Perdão a Silveira recoloca risco de crise institucional no cenário
Após presidente Jair Bolsonaro conceder perdão a Daniel Silveira, expectativa é que Supremo Tribunal Federal analise teor do decreto
atualizado
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Após o presidente Jair Bolsonaro (PL) conceder perdão ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por estimular atos antidemocráticos e proferir ataques a ministros do tribunal e instituições democráticas (entenda mais abaixo), a atenção se volta para a mais alta Corte do país e uma possível nova crise entre Poderes.
O Supremo tem competência para fazer o controle judicial de indultos. Para isso, no entanto, precisa ser acionado. Na quinta-feira (21/4), diversos políticos disseram que protocolariam Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) na Corte contra o decreto presidencial. Durante eventual análise, o STF pode validar ou julgar o ato como inconstitucional.
Em transmissão ao vivo nas redes sociais, Bolsonaro afirmou que o perdão a Silveira não se direciona somente às penas privativas de liberdade do deputado, mas sim ao afastamento das sanções impostas pela condenação judicial. Como jurisprudência sobre o tema, o chefe do Executivo federal citou trechos de votos dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.
As decisões dos ministros, no entanto, tratavam de indultos natalinos para benefício de um conjunto de pessoas — o Supremo já chegou a validar um indulto de Natal do ex-presidente Michel Temer (MDB) que incluiu o perdão a condenados por corrupção (lembre mais abaixo).
No entendimento de juristas, o instrumento da graça ou indulto individual utilizado por Bolsonaro nunca foi usado no Brasil da forma como foi aplicada a Silveira.
Para o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, a atribuição do presidente é constitucional, porém pouco usual no Brasil. “Acontece muito nos Estados Unidos. O ato extingue a pena, mas mantém Daniel Silveira inelegível. [Mas] Não lembro de atitude igual no Brasil”, disse.
O jurista Lenio Luiz Streck chamou a atenção para o contexto em que o ato presidencial foi anunciado. O julgamento que resultou na condenação de Daniel Silveira terminou perto das 20h de quarta-feira (20/4). Menos de 24 horas depois, Bolsonaro decretou um ato “cheio de simbolismo”, fazendo com que o perdão presidencial possa ser interpretado como um apoio às pautas antidemocráticas defendidas pelo parlamentar e condenadas pelo plenário do STF.
“Há uma armadilha nessa discussão. O gesto de Bolsonaro é político e não jurídico. A juridicidade da ‘graça’ é secundária. Importa é que ele [Bolsonaro] quis socar o STF. Resta ver se conseguiu”, escreveu Streck nas redes sociais.
Segundo o jurista, o decreto “foi o ato mais grave de agressão à democracia cometido por Bolsonaro”. “Ao conceder a graça ao deputado, Bolsonaro ofende STF. Há nítido desvio de finalidade. Se o STF decidiu quais os atos que ferem a democracia, o presidente não pode ser o superintérprete”, pontuou.
Controle judicial
Quando anunciou a “graça constitucional” a Silveira, Bolsonaro disse que o decreto “vai ser cumprido”. A fala foi vista como mais um recado para a Corte Suprema. Especialistas, por outro lado, alertam para eventual mau uso do instrumento, com o desvio de finalidade do perdão da pena, se for constatado que houve violação ao princípio da impessoalidade.
“Esse indulto fere o princípio da impessoalidade. […] O indulto concedido a Daniel Silveira poderá ir ao STF e ter sua constitucionalidade analisada. Mas nada disso é sobre direito. É sobre corrosão constitucional e desgaste democrático que o presidente promove desde que assumiu seu mandato”, explica Eloísa Machado, advogada e pesquisadora sobre o STF, em publicação nas redes sociais.
O advogado criminalista e professor da FGV-SP Celso Vilardi acredita que a atitude do presidente Jair Bolsonaro pode ocasionar uma crise institucional, visto que o Supremo “foi duro e coeso” ao decidir pela condenação de Daniel Silveira. Durante o julgamento, foram 10 votos a favor da penalização do deputado contra apenas um que pedia a absolvição do político.
“Essa decisão pode provocar uma verdadeira crise institucional, porque o STF afirmou que mais importante que a condenação do réu é a defesa da democracia. É uma provocação [de Bolsonaro] ao Supremo”, argumentou, pontuando que a eventual derrubada do decreto presidencial pelo Supremo Tribunal Federal pode acirrar ainda mais os ânimos e aumentar a crise entre o Executivo e o Judiciário.
Em 2017, o então presidente Michel Temer (MDB) editou um decreto de indulto de Natal que beneficiava condenados por corrupção. O ato concedia o perdão para quem tivesse cometido crimes sem violência ou grave ameaça, depois de o preso cumprir um quinto da pena. Antes, era preciso cumprir tempo maior, um quarto. Há diferenças, evidentemente, porque o indulto, ao contrário da graça (que é individualizada), é um instrumento genérico, pois define critérios de abrangência e é aplicado a todos que se encaixarem, não a nomes específicos.
Na época, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entrou com uma ação no Supremo contra o decreto. Segundo ela, o indulto mais generoso seria a causa de impunidade de crimes graves e a Operação Lava Jato seria colocada em risco, assim como todo o sistema de responsabilização criminal.
O caso foi analisado pelo plenário do STF em novembro de 2018 e concluído em maio de 2019. Por 7 votos a 4, o tribunal validou o decreto de Temer e reduziu o tempo de cumprimento das penas a condenados por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, como os de colarinho branco. Na ocasião, a Corte estabeleceu que cabe controle judicial sobre o indulto, inclusive sobre sua razoabilidade, e que esse controle pode anular um induto quando este for inconstitucional.
