Sob Bolsonaro, militarização na Saúde bate recorde e ultrapassa ditadura
Levantamento do Metrópoles mostra que são ao menos 18 militares em cargos de chefia. Um feito inédito em 56 anos
atualizado
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O Ministério da Saúde nunca esteve tão verde-oliva. Sequer nos 21 anos da ditadura militar um oficial chegou ao posto máximo do órgão. Pelo contrário. Em um dos períodos mais obscuros da história recente do país, nenhum dos oitos ministros nomeados pertenciam às Forças Armadas.
Após a saída consecutiva de dois titulares da pasta — o médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich —, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) conduziu o general do Exército Eduardo Pazuello ao cargo.
Ao todo, segundo levantamento do Metrópoles, com base em nomeações publicadas no Diário Oficial da União (DOU), são ao menos 18 oficiais em cargos de chefia e estratégicos, como de orçamento, planejamento, logística, contabilidade, avaliação de programas e assessorias especiais. Um feito inédito em 56 anos. A pasta nunca esteve com tantos oficiais em cadeiras de comando.
Desde a chegada de Teich, a pasta vinha sendo povoada por militares. Somente ele conduziu — por intermédio do Palácio do Planalto — ao menos cinco nomes das Forças Armadas. Com Pazuello no comando, o índice saltou. O general nomeou 13 oficias para cargos de chefia nos segundo e terceiro escalões (vejas listas no fim da reportagem).
Pela história
Nos primeiros dias da ditadura, os militares colocaram interinamente na chefia da Saúde Vasco Tristão Leitão da Cunha, formado em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Ele ficou no cargo por oito dias durante a formação do governo e deu lugar a um médico-cirurgião cardiovascular.
Os especialistas da área da saúde não deixaram mais a cadeira de ministro. Por lá, passaram diplomados em clínica cirúrgica, imunologia, virologia, saúde pública, sanitaristas, entre outros.
Para o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Wladimir Gramacho, ocupar o Ministério da Saúde com militares é um “equívoco aventureiro”.
“Seria como colocar médicos sanitaristas para comandar o Ministério da Defesa em meio a uma guerra. Pode dar certo? Pode. Mas para que correr esse risco agora? Quem vai pagar pelo risco de aprendizado dos militares na saúde?”, pondera.
O especialista acredita que os militares são uma corporação de alto nível, treinada e organizada de forma eficiente, mas alerta: “No caso do enfrentamento à pandemia, podem ajudar muito com questões logísticas, no contato com a população e, excepcionalmente, até na garantia da ordem pública. Mas as questões de saúde devem estar a cargo dos profissionais da área. Militares e sanitaristas devem trabalhar juntos nesta crise, mas cada um deles dirigindo a organização que conhece bem. Erros elementares neste momento são imperdoáveis”, avalia.
Os ministros da Saúde durante a ditadura militar:
Vasco Tristão Leitão da Cunha (06/04/64 a 14/04/64)
Formação: ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro
Raimundo de Moura Britto (15/04/64 a 14/03/67)
Formação: cirurgião cardiovascular pela Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro
Leonel Tavares Miranda de Albuquerque (15/03/67 a 29/10/69)
Formação: especialista em clínica cirúrgica pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
Francisco de Paula da Rocha Lagoa (30/10/69 a 18/06/72)
Formação: especialista em imunologia, virologia e saúde pública pela Faculdade Fluminense de Medicina
Mário Machado de Lemos (19/06/72 a 14/03/74)
Formação: médico pela Faculdade de Medicina da Bahia e funcionário concursado do então Ministério da Educação e Saúde
Paulo de Almeida Machado (15/03/74 a 14/03/79)
Formação: médico pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil
Mário Augusto J. Castro Lima (15/03/79 a 29/10/79)
Formação: médico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Waldyr Mendes Arcoverde (30/10/79 a 14/03/85)
Formação: médico sanitarista pela Universidade Federal do Paraná
Realidade vs discurso
A condução de militares para a pasta gera um debate. O discurso negacionista da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, vindo da ala ideológica do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) esbarra na prática adotada pelas Forças Armadas, sobretudo o Exército, ao longo da história que se pauta pela ciência.
