“O que é pago de propina sai do nosso bolso”, diz a “mãe” da Lava Jato
Érika Mialik Marena conversou com o Metrópoles sobre os desafios da profissão, demandas da categoria e sobre a possibilidade de ser a primeira mulher na direção da Polícia Federal. Trabalhando na força-tarefa que investiga fraudes e desvios, a policial contou como escolheu o nome da operação
atualizado
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Curitiba – A Lava Jato deixa marcas por onde passa. Milhões e milhões repatriados; políticos, até então, intocáveis, presos ou intimados. O maior escândalo de corrupção do país ganhou repercussão internacional. Cada desdobramento do caso é acompanhado atentamente por brasileiros, que se chocam com os detalhes das fraudes e desvios. O Metrópoles esteve em Curitiba e entrevistou um personagem importante dessa história: a delegada da Polícia Federal Érika Mialik Marena. Ela, que é a preferida para comandar a PF por votação dos colegas, deu nome à operação. Por isso, é conhecida como a “mãe” da Lava Jato.
Para Érika, tanta atenção aos desdobramentos das investigações se justifica: “O que é pago de propina sai do nosso bolso. Se esse valor ficasse nos cofres públicos, quantos recursos a mais o Estado não teria para investir em saúde, educação e segurança, por exemplo?”.
A delegada, que iniciou carreira na polícia em 2003, ocupa o primeiro lugar da lista tríplice da Polícia Federal. Caso o presidente em exercício Michel Temer aceite as indicações da corporação, ela poderá ser a primeira mulher a ocupar o cargo máximo da corporação. Érika recebeu a reportagem no Paraná para uma conversa.Ela aceitou conceder a entrevista na condição de representante da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e como integrante da lista tríplice. Delegada há 13 anos, Érika é especialista em combate a crimes financeiros. Nasceu em Apucarana, município ao Norte do Paraná, a 369 km da capital.
História
Começou a cursar direito em 1993, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Trabalhou no Banco Central e no Poder Judiciário. Ingressou na PF em 2003 já no cargo de delegada na Superintendência de São Paulo. Na capital paulista, atuou na Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros (Delefin). A unidade tinha acabado de ser criada.
Voltou para Curitiba para trabalhar na força-tarefa CC5, que envolveu o caso Banestado. “Foi um desafio porque não é uma área que todos têm facilidade”, lembra. Érika fez parte da Operação Farol da Colina, a primeira grande ação da Polícia Federal no combate a crimes ao sistema financeiro. Na ocasião, grandes doleiros foram presos de Norte a Sul do país.
Encerradas as investigações, a delegada passou a integrar o Grupo de Repressão aos Crimes Financeiros, na capital paranaense. Em 2012, o grupo se transformou em uma delegacia, a Delefin que, até esse período, existia apenas em três capitais. Ela chefiou o departamento e atuou no inquérito instaurado em 2013, o embrião da Lava Jato. De acordo com a delegada, a operação é fruto de trabalho em equipe e, principalmente, da insistência dos investigadores.
Quando a operação começou, recebemos um relatório de monitoramentos indicando que não havia fatos a serem investigados. Insistimos na história. Ao fim do expediente, sentávamos e fazíamos toda a escuta sozinhos.
O nome
Questionada sobre o nome escolhido para a Lava Jato, Érika conta que estava sozinha na sala em que trabalha quando foi registrar a operação no sistema. O programa pede que a ação receba uma denominação. Ligou para o também delegado Márcio Anselmo – titular do caso e “pai” da Lava Jato –, que estava viajando, e pediu sugestões. Ele falou que poderia até colocar um nome provisório, mas que ficaria a critério dela.
“Pensei: o posto está sendo usado, provavelmente, para lavar dinheiro. E as informações preliminares indicavam que os valores envolvidos eram muito altos. Então, me veio a ideia de um lava-jato, porque aquilo era muito mais do que um lava-car”, conta a delegada, explicando que o jato se refere a avião. Ela se recorda que não fazia ideia sobre a repercussão que a ação ganharia e se diverte ao lembrar dos questionamentos dos colegas: “´Uma operação dessa importância, não tinha um nome melhor?’ Eu falo que não sabia da dimensão, mas que na hora foi o nome que surgiu na minha cabeça”, brinca.
O reconhecimento da população é outro fator que estimula a delegada. A começar pelo prédio em que trabalha. A sede da PF em Curitiba é cercada por laços confeccionados em tecidos verde e amarelo. Por lá, foram afixados cartazes e faixas em apoio à operação.
