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Técnicos veem como “eleitoreiro” estudo do Ipea sobre Auxílio Brasil

Presidente do instituto apresentou análise para defender carro-chefe de Bolsonaro. Governo convocou coletiva e transmitiu pela TV Brasil

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Reprodução/TV Brasil
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1 de 1 17_08_2022_20_13_27 - Foto: Reprodução/TV Brasil

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre desnutrição e insegurança alimentar no país, divulgado na semana passada e apresentado na última quarta-feira (17/8), tem sido contestado nos bastidores do Ministério da Saúde e do próprio Ipea. Técnicos ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato consideram o estudo “eleitoreiro” e os dados “manipulados”.

Na quarta, o ministro da Cidadania, Ronaldo Bento, e o presidente do instituto, Erik Figueiredo, convocaram a imprensa para apresentar o documento, que visa refutar alertas feitos por agências e organizações não governamentais sobre o crescimento da insegurança alimentar no Brasil.

Intitulado “Expansão do Programa Auxílio Brasil: Uma Reflexão Preliminar”, o estudo analisa os impactos da recente ampliação do Auxílio Brasil sobre a extrema pobreza no país, a evolução dos indicadores de insegurança alimentar e a interação do programa social com o mercado de trabalho.

A partir de dados do DataSUS, são avaliadas informações sobre as internações hospitalares relacionadas à subnutrição e à insegurança alimentar.

A publicação conclui que “o conjunto desses resultados permite antever uma redução da pobreza, bem como da insegurança alimentar e da fome no Brasil em 2022”.

O Auxílio Brasil é o carro-chefe da campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). O benefício foi formulado na esteira do fim do Auxílio Emergencial (pago durante a pandemia de Covid-19) e acabou substituindo o Bolsa Família. Formuladores de políticas públicas, porém, criticam o desenho e a implementação desse auxílio.

Na avaliação de uma fonte que já comandou uma diretoria no Ipea em governos anteriores, os dados não necessariamente estão errados, mas a interpretação é “estranha”. Essa pessoa considera que a divulgação do estudo, assinado tão somente pelo presidente do órgão, possui “um fim eleitoreiro cabal” e poderia, inclusive, ser enquadrada como crime eleitoral, já que a legislação impede os órgãos públicos de emitir opinião sobre governos a 90 dias das eleições.

Hospitalizações x fome

Especialistas entendem que usar dados de internações no Sistema Único de Saúde (SUS) relacionadas à desnutrição não é a melhor maneira de captar o aumento ou a diminuição da fome. Algumas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade não têm acesso ao SUS, o que impede a análise do perfil antropométrico e de consumo alimentar avaliado.

Além disso, os impactos da insegurança alimentar na população não são imediatos e os resultados só poderão ser observados ao longo dos próximos anos. Outro ponto levantado é de que a fome atualmente se manifesta de maneiras diferentes, sendo mascarada pela indústria de ultraprocessados e, em alguns casos, guardando relação com a obesidade. Para um pesquisador do Ipea, o estudo demonstra “um desconhecimento do que é a fome em tempos contemporâneos”.

Publicamente, pelas redes sociais, a economista Nathalie Beghin, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), reforçou que há anos não há uma pesquisa nacional sobre o estado nutricional das crianças. Segundo ela, os dados de internação da saúde precisam ser aperfeiçoados, visto que muitas crianças não são internadas em hospitais por desnutrição, mas contraíram doenças em decorrência da desnutrição ou da má alimentação.

Assim, as internações no SUS por desnutrição não são um bom retrato da fome no Brasil. É inacreditável que se utilize da ciência, com um texto cheio de equações para dar um ar de seriedade, para negar o que todas as pessoas veem à olho nu”, sustenta Nathalie.

