“Me criticaram por eu não ter interferido na Lava Jato”, diz Cardozo
Ao Metrópoles, ex-ministro afirmou ter deixado a política “de forma dolorida”, e agora atua exclusivamente na advocacia – curiosamente, no processo que tirou o mandato da senadora Selma Arruda (PSL-MT) por caixa 2
atualizado
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Passados mais de dois anos desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o ex-deputado federal e jurista José Eduardo Cardozo hoje classifica como “dolorido” o trâmite de todo o processo que resultou no afastamento definitivo da ex-titular do Palácio do Planalto. Ex-ministro da Justiça durante a gestão da petista – ocupou a pasta por cinco anos –, ele deixou o cargo no segundo mandato de Dilma para assumir a Advocacia-Geral da União e, posteriormente, a complicada defesa da então comandante do Executivo federal.
Também ex-dirigente do Partido dos Trabalhadores (PT), Cardozo se mantém, até os dias atuais, como um aliado remanescente de Dilma, a quem considera como uma “grande amiga”. “Foi o momento mais difícil da minha vida”, diz ele sobre o impeachment, durante entrevista exclusiva ao Metrópoles.
Sem qualquer interesse no retorno à política – informou aos eleitores desde 2010 que não seria mais candidato –, Cardozo decidiu focar a carreira na advocacia, na vida acadêmica e nos livros. Recentemente, atuou como advogado de acusação no processo que resultou na cassação do mandato da senadora Selma Arruda (PSL-MT), aliada do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Eleita com o mote de combate à corrupção, a congressista acabou sentenciada a perder a cadeira no Senado Federal quando a Justiça Eleitoral matogrossense, por unanimidade, acolheu os argumentos de Cardozo sobre práticas de caixa 2 e condenou em primeira instância a parlamentar.
“Ao assumir uma causa, não tenho critérios políticos e ideológicos. Atendo integrantes de vários partidos, quando eu considero que a causa não contraria minimamente meus pressupostos éticos. No caso dela, não foi uma opção política. Eu nunca vi, em anos de atividade política e profissional, um processo com tanta prova de despesas não contabilizadas de caixa 2 como nesse caso. E com prova documental, o que não é simples de se comprovar”, detalha. “Quando eu olhei o processo, falei: é inacreditável. A possibilidade de o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] manter essa decisão é muito grande, se a lei for cumprida”, acredita.
Veja a íntegra da entrevista:
Sob pressão
José Eduardo Cardozo atuou no ministério hoje ocupado por Sergio Moro durante o auge da Operação Lava Jato, quando o atual titular ainda era o juiz federal responsável pelos processos. Nesse período, reconheceu, foi pressionado por lideranças partidárias, inclusive do próprio PT, para usar o prestígio do cargo para atuar contra o andamento natural das investigações.
“Eu estava num estado de exaustão completo naquele ministério, porque eu apanhava da esquerda, da direita, do centro, do lado, de costas… Isso porque a investigação continuava e a presidenta nunca me pediu que tomasse nenhuma medida. Ela me falava o seguinte: ‘Não aceite abusos’. E todo abuso que eu achava que tinha, o qual estivesse sob minha alçada, eu abria inquérito, abria sindicância… Nunca fiz e nunca me pediram para que eu interferisse”, afirma.
A postura da ex-presidente, contudo, não foi seguida, segundo ele, por correligionários e aliados do PT. “Havia setores partidários que me criticaram por eu não interferir na operação. Não digo o PT, mas setores partidários. Mas eu acho que isso aconteceu mais por incompreensão sobre o papel do ministro da Justiça do que [por] outro [motivo]”, destaca.
