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Mara Gabrilli: “Governo segue rumo à segregação de pessoas com deficiência”

A senadora, que é tetraplégica, quer a anulação do decreto que instituiu a Política Nacional de Educação Especial

atualizado

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Marcelo Camargo/Agência Brasil
deputada mara gabrilli
1 de 1 deputada mara gabrilli - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Aos 26 anos, a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) ficou tetraplégica após capotar com o carro, voltando de um fim de semana no balneário de Trindade, extremo sul do Rio de Janeiro. Ela quebrou o pescoço no acidente ocorrido em agosto de 1994 e passou a depender de outras pessoas até para mudar de posição na cama.

Desde então, a psicóloga e publicitária vem colecionando feitos na defesa de direitos de pessoas com deficiência, quer por meio do instituto que leva seu nome e apoia atletas com deficiência, quer por meio da política.

Hoje senadora, ela preside a Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Já foi secretária da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo, vereadora e deputada federal. Em 2018, foi eleita para integrar o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência na Organização das Nações Unidas (ONU).

Nesta semana, Gabrilli contestou os novos rumos da política para deficientes lançada pelo governo.

“Essa nova política do governo caminha rumo à segregação, não à inclusão”, enfatizou a parlamentar, em entrevista ao Metrópoles.

“Ela dá possibilidade de gestores de escolas regulares, especialmente as particulares, continuarem a negar o acesso à inclusão escolar a estudantes com deficiência”, alegou a senadora, referindo-se à Política Nacional de Educação Especial (PNEE-2020), já oficializada por meio do decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo ministro da Educação, Milton Ribeiro, e pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.

Pompa e circunstância

O lançamento da política contou com pompa e circunstância e com a presença da primeira-dama Michelle Bolsonaro. A cerimônia no Palácio do Planalto, na qual Michelle pode exibir sua habilidade na Língua Brasileira de Sinais (Libras), foi anunciada como comemoração do governo ao Mês dos Surdos.

O decreto, no entanto, não agradou quem luta, há anos, pela inclusão das pessoas com deficiência na escola e na sociedade. Nesta semana, Mara Gabrilli e o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentaram um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para anular o decreto que cria o PNEE-2020.

Confira a entrevista:

A senhora apresentou, em conjunto com o senador Fabiano Contarato (Rede-ES), um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para suspender a Política Nacional de Educação Especial (PNEE-2020), lançada pelo governo. O que esse decreto traz de retrocesso em sua opinião? 

Infelizmente, o nova política não está alinhada ao modelo de direitos humanos da deficiência, segundo o qual as barreiras existentes na comunidade e nas escolas são as responsáveis pela exclusão, e não os impedimentos pessoais das pessoas com deficiência. A PNEE 2020 retorna ao ultrapassado modelo médico ao colocar claramente entre suas diretrizes e ações que cada aluno com deficiência será avaliado e poderá ser buscado um modelo alternativo à escola comum quando ele não se adequar ou não tiver condições.

Se tal avaliação é destinada somente às crianças, adolescentes e jovens que têm uma deficiência, poderia ser considerada como discriminação, em razão da deficiência e ferir os compromissos que o Estado brasileiro assumiu ao ratificar a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência com força de norma constitucional.

Na prática, o que determina o decreto?

Essa nova política do governo caminha rumo à segregação, não à inclusão. Ela dá possibilidade de gestores de escolas regulares, especialmente as particulares, continuarem a negar o acesso à inclusão escolar a estudantes com deficiência. E faz isso sob a alegação de que o melhor para os alunos é a escola especial. Não cabe a nenhuma escola selecionar alunos dessa forma. Cabe à escola acolher bem a todos que a buscam.

O modelo social de deficiência trazido pela Convenção das Nações Unidas é um desafio compartilhado por todos os Estados-Partes da Convenção na sua implementação. O Relatório de Monitoramento Global da Educação 2020 da Unesco deixa essa questão muito clara ao apontar que não se trata de uma tarefa fácil ou simples avançar em direção a sistemas educacionais que atendam às necessidades de todos os estudantes, incluindo aqueles com deficiências graves. Gera desgastes e, algumas vezes, confrontos, como os que estamos presenciando nesse momento. No entanto, a Unesco levanta uma questão importantíssima: já não se trata mais de debater os benefícios da educação inclusiva, isso seria o equivalente a debater os benefícios da abolição da escravatura ou mesmo do apartheid.

Em sua opinião, faltou sensibilidade ou mesmo entendimento do governo sobre o papel da escola na questão da inclusão?

