoa dá ouvidos, tem alguém pra conversar, trocar uma ideia, um pouquinho do seu tempo, elas ficam muito gratas.”
“As pessoas pensam que é fácil abrir live e ganhar beans. Quando não conseguem ganhar, vendem o corpo. As pessoas te dão presente pelo seu astral, se tem um astral bom, esbanja felicidade, dá atenção, é original, sem tentar imitar uma outra, vão te amar pelo que é. Você pode ser linda, maravilhosa e gostosa, mas beleza não ganha beans.”
A parte difícil da atividade, segundo Hanna, são os “tarados que ficam no chat”. “Sempre tem as pessoas que querem trocar presentes por nudes. Tem meninas que se vendem e tem meninas que não”, defende.
Hanna trabalha entre 3 e 6 horas por dia. Nesse período, distribui flyers, convida pessoas para as lives, promove sorteios e faz eventos chamados PK, que são batalhas de hostess, para ver quem ganha mais presentes. “Minha missão é dar entretenimento a pessoas que querem esquecer a vida real de alguma forma”. Depois da pandemia, ela conta, a concorrência nas lives aumentou. ”Muita gente aderiu, inclusive artistas. Quando o artista tá meio falido, ele vem pro Bigo.”
No vídeo abaixo, Hanna conta mais sobre a trajetória:
Opiniões contrárias
Apps como o Bigo Live e o TikTok foram banidos recentemente de lugares como Índia e Paquistão. Os países afirmam que as plataformas assumem pouca responsabilidade por qualquer problema que aconteça como resultado do uso do aplicativo.
Nos Termos de Serviço desses apps, usuários concordam “em arcar com todos os riscos e assumem total responsabilidade legal pelas seguintes atividades ao usar o site ou serviços”, o que pode ir desde difamação a incitação ao terrorismo.
O Metrópoles tentou contato com a Bigo Live, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.