“Queernejo”: Alice Marcone é a 1ª cantora sertaneja trans do país
Além de cantora, Alice se destaca como atriz e roteirista. Aos 27 anos, multi-artista vê carreira em ascensão: “Responsabilidade grande”
atualizado
Compartilhar notícia
São Paulo – Aos 27 anos, a atriz, roteirista e primeira artista trans pública a cantar sertanejo, Alice Marcone, vem se destacando no cenário do streaming e musical. Com dois singles lançados, “Noite Quente” e “Pistoleira” – em parceria com o cantor Gabeu, filho de Solimões (da dupla com Rio Negro) -, além de compor o elenco da série “De Volta aos 15“, ela vem assumindo o protagonismo de uma carreira reconhecida e premiada.
Alice é uma legítima representante do chamado “Queernejo”. Conforme a própria artista explicou ao Metrópoles, trata-se de um gênero musical que mescla o sertanejo com as vivências do público LGBTQIA+.
Apaixonada por contar histórias, Alice afirma que a música sertaneja faz parte de sua expressão artística, mas afirma ser uma grande responsabilidade representar tantas pessoas. Da vida caipira no interior de São Paulo, até chegar ao sucesso das grandes plataformas, a artista passou por momentos diversos entre descoberta das preferências e referências musicais, escolha pelo sertanejo e conexão com sua própria realidade.
Sertaneja raiz
Alice Marcone nasceu em Valinhos (SP) e morou dos 9 aos 17 anos na zona rural de Serra Negra (SP). Segundo ela, morava em um sítio e cresceu nesse contexto caipira, onde a música sertaneja é predominante.
“Comecei a fazer aula de violão aos 12 anos, nessa mesma época fui melhorando o canto. Por influência do meu pai ouvia muita música sertaneja tradicional, de raiz. Mas, na época, em meados de 2008, estava explodindo o sertanejo universitário. Naquela época já achava muito heteronormativo, falavam de bebedeira, pegação, isso me afastou um pouco desse gênero”, disse ela.
Veja clipe:
Fuga das raízes
Ao se mudar para São Paulo, para cursar Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), Alice disse que se sentiu vergonha de suas raízes, mas isso acabou representando uma grande mudança em suas escolhas e composições.
“Eu sempre sonhei com a cidade grande, com o mundo cosmopolita, mas quando cheguei a SP, senti vergonha de ser caipira. Então, nesse contexto, eu me afastei ainda mais do sertanejo e me aproximei do pop, do indie, das músicas internacionais. Até porque era no mesmo momento em que eu estava me sentindo, me reconhecendo, como uma pessoa LGBT”, relata.
Reencontro
Foi nessa época que ela diz ter enfrentado um bloqueio criativo. A artista ficou três anos sem compor. “Isso me despertou um retorno para as minhas composições antigas. Fui entendê-las… Eram composições em inglês, que tinha feito ainda em Serra Negra”, relembra.
Aquele momento para ela significou uma espécie de reencontro. “Fui entendendo que o meu bloqueio era por me sentir ‘desterritorializada’. Eu queria voltar, precisava me sentir enraizada. Então veio a ideia de transformar essas músicas em sertanejo, o que me deu um estalo criativo”, relata.
Os singles Pistoleira e Noite Quente foram repaginados por ela nesta época. “Quando lancei essas músicas, descobri um novo sertanejo, com novos ídolos e novas referências, como Marília Mendonça, Luan Santana. Eram músicas que misturavam mais o pop, que conseguiam me identificar”, completa.
“Queernejo”
Alice Marcone entende que as vivências do público LGBTQIA+ presentes no “Queernejo” não limitam o estilo. Ela não concorda com a hipótese de que as pessoas cisgêneras não pudessem se identificar com as temáticas do sertanejo e vice-versa. Aliás, o intuito da artista é justamente quebrar barreiras, ampliando o alcance de suas produções.
“Somos artistas LGBTQIA+ do interior ou de contextos urbanos, onde o sertanejo é muito forte, estamos na vontade de criar essa representação, esse imaginário, essa é a nossa estética musical. A gente vai falar sobre ser LGBT na nossa música”, opina.
Ela usa como exemplo a sertaneja Lauanna Prado. “Apesar de ser LGBT, uma mulher lésbica, ela não fala disso necessariamente nas suas letras. Normalmente ela canta sobre amor heterossexual. Então a gente não enxerga nela o ‘Queernejo’, apesar de tê-la como uma grande aliada, uma referência, uma inspiração”, salienta.
