Populistas como Bolsonaro buscam ruptura, avalia pesquisador britânico
Christopher Thornhill, estudioso de democracia e direito constitucional, analisa em entrevista papeis de Lula e Bolsonaro na arena política
atualizado
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Pesquisador de temas como populismo, direito constitucional e democracia, o britânico Christopher Thornhill, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Manchester, na Inglaterra, se preocupa com o nível de “erosão” da democracia brasileira e com a “possibilidade de que o aparato constitucional seja permanentemente danificado” sob o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Passando uma temporada como professor visitante no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília, o acadêmico falou ao Metrópoles sobre semelhanças no comportamento de líderes como o presidente brasileiro, o ex-presidente norte-americano Donald Trump e o primeiro ministro de seu país, Boris Johnson, e sobre como todos eles tentam enfraquecer o aparato democrático por meio do nacionalismo. Para Thornhill, a democracia é uma conquista transnacional sob ataque do populismo.
Nesta entrevista, o pesquisador também fala sobre o papel do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em termos de consolidação da democracia e do perigo que vê em misturar os poderes político e militar.
Veja os principais trechos da conversa com Christopher Thornhill, que tem um livro publicado no Brasil, pela editora Contracorrente, chamado Crise Democrática e Direito Constitucional Global.
O que explica a ascensão do populismo de direita no mundo? Esse movimento enfraquece as democracias?
Não há uma resposta simples para isso, porque [o populismo] assume uma forma diferente em cada país. Mas eu diria que, depois da Segunda Guerra Mundial, a onda de democratização foi sustentada por dois fundamentos: a criação dos estados de bem-estar social e a ascensão de um sistema internacional de direitos humanos.
E, de certa forma, essas duas pré-condições para a democracia, e isso é o que eu escrevi no livro que foi traduzido recentemente no Brasil, são constitucionalmente contraintuitivas. Isso porque leis constitucionais derivam da vontade popular, da legitimação expressa da vontade do povo. As Constituições não têm, fundamentalmente, relação com as leis internacionais de direitos humanos. Meu argumento é que o direito constitucional não fornece vocabulário para garantir a democracia. As pré-condições para a democracia são relativamente marginais ao próprio direito constitucional e, essencialmente, giram em torno da integração das constituições em um sistema internacional.
Algumas constituições dão garantias constitucionais específicas para o bem-estar social, e outras não. Meu argumento é que governos populistas conseguem mobilizar um vocabulário de constitucionalismo contra as pré-condições sociológicas de legitimidade constitucional. Podemos ver isso no Brasil, no Reino Unido, e em muitos países diferentes.
Essencialmente, os governos populistas articulam uma construção simplificada da democracia usando os fundamentos teóricos básicos do direito constitucional. E, ao fazê-lo, erodem as pré-condições sociais do direito constitucional, que são essencialmente o direito internacional dos direitos humanos.
Então, vemos duas coisas através da ascensão do populismo: vemos que as democracias são extremamente frágeis, mas também vemos que a dicção constitucional, que geralmente usamos para explicar a democracia, não faz o seu trabalho de forma muito adequada, muito eficaz, porque precisamos pensar sobre a democracia constitucional em um quadro sociológico muito mais amplo.
Essencialmente, todos os governos populistas fazem a mesma coisa: tomam forma em condições onde as provisões de bem-estar foram enfraquecidas e dizem que falam pelo povo. E, invariavelmente, falam contra a aplicação das normas internacionais na sociedade nacional.
No entanto, contraintuitivamente, a democracia não é uma conquista nacional. É uma conquista transnacional. Baseia-se em fundações transnacionais. Assim, quando o governo populista fala pelos povos nacionais contra as normas internacionais, corrói as instituições que permitem aos povos nacionais obter representação política.
Esse último ponto é uniforme. Se olharmos para [Narendra] Modi, na Índia; se olharmos para Boris Johnson, no Reino Unido; se olharmos para Bolsonaro, se olharmos para o governo na Polônia… Não faz diferença. Donald Trump obviamente não é mais presidente, mas deu forte exemplo dessa tendência.
Sim, todos eles lutam contra o que chamam de globalismo…
Seletivamente. Eles lutam contra o globalismo, mas não lutam contra os fluxos globais de capital, não lutam contra o investimento global. Eles lutam contra as leis internacionais de direitos humanos.
Qual a sua opinião sobre a Constituição brasileira de 1988 e sobre como ela é aplicada atualmente?
Eu só posso falar como observador, quero ser absolutamente claro sobre isso. Trabalho no Brasil algumas vezes, mas não posso reivindicar a mesma experiência de um especialista em direito constitucional brasileiro, então só posso dar uma opinião.
Mas acho que podemos dizer que a situação do Brasil no momento é um ponto relativamente extremo no espectro global, em termos de erosão constitucional e quanto à possibilidade de que o aparato constitucional seja permanentemente danificado.
Mas acho que ao mesmo tempo é importante evitar qualquer tipo de excepcionalismo. É importante evitar qualquer tipo de excepcionalismo, pois o atual governo faz parte da tendência global, e, como acabei de tentar dizer, existem pontos em comum que conectam diferentes padrões de governos populistas em diferentes sociedades.
Existem certas características no Brasil no momento, porém, que são muito inusitadas. Na maioria das sociedades onde você vê o surgimento de um governo populista, você tende a ver um conflito intensificado entre diferentes grupos sociais. O que podemos chamar de uma polarização horizontal da sociedade, que pode envolver altos níveis de violência, ou pelo menos o potencial de violência.