De forma pouco usual, o governo convocou uma coletiva de imprensa no Palácio do Planalto, na manhã de quarta-feira, já no período eleitoral, para apresentar o estudo. Houve transmissão ao vivo pela TV Brasil, diferentemente de outros eventos oficiais dos que Bolsonaro tem participado, que não são mais transmitidos pela TV pública, nem mesmo pelas redes sociais.

“Viemos a público hoje trazer um estudo técnico, onde [se] demonstra, de forma cabal, a evolução da política de transferência de renda no nosso país”, disse o ministro da Cidadania ao apresentar o documento no Salão Leste do palácio.

O documento foi publicado sob a forma de “Nota da Presidência” e é assinado apenas pelo chefe do instituto. Esse tipo de nota foi um instrumento criado recentemente por Figueiredo, e servidores alertam que não é primeira vez que ele produz estudos sem consultar as diretorias competentes e sem submeter as análises à revisão de pares.

Os mesmos funcionários avaliam que o Ipea, órgão vinculado ao Ministério da Economia, foi instrumentalizado pela atual gestão. Uma fonte afirmou que o instituto se transformou em uma “assessoria econômico-eleitoral” do ministro Paulo Guedes e do presidente Bolsonaro. “Nada mais que uma captura sob a forma de ciência”, afirmou a mesma fonte, sob reserva.

Procurado, o Ipea disse que “o presidente tem autonomia para produzir estudos, prerrogativa respeitada nesta gestão e em gestões anteriores. Não há orientação normativa para que o presidente do Ipea consulte alguma coordenação ou diretoria antes de publicar suas pesquisas”.

“O Ipea é um instituto de pesquisa plural que desenvolve trabalhos técnicos para embasar a avaliação e elaboração de políticas públicas”, reforçou a assessoria de imprensa do órgão, adicionando que são “comuns” visões diversas entre pesquisadores.

Emprego e renda

O texto afirma também que o aumento do repasse do Programa Auxílio Brasil representou, entre janeiro e agosto de 2022, aproximadamente 2,5 vezes a perda de renda do trabalho das famílias pobres em decorrência da pandemia de Covid-19.

“Em todas as regiões do país, houve uma relação diretamente proporcional na quantidade de empregos formais gerados e famílias acrescidas ao Auxílio Brasil. Em média, para cada mil famílias incluídas no Auxílio Brasil, há a geração de 365 empregos formais”, diz a pasta da Cidadania.

Para uma das fontes do Ipea, é muito cedo para se tirar essa conclusão. “Propositalmente precipitada”, classificou. Isso porque a massa salarial e o salário médio ainda estão abaixo de 2019 e é preciso considerar ainda que boa parte dos R$ 200 acrescidos são carcomidos pela inflação, uma vez que hoje os preços sobem mais e mais rápido.

A análise dos impactos do Auxílio Brasil neste momento chama ainda mais atenção porque o orçamento para bancar os próximos anos de auxílio é incerto. O adicional de R$ 200 no benefício está limitado a dezembro de 2022. Uma possível extensão precisará ser referendada pelo novo Congresso a ser eleito em outubro.

Leia, na íntegra, a resposta enviada pelo Ipea ao Metrópoles:

O Ipea é um instituto de pesquisa plural que desenvolve trabalhos técnicos para embasar a avaliação e elaboração de políticas públicas. Esses trabalhos atendem à missão do instituto e são produzidos ininterruptamente com liberdade de pensamento e de crítica, sendo comuns visões diversas entre pesquisadores. Assim como qualquer integrante do corpo técnico do Ipea, o presidente tem autonomia para produzir estudos, prerrogativa respeitada nesta gestão e em gestões anteriores. Não há orientação normativa para que o presidente do Ipea consulte alguma coordenação ou diretoria antes de publicar suas pesquisas. O presidente do Ipea, Erik Figueiredo, possui uma trajetória acadêmica que o credencia e analisar, com base em metodologias e dados sempre expostos de maneira transparente, o tema da referida nota: já publicou 66 artigos em revistas científicas, 32 deles sobre pobreza, desigualdade e mobilidade de renda.

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