Preso por um crime que diz não ter cometido, Erivelto se “vingou” virando advogado
Aos 36 anos, o advogado, que fará a segunda fase do exame da OAB, quer ser inspiração para jovens do Morro do Cantagalo, onde ele vive
atualizado
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São Paulo – Antes de se tornar advogado, Erivelto Melchiades foi preso pela primeira vez aos 19 anos, em 2005. Logo após chegar à vida adulta, o jovem negro do Morro do Cantagalo, uma favela na zona sul do Rio de Janeiro, tinha uma série de incertezas na vida. Não conseguia emprego com carteira assinada e como o estímulo para estudar era pouco, restou uma opção para crescer na vida: o crime. Ele compartilhou sua história em uma publicação que viralizou no Facebook.
O caminho parecia ser fácil, porém se mostrou doloroso. Andava com um revólver dentro da calça quando foi enquadrado por um policial militar. Resultado: foi condenado por porte ilegal de arma. Melchiades dividiu a cela em um presídio com 121 homens, e o local foi feito para comportar 17. A carceragem da extinta Polinter, na Praça Mauá, era subterrânea, logo, além da superlotação, a sensação de sufocamento piorava ainda mais a permanência na cela.
Foram três semanas de violência física e psicológica diariamente. Recebeu pena alternativa de quatro anos de prestação de serviços à comunidade e limitações aos finais de semana. Entretanto, recorreu da decisão e conquistou liberdade provisória, pois apresentou, entre outros, bom comportamento. O morador do Cantagalo saiu pela porta da frente, motivado a escrever um novo capítulo em sua vida sem repetir as memórias recentes.
Melchiades voltou a estudar, conseguiu emprego como auxiliar de limpeza em uma creche da comunidade, e constituiu família. Era casado e tinha um filho. Sua vida ficou nos eixos por cerca de cinco anos, até que em 2010 foi preso novamente. Ao Metrópoles, ele conta que discutiu com a esposa, e ela foi até uma delegacia prestar queixa.
Preso injustamente
Ele estava em casa, quando atendeu a um telefonema da polícia pedindo para ele ir até a unidade e esclarecer o ocorrido. Quando chegou ao local, para sua surpresa, foi algemado e encaminhado a uma cela. O motivo? Uma denúncia por tentativa de latrocínio (roubo seguido de morte) que teria acontecido em 2005. Na versão de Melchiades, uma pessoa disse ter presenciado um assalto malsucedido e ele foi identificado como o autor do crime. Ali soube pela primeira vez que havia um novo processo contra ele.
“A testemunha ouvida pela polícia teria me reconhecido de assaltos que aconteceram no seu bairro, em Ipanema. Eu nunca soube disso e não foi anexado ao processo do porte ilegal de armas. Correu outro processo contra mim que depois de cinco anos eu descobri que havia. Não me lembro de ter passado por nenhum reconhecimento, é uma coisa que ficou em aberto”, afirma, hoje, aos 36 anos.
À reportagem, Melchiades relata que seu caso havia sido caracterizado primeiramente como peculato. Ou seja, desvio de dinheiro por funcionário público. “Hoje vejo que, como não solucionaram o problema no bairro, os PMs pensaram: vamos pegar alguém para ver no que dá. Aí virei uma estatística. É dessa forma que funciona para dar a resposta contra a criminalidade que a sociedade almeja.”
Para Melchiades, ele foi considerado culpado apenas com base no depoimento de uma pessoa. Teria que cumprir sete anos em regime fechado, porém, reverteu para dois anos e dois meses. O carioca passou um ano no Complexo Penitenciário de Gericinó, mais conhecido como Complexo de Bangu. Lá, vivenciou os mesmos problemas da primeira vez, só que por 365 dias.
Entre a violência e a descrença
De acordo com Melchiades, ele foi agredido constantemente por agentes penitenciários, que desferiram socos, pontapés e golpes de cassetete. Ele dividiu a penitenciária com homens idosos, com deficiência e conheceu chefes do crime. Em dias de audiência criminal, era transportado em um camburão abarrotado com detentos que lutavam por uma fresta de ar dentro de um veículo mal ventilado que geralmente ficava estacionado sob o sol quente do Rio.
“Me veio um sentimento de desacreditar em tudo, imagina você lutar para que nunca fosse preso novamente e isso acontece. Eu chorava muito, não entendia. Perdi tudo. A primeira pessoa que me deu apoio foi um detento, que me mostrou um choque de realidade lá dentro. Ele disse que o guarda não ia abrir a porta para eu ir embora por causa do meu choro”, relembra.
Aos poucos, tomou consciência do ambiente que vivia. “O estado é o principal violador porque investe mais em cadeia do que em educação, saúde e saneamento básico. O sistema é uma grande injustiça, não apenas o Estado, mas a forma que o Estado trabalha para que esse sistema se alimente: a questão do encarceramento em massa, reincidência, o lucro que a cadeia tem. Graças a Deus eu estava com a mente aberta para filtrar tudo que acontecia.”
Reescrever a vida
Como Melchiades estudava e trabalhava à época, a Justiça reverteu a pena depois de um ano preso. O futuro advogado passou mais um ano e dois meses em liberdade condicional até ser considerado livre de uma vez por todas. Quando saiu, contudo, sua vida já não era mais a mesma. A esposa o deixou e levou o filho com ela, o desemprego era realidade e o apoio de família e dos amigos foi o que pôde abraçar.
Portanto, ele decidiu se “vingar”. Voltou a estudar e terminou o ensino médio aos 28 anos. Não satisfeito, fez a prova do Enem e usou a nota de corte para ingressar com uma bolsa na Estácio de Sá. Foram oferecidas muitas opções de curso, mas uma em especial chamou a sua atenção: o direito.
Com a cara e coragem, Melchiades se matriculou em 2014 sem saber o que os próximos cinco anos lhe reservavam. Não foi fácil, mas ele jamais deixou de desistir. “Eu fui com medo e perdi o medo ao longo do tempo. Vim de escola pública, a história que aprendi nas escola foi a do povo europeu, não aprendi a do meu povo. Eu estudei Revolução Francesa e Igreja Católica na Idade Média. Na faculdade se aprende a história do Brasil. Eu não sabia o mínimo de Constituição Federal. Me formei com muita luta, noites perdidas, fiquei focado”, diz.
Formado bacharel em Direito desde 2019, hoje atua como diretor da Rede Reforma, que luta pelo plantio de cannabis medicinal no Brasil, e integra a Frente pelo Desencarceramento RJ. Conectado com o Cantagalo, ele quer ir além e evitar que jovens periféricos sejam vítimas de injustiça social como ele foi, talvez como advogado criminalista. O próximo passo é conseguir o título pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Atualmente, prepara-se para a segunda fase do disputado Exame de Ordem.
Melchiades formou uma nova família, tem uma filha de 3 anos, mas ainda procura contato com o primeiro filho, que hoje tem 10 anos. Como pai, quer estar presente e ajudar seus filhos a seguirem pelo caminho certo, o da educação. “Eu quero mostrar para as pessoas que existe vida após o cárcere, que é possível dar a volta por cima. Acredito que posso ajudar as pessoas”, finaliza.