O sociólogo Antônio Carlos Mazzeo, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), alerta que usar as Forças Armadas como uma executora de ordens da presidência é um risco. “Ele [o presidente Bolsonaro] se deu o direito de demitir dois médicos que estavam no Ministério da Saúde. Chega a uma situação que de fato fica insustentável”, frisa.
“Algumas pesquisas apontam que já tem 50% de pessoas dizendo que o governo não tem política para a crise. Temos uma crise política permanente que agrava a situação sanitária. O abominável discurso como o de que as pessoas têm mesmo que pegar a doença”, rechaça.
Servidores de carreira incomodados
O secretário-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), Sérgio Ronaldo, afirma que o governo tem usado os militares para implementar um política “genocida” no combate à pandemia.
“O papel do militar não é cumprir missões de especialistas, mas, sim, proteger fronteiras, garantir a ordem. O que vemos hoje no Ministério da Saúde é um amontoado de militares que não têm perfil para o combate. Sabemos que nenhum dos oficiais fez medicina. A partir do momento que o governo nomear [especialistas], será possível combater a Covid-19”, critica.
Versão oficial
Em nota, o Ministério da Saúde informou que “possui um corpo técnico de servidores qualificados” e que mantém a normalidade das atividades da pasta, mas não falou sobre a presença de militares em cargos de chefia.
“Cabe ressaltar que a estratégia de resposta brasileira à Covid-19 não foi prejudicada em nenhum momento. As ações de atenção à saúde, aquisição de insumos e equipamentos continuam sendo adotadas e reforçadas pela pasta a partir de necessidades da população, bem como todas as políticas públicas de saúde”, destaca o texto.
A pasta defende que “as ações de enfrentamento ao coronavírus são intersetoriais, envolvendo todos os órgãos do governo federal”. “As recomendações da pasta são realizadas conforme a compreensão da evolução da doença e de acordo com o cenário epidemiológico no país, com o objetivo da estruturação dos serviços de saúde e viabilizar atividades essenciais, diante da emergência por coronavírus”, conclui o comunicado.
O Metrópoles procurou o Palácio do Planalto e o Exército, mas os órgãos preferiram não comentar. O espaço continua aberto para esclarecimentos.
Os militares nomeados pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello:
- André Cabral Botelho, subtenente de infantaria, coordenador de contabilidade
- Ramon da Silva Oliveira, major, coordenador-geral de Inovações de Processos de Estruturas
- Giovani Cruz Camarão, subtenente, coordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde (FNS)
- Alexandre Magno Asteggiano, capitão, assessor
- Marcelo Sampaio Pereira, tenente-coronel, diretor de programa
- Vagner Luiz da Silva Rangel, tenente-coronel, coordenador de execução orçamentária
- Luiz Otávio Franco Duarte, coronel, assessor especial do ministro
- Angelo Martins Denicoli, major, diretor do Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS
- Mario Luiz Ricette Costa, tenente, na Subsecretaria de Planejamento e Orçamento
- Alexandre Martinelli Cerqueira, coronel, subsecretário de Assuntos Administrativos
- Laura Triba Appi, 1º Tenente, como assessora da Secretaria-Executiva
- Celso Coelho Fernandes Júnior, major, o cargo de coordenador-Geral de Acompanhamento e Execução de Contratos Administrativo
- Paulo César Ferreira Júnior, capitão, diretor de Programa da Secretaria- Executiva
Os militares nomeados pelo ex-ministro da Saúde, Nelson Teich:
- Jorge Luiz Kormann, tenente-coronel, diretor de Programa
- Marcelo Blanco Duarte, tenente-coronel, assessor no Departamento de Logística
- Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes, tenente-coronel, coordenador-geral de Planejamento
- Reginaldo Machado Ramos, tenente-coronel, diretor de Gestão Interfederativa e Participativa
- Emanuella Almeida Silva, terceiro-sargento, coordenadora de Pagamento de Pessoal e Contratos Administrativos