Alice Marcone exemplifica que, enquanto Gabeu traz para as músicas a experiência de ser um homem gay no sertanejo, ela fala sobre ser uma mulher trans.
Rede de apoio
De acordo com a cantora, o queernejo também se comporta como uma rede de proteção e apoio em relação ao preconceito.
“[O grupo do “Queernejo] É um ambiente muito acolhedor, sabemos que essa resistência [com os artistas LGBT no sertanejo] está posta no mundo sertanejo tradicional, mas fui me surpreendendo muito ao longo desse tempo. Temos grandes apoiadores, que são grandes parceiros, o movimento country. Tenho sentido um acolhimento muito grande de agentes importantes desse mercado”, explica.
Por outro lado, ela reconhece que ainda existe certo tipo de preconceito. Alice fala em determinadas manifestações preconceituosas até mesmo do público. “Mas é a minoria”, ressalta.
Mudanças e preconceito interno
Segundo Alice Marcone, a forma como as pessoas estão se relacionando com a música sertaneja LGBT tem mudado e o preconceito.
“Tem muitas mulheres que consomem sertanejo que estão se relacionando com a nossa música. Existem muitas pessoas LGBT se relacionando com isso. São pessoas LGBT do interior que não se viam representadas no pop, por exemplo, que tem sempre cenários e contextos muito urbanos. Então, elas estão começando a se ver representadas”, destaca.
A cantora diz que tem sentido muito mais acolhimento do que preconceito. Por incrível que possa parecer, ela vê mais resistência nas pessoas LGBT do que no público convencional. “O preconceito que eu sinto é justamente de pessoas LGBT que não querem nem saber de sertanejo. Elas acham que o gênero é necessariamente opressor, heteronormativo, errado”, opina.
Multi-artista
Em razão da pandemia, Alice Marcone teve que se distanciar um pouco de sua faceta musical e priorizar seu lado de atriz e roteirista. Atualmente no ar, na série “De volta aos 15”, da Netflix, a artista fala que ama sua carreira profissional e tudo isso se dá por seu amor em contar histórias.
“Por conta da pandemia, a minha principal atividade agora é como roteirista e atriz. A pandemia atrapalhou bastante os meus planos com a música, praticamente parei de compor, de produzir, de fazer show, toda a cadeia de produção. Me encontro num momento de ascensão. Ano passado ganhei o prêmio roteirista do ano da ABRA, que é a Associação Brasileira de Roteiristas e Autores, a instituição da classe. Ser reconhecida foi muito importante”, conta Alice.
A personagem de Alice na trama, assim como ela, é uma mulher trans. Ela se diz realizada com o resultado. “Como atriz estou na série ‘De volta aos 15’, protagonizada pela Maísa e Camila Queiroz, que eu também roteirizei e que tá sendo um sucesso de público. Estou vendo a minha carreira crescer”, reforça.
Família
Viver em um país como o Brasil, em que a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, enquanto da população geral está na casa dos 70 anos, não é fácil, segundo Alice. Porém, ela ressalta que ter o apoio da família fez toda diferença ao longo de sua trajetória.
“Durante a vida sofri muito preconceito, como qualquer pessoa LGBTQIA+, especialmente como qualquer pessoa trans. Existe uma disparidade muito grande. Mas tenho uma família que me apoia muito, que teve seus momentos de dificuldade de aceitação, mas atualmente são fundamentais, são pilares. Eles me apoiam na carreira, na identidade de gênero. Sinto que a aceitação deles me deu uma estrutura para que eu estivesse onde estou hoje”, afirma.
Alice Marcone se diz grata pelo amor e pelo carinho dos pais. “Gosto de ressaltar isso porque vemos que para pessoas trans, a família muitas vezes nega, rejeita e isso acaba se tornando a base da marginalidade em que essa população se encontra. Gosto de mostrar a minha aceitação familiar para gente construir amor.
A artista diz que é motivo de orgulho para os pais. “Imagina ter ganhado prêmios, ter trabalhado para grande streams… Tudo isso faz deles pais muito orgulhosos. Gosto de contar para que muitas famílias possam se inspirar em oferecer carinho, afeto. Ser trans não é vergonha para ninguém, pelo contrário”, finaliza a artista.