‘Você não é o chefe da Polícia Federal? Então acabe com o abuso.’ Veja: se o abuso vem de uma ordem judicial, o que eu faço? É o juiz, é o CNJ [Conselho Nacional de Justiça], é o Judiciário que têm que apurar, não eu. E se um delegado [federal] cumpre uma ordem judicial, não tem indício de ilegalidade para que seja usado contra ele. Sempre falaram que eu sou republicano demais, mas nunca vi isso como uma crítica
José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça
Sergio Moro
Apesar disso, o ex-ministro elevou o tom ao criticar a postura dos condutores da maior operação já realizada no Brasil contra a corrupção. “O abuso de autoridade é um crime que tem que ser combatido vigorosamente. Acho, exatamente por isso, que situações que ocorreram na Lava Jato têm de ser colocadas sob a luz do sol. Eu não posso condenar pessoas por convicções, sem provas. Eu não posso escolher réus, prendendo pessoas para que delatem outras pessoas, colocando elas na situação de ‘ou falam ou permanecem presas’, porque daí sai mentira, sai violação a direito. A época da tortura já acabou”, indigna-se.
José Eduardo Cardozo reconheceu a importância de Sergio Moro atuar no Ministério da Justiça para combater a corrupção. Contudo, afirmou não ser essa a única função da pasta comandada pelo ex-juiz. “Ele cuida de muitos outros assuntos que não podem ser desprezados. Um deles é a segurança pública. E segurança pública não se faz só com projeto de lei, elevando pena”, aponta, ao comentar sobre o pacote anticrime encaminhado por Moro ao Congresso Nacional.
O tom crítico permaneceu sobre a política de aprisionamento, que, segundo ele, é o principal conteúdo desse projeto do atual ministro. “Os presídios se transformaram em formas de cooptação de criminosa. Então, eu boto lá uma pessoa que não precisa ser presa, e ela entra como batedor de carteira e sai membro de uma organização criminosa”, compara
“Ministro da Justiça não é super-homem”
O advogado também condenou a junção da “política de encarceramento” com a de “distribuição de armas”, que consta em decreto recentemente assinado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. De acordo com Cardozo, o texto do Planalto “ofende o Estatuto das Armas, ofende a Constituição”. “É a negação do combate à violência. Os estudos mundiais comprovam: é um erro. É doloroso ver isso. Arma não é instrumento de defesa – às vezes até é, mas, na maioria das vezes, é de ataque”, opina.
Em autocrítica, reconheceu não ter feito o suficiente durante a própria gestão no ministério. “Mas fiz o que foi possível”, ponderou. “Não existe ministro da Justiça super-homem”, justificou.
José Eduardo Cardozo também criticou a tentativa do atual ministro da pasta, Sergio Moro, de tentar transferir para a estrutura que comanda o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), hoje subordinado ao Ministério da Economia. A investida, contudo, foi derrotada no plenário da Câmara dos Deputados. “A concentração das áreas de inteligência nas mãos do ministro da Justiça torna o titular da pasta superpoderoso e até mais poderoso que o próprio presidente da República. Os órgãos de inteligência têm de ficar subordinados às suas respectivas áreas e submetidos a quem foi realmente eleito”, defende.
Venezuela
O conflito civil vivido na Venezuela, o qual tem atraído atenção de vários países, incluindo o Brasil e os Estados Unidos, na opinião do ex-ministro, deve ser problema exclusivo dos venezuelanos. “Eu tenho críticas sobre o que acontece naquele país, mas não posso aceitar interferências externas como o que acontece lá. Acredito que o Brasil pode ser um mediador, não um incentivador do conflito”, ressalta.
“Eu não posso concordar com isso. Esse alinhamento que se faz, automático, um país subordinado aos Estados Unidos, nega o amor à pátria que quem faz isso diz que tem. Nós fomos o país ‘do cara’ [termo usado pelo ex-presidente Barack Obama para se referir ao ex-presidente Lula], e hoje nós vivemos um amesquinhamento, viramos alvo de piadinhas internacionais. Como brasileiro, fico muito triste com a zombaria que estamos vivendo neste momento perverso de nossa história”, conclui.