STF já acena para derrubada
Na avaliação de dois ministros do STF ouvidos pela coluna do jornalista Guilherme Amado, do Metrópoles, o perdão de Bolsonaro a Silveira é “inconstitucional”. Segundo os magistrados, o indulto individual deve seguir uma série de critérios nos quais o caso do deputado federal não se encaixa, ao menos neste momento.
Ao jornal O Globo, o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello criticou o decreto presidencial e definiu o ato como “algo inconcebível”.
“É algo inconcebível, segundo princípios implícitos na Constituição, um perdão tão individualizado. Saindo alguma coisa direcionada hoje, ressoará, a meu ver, de forma negativa. Aumenta apenas o descompasso, consideradas as instituições. Tem o Poder Judiciário de um lado, e o Legislativo e o Executivo de outro”, disse.
Integrantes da Corte Suprema relataram ao jornal Folha de S.Paulo que o ato é “surreal” e reconheceram que os questionamentos judiciais relacionados ao decreto podem tensionar ainda mais a relação entre Poderes.
Ao longo do mandato à frente do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro tem criticado repetidamente o Supremo Tribunal Federal – ora de forma mais violenta, ora com críticas mais leves. Do ano passado para cá, ele passou a direcionar os ataques a três ministros da Corte que também integram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE): Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. O presidente costuma dizer que esses magistrados acham que são os “donos da verdade”.
O chefe do Executivo federal diz não criticar Poderes, mas autoridades. Após manifestação de 7 de Setembro, no ano passado, o presidente chegou a pedir ao Senado o impeachment de Moraes, o que não prosperou.
Recentemente, aconselhado pelo comitê que trabalha pela sua reeleição como presidente da República, Bolsonaro passou a intensificar os ataques aos ministros. O grupo é liderado pelo Centrão. Na avaliação do Planalto, críticas ao STF e ao sistema eleitoral acenam à base mais radical, que teve grande influência na eleição de Bolsonaro em 2018.
Perdão a Daniel Silveira
No início da noite de quinta-feira (22/4), o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que concede perdão às penas impostas pelo Supremo Tribunal Federal ao deputado Daniel Silveira.
No dia anterior, o plenário condenou o parlamentar a 8 anos e 9 meses de prisão em regime fechado por estímulo a atos antidemocráticos e ataques a ministros do tribunal e instituições como o próprio STF.
Durante o julgamento, o relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes, também estabeleceu a perda do mandato e dos direitos políticos de Silveira e uma multa de R$ 200 mil. Nove ministros acompanharam o voto de Moraes. O único a votar pela absolvição do parlamentar foi Kassio Nunes Marques.
O primeiro efeito da condenação é a inelegibilidade. Ela será reconhecida judicialmente se e quando Daniel Silveira pedir registro de uma candidatura. Quanto à perda do mandato, o Supremo, depois do trânsito em julgado da ação, vai comunicar a decisão para a Câmara dos Deputados, onde deve ser procedido o trâmite interno. O presidente Arthur Lira (PP-AL) defende que a perda de mandato seja discuta pelos parlamentares. A prisão também não ocorre de imediato, porque ainda cabe recurso.
Acusação
Daniel Silveira é aliado de Jair Bolsonaro e dos filhos do presidente. O deputado é acusado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de coação no curso do processo, incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo Tribunal Federal, e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União. A PGR defendeu a condenação do deputado.
Durante o julgamento, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, citou diversos crimes cometidos por Silveira e disse que as falas e ameaças contra instituições foram “vexatórias”, “inaceitáveis” e constituem “afronta à democracia”.
“Não se pode permitir que a força ou violência contra membros de instituições essenciais possam ser legitimamente concedidas no espaço público. Inviolabilidade do parlamentar não alcança, a despeito dos termos abrangentes, o apelo à violência, declarações carregadas de grave ameaça”, salientou Lindôra.
Defesa
A defesa de Silveira foi feita pelo advogado Paulo Faria. Durante o julgamento, ele disse que o parlamentar é algo de um “julgamento político”.
“Se aconteceram excessos pessoais, eu entendo que se deve respeitar o princípio acusatório. O juiz não pode ser o julgador e vítima. O caminho seria representação por calúnia e difamação. Não há que se falar de coação no processo, porque não houve”, alegou o advogado.
Nas alegações finais, Faria ainda defendeu a existência de nulidades processuais, como o não oferecimento de acordo e a extinção do crime no que se refere à incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo, e à prática de crimes contra a segurança nacional.
Histórico
Daniel Silveira virou réu em abril do ano passado no inquérito que apura atos antidemocráticos. Em fevereiro de 2021, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, ele foi preso por ter publicado um vídeo no qual defende o AI-5 – o instrumento de repressão mais duro da ditadura militar – e a destituição dos ministros do Supremo Tribunal Federal. As incitações feitas pelo deputado são inconstitucionais.
Durante a investigação, o deputado foi alvo de outro pedido de prisão e medidas restritivas, uma vez que ele descumpriu ordens judiciais ao deixar de usar tornozeleira eletrônica e se comunicar com outros investigados do inquérito.
Em março deste ano, Moraes determinou que o deputado voltasse a usar tornozeleira eletrônica. Silveira se recusou a cumprir a medida. Ele só obedeceu à ordem judicial depois que o ministro do STF determinou o pagamento de uma multa diária de R$ 15 mil e bloqueio das contas do parlamentar.
Momentos antes do julgamento dessa quarta ter início, Daniel Silveira chamou Moraes de “marginal”, “reizinho” e “menino frustrado”.