Faltou compreender, em primeiro lugar, que a política deveria ser voltada para derrubar as barreiras arquitetônicas, comunicacionais e pedagógicas existentes para que a escola seja uma espaço acolhedor e de conhecimento e aprendizagem para todos, sem exceção. Temos inúmeros desafios nesse sentido ainda, inclusive para as pessoas que não têm deficiência, já que a educação como um todo no Brasil necessita de muitos investimentos.

Além disso, a escola é o primeiro espaço de convívio social e de cidadania para qualquer pessoa. Não podemos furtar as pessoas com deficiência de conviverem com sua geração nestes espaços comuns, assim como não podemos furtar as pessoas sem deficiência de conviverem, desde a mais tenra idade, com a diversidade humana, com os potenciais e com as características que cada indivíduo tem. Esse é o colorido da vida real, a sua riqueza, e só pode trazer benefícios a todos.

O decreto, em sua opinião, fere a lei brasileira? É inconstitucional?

Fere a própria ideia de inclusão, nos termos da farta legislação que temos hoje em vigor, como a Lei Brasileira de Inclusão, que determina justamente a oferta de sistemas inclusivos para todos, em todos os níveis de ensino. E é inconstitucional pois contraria disposições da Convenção da ONU que foi ratificada pelo Brasil com status de emenda à Constituição.

É necessário a gente lembrar que a Lei Brasileira de Inclusão prevê multa e reclusão a qualquer gestor que recusar ou dificultar o acesso do aluno com deficiência à escola. As escolas precisam receber acolher, atender e trabalhar pelo desenvolvimento saudável desse aluno.

Como a senhora se sentiu ao ver uma luta de anos pela inclusão ainda não ser entendida pelo governo como necessária?

O PNEE 2020 está retrocedendo a 1989, quando da criação da primeira política nacional voltada aos direitos das pessoas com deficiência e que ainda falava em integração, um conceito anterior à inclusão. Na educação, falava da matrícula para alunos com deficiência “capazes de se integrarem no sistema regular de ensino”. Esse é um conceito ultrapassado.

Era como se as pessoas com deficiência fossem máquinas com defeito que deveriam ser corrigidas para serem integradas.

A Convenção da ONU trouxe, em 2006, outro olhar e o modelo social, segundo o qual a deficiência está no meio, nas edificações sem acessibilidade e na discriminação, não na pessoa. A inclusão não pressupõe ‘ses’: se ele puder, se ele melhorar, se ele tiver condições. Não. A inclusão necessita de um estado eficiente que ofereça todas as condições de acesso, permanência e aprendizado. É muito desafiador. Temos muito ainda a fazer, a começar pela acessibilidade física, que talvez seja a mudança mais simples, já que a maioria das escolas ainda não é acessível em termos arquitetônicos. Muitas não têm nem saneamento básico. Mas, certamente, não é retroagindo 30 anos que vamos avançar.

O que a senhora diz para as pessoas que ainda acreditam que a convivência com deficientes no âmbito escolar pode atrapalhar o desenvolvimento de seus filhos?

Primeiro, que eles são pessoas, crianças como seus filhos, e que têm uma característica ou um impedimento a mais. Somente isso. Tento sensibilizá-los para que ampliem sua visão de mundo e vejam, que mesmo com algum impedimento, essa criança tem potenciais e habilidades, assim como sonhos e desejos, e podem sim ensinar muito aos colegas e professores.

Gosto muito de citar o exemplo do Stephen Hawking, que era um cientista brilhante, mas sobretudo porque inspirou seus pares na universidade a criarem dispositivos, tecnologias e a melhorarem todo o ambiente acadêmico. Imagine o quanto o mundo perderia se seguíssemos esse conceito retrógrado de que, devido à gravidade da sua deficiência, não seria permitido que Hawking continuasse estudando.

Uma escola boa para uma pessoa com deficiência se torna melhor ainda para todos os alunos. É por esse ideal que a gente luta.

A senhora é autora do Estatuto da Pessoa com Deficiência. A senhora acha que será possível implementá-lo de forma satisfatória no Brasil?

Sim, claro que acho. Temos muito desafios, mas já temos avanços a celebrar. O mais importante é ter em mente que a inclusão é um processo contínuo, não um ponto final.

A senhora chegou a conversar com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para pedir urgência na tramitação do PDL? Qual a perspectiva desse PDL ser votado, visto que o decreto já está em vigor?

Precisamos fazer uma grande mobilização antes de colocar o PDL em votação. Toda a sociedade deve se envolver. O tema é extremamente importante, sensível e não podemos permitir que ele seja inserido no atual cenário de polarização política. Assim, antes de pautá-lo é preciso garantir que todos os parlamentares tenham plena consciência da gravidade do decreto. E que consigamos derrubá-lo sem nos preocuparmos com as possíveis negociações em que se trocam votos por cargos.