O edifício virou um ponto turístico na cidade, entrou no calendário de visitas realizadas por escolas de região e, até mesmo, de encontros de motoqueiros, que já se reuniram no local para dar um abraço simbólico no prédio da Polícia Federal. O clima contagiou toda a cidade. Os carros têm adesivos de incentivo aos investigadores da Lava Jato. Em algumas casas, é possível encontrar até fotos do juiz federal Sérgio Moro.
Confira o bate-papo com a delegada:
Há tentativas de interferência nas investigações da Lava Jato?
Nós, delegados, não sofremos interferência direta nas investigações. Não há censura, temos independência. No entanto, existem outros meios de se fazer essa intervenção, cortar recursos é uma delas. Se você tira da polícia a capacidade de aprimorar seus serviços, contratar mais gente, de se equipar, você, indiretamente, tira dela a capacidade de investigar. O valor de investimento da PF vem caindo desde 2009. Temos unidades que estão com carros parados porque não tem mais contrato de manutenção. Só que é um quadro que ninguém vê.
A autonomia orçamentária da Polícia Federal seria uma saída?
Investir na polícia é investir na saúde, na educação, porque coibindo a corrupção nessas áreas você, consequentemente, ajuda que, em desvios futuros, o corrupto pense duas vezes. Já parou para imaginar se essa corrupção não existisse? O Brasil é um país muito rico. O que é pago de propina não sai do bolso da empresa, sai do nosso bolso. Se esse valor ficasse nos cofres públicos quantos recursos a mais o Estado não teria? Mas, hoje, o valor da propina é embutido. É o custo da propina, o custo do Brasil. Um dinheiro que ia somar para áreas que padecem é desviado para contas obscuras.
A escolha de um nome da lista tríplice pode fortalecer as investigações contra a corrupção?
A lista oferece a possibilidade para a comunidade de ter uma polícia conduzida por pessoas que não devem sua indicação a ninguém, a não ser à própria polícia. Todos os indicados apresentaram o seu trabalho e suas ideias para todos os delegados que votaram. Qualquer um dessa lista tem legitimidade. Acatar a lista é um sinal de que o governo quer a polícia fortalecida, com uma indicação isenta, técnica e que priorize mais o combate à corrupção. Todos os indicados têm em comum a convergência de ideias. Qualquer um dos nomes tem o meu total apoio porque vai fazer com que o combate à corrupção não seja prioridade apenas no discurso.
A lista fortalece a necessidade de se ter um comando desvinculado de indicação política?
Se você tem investigações delicadas, politicamente falando, que podem gerar constrangimento ao gestor da unidade, ele vai realocar recursos em setores que não trarão incômodo. Se o gestor não quer ter inconveniente político de investigações que acabem resultando em operações, denúncias e prisões, pode simplesmente realocar recursos dando priorização para outras áreas de investigação. Nesse caso, o delegado fica com as denúncias de corrupção, desvio de verba, patinando, sem auxílio, sem apoio, e sem muita perspectiva.
A estrutura de investigação da Lava Jato é suficiente?
Quando a Lava Jato tomou essa dimensão, nós conversamos aqui e decidiram formar um grupo. Essa equipe, atualmente, tem cerca de 10 delegados. Mas três serão afastados por períodos indeterminados. Temos também um número variável de agentes, escrivães e peritos. O efetivo poderia ser mais robusto, uma vez que é a maior operação contra a corrupção da história do Brasil.
Como é a realidade dos delegados da PF no Brasil?
Temos 500 cargos vagos, muitos ainda vão se aposentar. Ainda não vimos nenhuma iniciativa concreta no sentido de repor esse contingente. O que isso significa? Que mais casos terão de ser divididos entre mais delegados. E eles, hoje, não contam com uma equipe de investigação. Você precisa de uma diligência, tem poucos agentes para atender pedidos de vários delegados. Eles não são vinculados aos casos. Você só tem equipes de investigação quando tem uma operação, mas alguns casos que poderiam virar operação, às vezes não ganham tanta celeridade exatamente porque não temos equipes.
Como é a rotina dos integrantes que atuam na força-tarefa?
Muitos já tiveram que trabalhar passando por cima de problemas pessoais graves. Alguns não puderam ir para o enterro de familiares, policiais que tiveram uma situação de doença grave na família e não acompanharam adequadamente. A maioria já deu expediente doente, esse caso é normal aqui. Ninguém aguenta trabalhar 10 ou 12 horas por dia, há três anos, sem fim de semana e feriado. Hoje, o ritmo ainda é forte. A diferença da Lava Jato é que você nunca fica sem trabalhar. Com internet, grupos, e-mail, você está em casa e acaba lendo algo importante, conversa com os colegas.
