Promotora do caso João de Deus: “Maria da Penha foi virada de chave”
Mais de 1300 mulheres foram assassinadas em 2021 no Brasil. Lei criada em 2004 contribuiu para combate da violência contra mulheres
atualizado
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Rio de Janeiro- Referência mundial no combate à violência contra a mulher, a lei Maria da Penha completa 16 anos neste domingo (7/8). Com ela, a violência doméstica passou a ser tipificada como uma das formas de violação aos direitos humanos e julgada em varas especializadas, como crimes de maior potencial ofensivo. Mesmo com o avanço da lei, o Brasil continua sendo o quinto país que mais mata mulheres.
Para Gabriela Manssur, que atuou como promotora de Justiça por quase 20 anos em casos emblemáticos de violência contra mulher, a lei promoveu uma mudança significativa: “Representa um grande avanço para a proteção do direito das mulheres brasileiras. Foi uma virada de chave. Até então não tínhamos nenhuma lei que garantia o direito das mulheres, do trabalho, da saúde, entre outras situações”, disse Manssur, que atuou no caso do João de Deus.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, houve uma leve redução no número de feminicídios em 2021 comparado a 2020. Entretanto, 1.341 mulheres foram assassinadas no ano passado. O documento aponta também um crescimento de outros tipos de violência contra a mulher, como a psicológica.
“Antes da Lei 11.340, de 2006, esses crimes eram considerados de baixo potencial ofensivo. Nessa situação, o autor do crime não era condenado e processado, não tinha interrogatório do réu, depoimento das vítimas e o acusado pagava uma cesta básica para o estado. Ou seja, ele não era responsabilizado, não reparava os danos contra a vítima e não recebia uma pena. Então a lei Maria da Penha veio para dizer que esses crimes não são de baixo teor ofensivo. Ele obriga que seja instaurado inquérito policial, junto com uma investigação e consequentemente uma denúncia durante o processo”, explicou a Gabriela Manssur.
Penas continuam baixas
A lei surgiu em 2006, com o caso da farmacêutica bioquímica que se chamava Maria da Penha e ficou paraplégica devido às agressões sofridas em 1983, do economista e professor universitário colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, até então seu marido.
O acusado atirou na esposa, em uma simulação de assalto. Em seguida, tentou eletrocutá-la durante o banho.
Em outubro de 2002, a seis meses do prazo de prescrição do crime, Marco Antonio foi condenado e preso, mas acabou solto em 2004. Cumpriu apenas dois anos, o que seria um terço da pena.
Com a repercussão do caso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) soube formalmente do crime e condenou o Brasil por não adotar providências necessárias para interromper a violência contra Maria da Penha e punir o agressor.
Desde então, o país mudou sua legislação e práticas relacionadas ao combate à violência contra a mulher.
Medidas protetivas de urgência
Com o passar dos anos, a lei ganhou apoio político, social e avançou. Gabriela Manssur ressalta a importância das medidas protetivas de urgência: “É uma forma de pronto socorro para essa mulher, já que o autor precisa se afastar da vítima, precisa sair de casa, não pode se aproximar, nem frequentar os mesmos ambientes. Ele não pode entrar em contato com a vítima por qualquer meio e também é feita cassação da posse de arma de fogo, caso ele tenha”, explica.
Ela pondera, no entanto, sobre as falhas existentes no sistema atual: “Temos uma legislação boa, mas acaba sendo ruim na prática. As penas continuam sendo muito baixas. Já as medidas protetivas de urgência, que seria um pronto socorro para as mulheres, acabam não sendo tão eficientes, já que não temos uma fiscalização dessa medida, como a tornozeleira eletrônica, botões do pânico ou a fiscalização pela guarda civil e polícia militar. Isso iria diminuir muito os casos de feminicídio”.
Casos recentes
Entre os tantos crimes que marcaram os primeiros oitos meses do ano, está o caso da Patrícia Coutinho, 45 anos, que sofreu violência física e psicológica por três anos pelo marido e conseguiu gravar as agressões do oficial do Exército Gean Franque da Silva, de 41 anos, para usar como prova. O caso aconteceu em São Gonçalo, região metropolitana do Rio e o agressor foi preso após a divulgação das imagens.
Outro caso que chocou o país foi o estupro cometido pelo anestesista Giovanni Quintella, 31, flagrado através de um vídeo, estuprando uma paciente durante uma cesárea. O caso aconteceu no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio. Ele foi preso em flagrante.
“Os agressores estão presentes em todas as faixas etárias, classes sociais, profissões. É como se fossemos cidadãos de segunda categoria, vistas como acessórios, lanterninhas da sociedade, com uma relação de poder e posse. O que eles têm em comum é o machismo e o desrespeito pelos direitos das mulheres”, conclui Gabriela Manssur.