Procura por serviço funerário em Manaus triplica em 2021: “Tem que ter estômago”
Vítimas da Covid-19 que não encontraram leitos em hospitais e morreram em casa são levadas diretamente ao cemitério
atualizado
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Enviados especiais a Manaus – O número de atendimentos realizados pelo SOS Funeral, em Manaus (AM), mais que triplicou nas primeiras semanas deste ano, em meio ao colapso do sistema de saúde na capital e ao aumento de internações por Covid-19.
Entre 1º e 19 de janeiro de 2021, foram atendidas 388 chamadas pelo SOS Funeral na capital do Amazonas. Já no mesmo período do ano passado, o serviço tinha recebido 116 demandas – ou seja, houve aumento de 234,4%.
O SOS Funeral é um serviço gratuito da prefeitura manauara destinado a famílias que estão abaixo das linhas da pobreza ou da extrema pobreza, que não podem arcar com os custos de remoção dos corpos e do sepultamento.
Neste ano, o pico de atendimentos realizados pela Prefeitura de Manaus ocorreu no último sábado (16/1), quando foram feitas 30 chamadas ao SOS Funeral, devido à falta de oxigênio – essencial no tratamento da Covid-19 – nos hospitais do Amazonas.
A alta, inclusive, segue a tendência de sepultamentos realizados na capital. Manaus registrou 213 enterros na sexta-feira (15/1), o mais novo recorde de sepultamentos diários desde o começo da pandemia do novo coronavírus.
Por causa dessa demanda, a Secretaria da Mulher, Assistência Social e Cidadania ampliou a capacidade de atendimento do serviço. A pasta elevou de cinco para 10 os veículos disponíveis para realizar o procedimento. Agora, é possível transportar 30 caixões simultaneamente.
Ao longo de quarta-feira (20/1), o Metrópoles acompanhou o trabalho da SOS Funeral no atendimento a duas vítimas da Covid-19. Após os chamados, a equipe remove os corpos e os leva diretamente ao cemitério Nossa Senhora Aparecida.
O primeiro atendimento foi realizado no bairro 10 de Novembro. O pescador aposentado João Soares de Morais, de 82 anos, morreu sobre uma cama, nos fundos de uma casa próximo a um córrego, após sentir fadiga.
Com sintomas da Covid-19, o aposentado se tratava em casa, pois não há leitos disponíveis nos hospitais da capital amazonense, que viu o número de casos da doença aumentar exponencialmente nos últimos dias.
“Sempre morei com ele e, agora, eu que cuidava dele”, relembra a filha do falecido, a empregada doméstica Sharlene Lopes de Morais, de 38 anos, enquanto crianças, inconscientes da grandeza da dor, brincavam perto do caixão do idoso.
João Soares era viúvo há quatro anos. “Tinha saúde”, conta a filha. “Não tinha nada de diabetes, não tinha nada dessas coisas… Esse vírus maldito”, prossegue a empregada doméstica, ao ver o corpo do pai sendo levado.
Logo em seguida, sem dar tréguas, a equipe do SOS Funeral foi até o Serviço de Pronto Atendimento (SPA) do bairro Redenção para atender a um segundo chamado.
A dona de casa Maria do Rosário, de 64 anos, morreu na manhã de quarta-feira na unidade hospitalar após passar mal por falta de ar.
“Ontem [terça-feira] ela desmaiou e hoje de manhã foi a óbito. Estava com reumatismo e só reclamava dessas dores. Aí, quando fizemos o teste, deu Covid”, conta a nora da vítima, ao ressaltar que a sogra foi a melhor avó para o filho dela.
Os corpos são removidos rapidamente e levados para o cemitério, onde os enterros de vítimas do novo coronavírus duram cerca de cinco minutos. A velocidade é necessária, e estabelecida por decreto municipal, para evitar a contaminação.
O motorista de um dos carros da SOS Funeral Humberto Alencar, de 45 anos, relata jamais ter atendido tantas demandas como agora.
“Antes da pandemia, a gente atendia duas de manhã e duas de tarde, mas só com um corpo. Agora, a gente faz mais de seis viagens por dia, levando três ou quatro corpos dentro de cada carro”, relata o funcionário.
Por sua vez, o assistente da funerária Alexandre Bindar, de 35 anos, é recém-chegado ao trabalho. Ele iniciou o serviço na segunda-feira (18/1), após passar um tempo desempregado. Diz que nunca imaginou viver algo parecido.
“Antes eu era montador externo. Fiquei desempregado, surgiu a oportunidade do trabalho e corri atrás. Agora estou vivendo uma experiência que nunca pensei que iria passar”, relata o trabalhador.
“É aquela coisa, tem que ter estômago para aguentar: ver a pessoa morta, o corpo em decomposição, a família chorando. Eu fico triste. É totalmente diferente do que ver uma pessoa normal falando contigo, na sua frente”, prossegue.