O que há de inusitado no Brasil é a presença de militares no Executivo. Não é absolutamente único; você vê uma militarização do governo na Índia; houve um potencial para a militarização do governo nos EUA, pelo menos sob Trump. Mas isso é incomum no Brasil. As circunstâncias sociais também são distintas, e isso remonta às transições democráticas na década de 1980. Elas não ocorreram em um ambiente determinado pela guerra, mas muitas vezes ocorreram em ambientes em que os militares eram um ator poderoso. E no Brasil, durante a transição constitucional, os militares nunca foram completamente desacreditados.
Se compararmos [a situação brasileira] com muitas transições após 1945, vemos que os militares foram completamente desacreditados. No Brasil, os militares mantiveram ao menos um papel marginal no governo.
Eles mantêm funções de ordem pública muito específicas no Brasil, o que parece ser o aspecto mais alarmante do processo. Uma característica muito marcante no Brasil é o fato de que as posições institucionais ocupadas pelo Exército ainda estão bastante arraigadas.
O senhor acha que o presidente Bolsonaro está tentando promover uma ruptura institucional no Brasil?
Tentando, sim. Mas não conseguindo. Eu não sou brasileiro, então não quero dizer nada inapropriado. Estou ciente de que sou um visitante em seu país. Mas presidentes populistas tentando forçar uma ruptura institucional não são um problema particular [do Brasil], porque eu acho que isso é o que todos eles fazem. [A questão] é se eles conseguem ou não. Quero dizer, Trump tentou, muito claramente tentou forçar uma divisão institucional entre seu governo e o quadro institucional anterior que apoiava a Presidência. Isso é muito claro, mas ele não conseguiu. E você pode ver coisas semelhantes na Polônia, em menor grau, e coisas semelhantes na Índia.
É muito difícil encontrar governos populistas que não façam isso, então essa não seria a minha pergunta. A questão seria se ele está tendo sucesso, e eu não acho que ele [Bolsonaro] esteja conseguindo.
E o ex-presidente Lula? Você acredita que ele e seu partido estão comprometidos com a democracia constitucional?
Sim. Novamente, estou falando apenas como espectador, mas minha opinião é de que as presidências anteriores de Lula estiveram entre as presidências mais importantes do mundo na consolidação da democracia.
Isso é em parte algo específico do contexto brasileiro, onde a construção do estado de bem-estar ou a expansão do estado de bem-estar veio após a transição democrática. Você teve que esperar realmente até Lula para que a estrutura social para a democracia fosse consolidada. Isso é extremamente importante. E o exemplo que Lula criou para outros países da América Latina é extremamente importante.
Agora, se a posição do Lula, se o Lula for eleito nas eleições, se a sua posição será tão transformadora quanto antes, é muito difícil dizer agora.
Meu entendimento é de que sua mensagem de campanha é mais seletiva. Mas acho que Lula foi uma das figuras mais importantes globalmente na consolidação da democracia como projeto global.
Agora, é muito importante e, por favor, diga isso na transcrição [da entrevista]: é muito importante que vocês, como cidadãos de um país latino-americano, avaliem a democracia por critérios realistas.
Nós, que vivemos no norte da Europa, não vivemos em democracias completamente bem-sucedidas e perfeitamente evoluídas. Vivemos sob governos que rotineiramente minam… questionam, desestabilizam a estrutura institucional. Isso vale para Boris Johnson, mas vale para Tony Blair, aplica-se a Margaret Thatcher… é exatamente isso que acontece, então é muito importante que vocês olhem para a política brasileira de forma realista.
Agora, a partir de um quadro do que poderíamos chamar de realismo ético global, a contribuição de Lula politicamente é da maior importância, na minha opinião.
O senhor escreveu em um artigo recente publicado no Brasil que o ex-presidente Lula deveria receber um reconhecimento positivo por sua visão sobre a guerra na Ucrânia, que foi bastante criticada pelos adversários. Você poderia explicar por quê?
Bem, esse é um tópico extremamente controverso. Mas o debate político sobre a Ucrânia nos países democráticos é extremamente restritivo. E os políticos que estão apresentando uma análise multicausal sobre a guerra na Ucrânia geralmente são de estados cuja definição como democracias pode ser questionada.
Agora, minha visão é ir além da guerra na Ucrânia, o que não envolve nenhuma avaliação positiva da invasão russa da Ucrânia, assim como deixei absolutamente claro no artigo. Faço uma condenação absolutamente categórica da invasão e da condução da guerra, mas acho que é muito difícil ir além da guerra enquanto persistir um consenso entre os governos que se opõem a ela, e têm alguma responsabilidade de acabar com ela, de que há apenas uma causa.
Acho que é necessária uma análise multicausal e a questão da causalidade é o que eu estava dando importância no artigo. A questão da causalidade não é uma questão abstrata, é parte da solução. Então, eu acho que a posição do Lula como um político com credenciais democráticas muito fortes é uma contribuição para esse debate, que é essencial.
O senhor acha que existe um papel ideal para os militares em uma democracia saudável?
Bem, é muito difícil generalizar, porque os militares operam de formas totalmente diferentes [dependendo do país], mas eu diria, em primeiro lugar, que é necessário um arcabouço constitucional categórico robusto e absoluto sobre o exercício do poder militar.
Acho que a assunção de responsabilidades de ordem pública por unidades militares é constitucionalmente muito problemática. E isso tem implicações para o Brasil.
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