Faltou ouvir a sociedade antes de apresentar a PNEE? Foi algo imposto pelo governo?

Faltou transparência e diálogo no processo. O atual governo utilizou uma minuta do governo Temer, de 2018, e que foi objeto de muitos protestos na ocasião, porque uma parcela muito significativa da sociedade não participou ou foi ouvida na sua elaboração. Depois, a própria consulta pública realizada pela SECADI (uma secretaria que foi extinta pelo atual MEC) na ocasião aconteceu entre 6 e 23 de novembro, pouco mais de 15 dias.

O Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência) declarou publicamente que não teria tempo de se reunir, deliberar e manifestar-se em tão pouco tempo. A título de exemplo, a consulta pública que fizemos durante a relatoria da Lei Brasileira de Inclusão durou 6 meses. No caso do PNEE 2020, o governo deixou passar dois anos, seguiu sem conversar com uma parcela expressiva da sociedade, e de repente, publicou o decreto e, mais uma vez, sequer consultou o Conade a respeito. Diversas organizações de defesa de direitos e ativistas vêm se posicionando contrários e surpresos com o documento.

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Hoje os Ministérios Públicos Estaduais e o Ministério Público do Trabalho publicaram nota contrária ao decreto, afirmando que a nova regra fere a Constituição Federal e a Convenção da ONU. Não foram promotores ou procuradores individualmente. Os órgãos se manifestaram institucionalmente, em ato coletivo de todos os estados, já que é de sua responsabilidade a proteção de interesses coletivos, difusos, individuais homogêneos e individuais indisponíveis da pessoa com deficiência. Infelizmente, na prática, a nova política abre a possibilidade de gestores de escolas regulares, especialmente as particulares, continuarem a negar o acesso e a inclusão escolar de pessoas com deficiência, sob alegação de que o melhor para elas é a escola especial.

Senadora, mudando um pouquinho de assunto, o projeto que permite o plantio da maconha no Brasil aguarda aprovação da Câmara e sofre resistências da bancada evangélica na Casa. Recentemente, membros da bancada estiveram com o ministro da Justiça, André Mendonça, argumentando que essa matéria-prima para o canabidiol não pode ser produzida no Brasil e que há alternativas, que não ao plantio, para viabilizar o acesso a medicação. Como a senhora vê essa movimentação dos religiosos?

A postura do ministro da Justiça muito me incomoda e preocupa, porque ele sequer usa a expressão paciente. Ele não pensa na farmácia distribuindo medicamento, mas em boca de fumo. O pensamento dele é perverso e desconstrutivo, pois o Brasil está atrasado há mais de duas décadas com relação à cannabis medicinal. Precisamos evoluir por meio de discussões técnicas, não ideológicas.

Um óleo de cannabis rico em CBD pode beneficiar pessoas com epilepsia refratária e convulsões, mas quem tem esclerose múltipla, tipos raros de câncer, dores neuropáticas ou espasmos, talvez se beneficie mais com um óleo rico em THC. Então não podemos fechar as portas para as possibilidades de tratamento. É a vida de muita gente que está em jogo. Não podemos gerar desinformação e deixar as pessoas acreditando que lutar pela cannabis medicinal é lutar pela liberação das drogas. A questão não é religiosa, muito menos partidária. Falamos de garantir acesso a um tratamento seguro para milhares de brasileiros que hoje não têm acesso à medicação, que, diga-se de passagem, já está disponível para quem tem dinheiro. Ou seja, a pauta aqui é saúde pública, é direitos humanos. Não podemos desvirtuar.

A senhora questionou o indicado do presidente Jair Bolsonaro ao STF, Kassio Nunes Marques, sobre o canabidiol. O que achou da posição dele? A senhora considera que ele é apto para a vaga no STF?

Nessa primeira conversa, gostei bastante da posição dele. Ele mostrou bastante respeito à Anvisa e afirmou ter conhecidos que precisam da cannabis medicinal. Disse também que acredita na ampliação da gama de tratamentos. Afirmou também que é apaixonado pela área médica e deixou aberta a possibilidade para conversarmos mais sobre o tema. Por outro lado, não acredita que o Judiciário deva ser o protagonista nas questões dessa temática no Brasil. Foi uma conversa de apresentação, ele não tratou com profundidade sobre temas polêmicos. Ainda estou pesquisando, analisando seu histórico e conhecendo mais sobre o Kássio Nunes.

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