É possível prever um fim para a operação?
Não tem como falar em fim de alguma coisa. Enquanto você coleta uma evidência em um inquérito, nesse caso (da Lava Jato) são centenas. E se ele indica um possível crime, você é obrigado a investigar. É obrigação das autoridades apurar.
Há possibilidade de surgirem outras operações semelhantes à Lava Jato em outros estados?Hoje, tenho a convicção de que temos inquéritos de Norte a Sul que poderiam virar uma Lava Jato. Se cada delegado tiver uma equipe de dois agentes e um escrivão, pelo menos, eles irão se aprofundar nas investigações. Mas tem muita coisa sendo feita por pouca gente. Peguei muitos inquéritos de desvio de verba que eu queria sentar e investigar cada detalhe, mas se eu parasse para fazer isso em todos, não ia sair do lugar. Temos que cumprir prazos, vamos dando andamento dentro das nossas possibilidades.
A Lava Jato não significa que a PF está bem, significa que ela precisa de ajuda. Mostra o esforço de uma pequena equipe que se sacrificou ao longo desse tempo e que até hoje luta para não se ver diminuída. Quantos casos mais não poderiam surgir como esse?
Qual vai ser o maior legado que a investigação vai deixar?
Fora as consequências legais que estão aí para todo mundo ver, prisões, repatriações, recuperação de ativos, se a gente conseguir deixar como legado um pouco de medo já vai ser bom. Ainda que não dure muito tempo, mas essas pessoas não terão mais a garantia da impunidade. Irão pensar duas vezes antes de fazer. O que leva à corrupção é a avaliação do custo benefício. Avaliam qual a chance de serem pegos, quanto tempo irão passar na prisão. Por que esses doleiros (envolvidos na Lava Jato) já eram conhecidos da polícia? Por que que nunca saíram do esquema? Porque vale a pena, o custo benefício vale a pena.
Por isso a importância de criminalizar com mais rigor a corrupção, acabar com o foro privilegiado, que é uma aberração. Hoje, não existe nada que justifique a manutenção dessa prerrogativa que somente serve para entupir a nossa Corte superior. O que justifica esse privilégio? Muitos contam com a prerrogativa do foro. Fortalecer a PF também auxilia nesse combate. A nossa única chance de apoiar o combate à corrupção é apoiar a PEC 412.
A operação, em breve, vai virar série de TV, já se transformou em livros. Como a senhora se sente ao ler os jornais ou ouvir os noticiários e ver essa repercussão?
Sinto orgulho de trabalhar com policiais dedicados sabendo o custo pessoal que tem para os que estão aqui. Quem trabalha há mais tempo na área de corrupção já investigou tudo quanto é partido, ou pessoas vinculadas a eles. Não falamos de política, não trabalhamos pensando na consequência política da investigação. Para nós é consequência. Ficamos empolgados com a investigação.
O mais importante é que esse acompanhamento da sociedade não deixou a operação ser enfraquecida. Hoje, quantos recursos foram apresentados nas cortes superiores. Menos de 10% foram aceitos. Significa que os tribunais estão sustentando as decisões tomadas em primeira instância. Ao contrário de operações passadas, quando rapidinho se achava um argumento qualquer para se anular uma prisão.
Como a senhora avalia as propostas que tramitam no Congresso e restringem o uso da colaboração premiada? O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chegou a apresentar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contestando a possibilidade dos delegados proporem delações…
Infelizmente, para mim, é uma medida incoerente. Querem melhorar o combate à corrupção, mas, por outro lado, enfraquecer um instrumento de investigação da polícia sob o argumento de que somente o promotor ou procurador pode oferecer o acordo. Contudo, vale lembrar que a polícia não vai fechar a colaboração e obrigar o procurador ou o juiz a homologar.
O que a lei permite é que o delegado colha o que o investigado tem a colaborar, faça a proposta de acordo e isso é apresentado ao Ministério Público. Para a polícia, essa medida é um instrumento de apuração e, para o investigado, uma defesa. Tirar essa possibilidade no momento em que você quer fortalecer o combate à corrupção, ao meu ver é incongruente. Nós acreditamos que o Supremo Tribunal Federal vá analisar esse caso com a cautela necessária.