Exclusivo: SNI registrou terrorismo da direita de 1978 a 1987
Organizações anticomunistas radicais praticaram atentados contra pessoas, instituições e estabelecimentos ligados à redemocratização do país
atualizado
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Grupos de extrema-direita tiveram atuação violenta no Brasil durante as décadas de 1970 e 1980 para tentar conturbar o processo de redemocratização. O ataque à produtora do Porta dos Fundos, na véspera do último Natal (24/12/2019), guarda semelhanças com pelo menos 14 episódios tratados nesta reportagem.
Os atentados praticados no fim da ditadura e nos primeiros anos do governo José Sarney (1985-1990) foram executados por pessoas e organizações anticomunistas radicais. O uso de explosivos, a destruição de instalações e a ideologia dos autores formam um padrão adotado tanto nos fatos antigos quanto no caso do Porta dos Fundos.
Outro traço comum entre o passado e o presente é a ligação da maioria das vítimas com atividades ligadas à liberdade de expressão. Assim como no ato contra os humoristas, os direitistas da época miravam sedes de jornais, bancas de revistas e universidades, por exemplo.
Os fatos foram registrados e classificados como “atos terroristas” pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão coordenador das atividades de espionagem e repressão na ditadura.
No caso do Porta dos Fundos, o ataque com dois coquetéis foi reivindicado por um grupo autonomeado Comando de Insurgência Popular Nacionalista, da Família Integralista Brasileira. O integralismo é uma ideologia de inspiração fascista surgida na década de 1930 e que teve influência significativa na política brasileira da época. Identificado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, um dos responsáveis pelo ato, Eduardo Fauzi Richard Cerquise, fugiu para a Rússia.
A flexibilização gradual da censura a partir de meados da década de 1970 permitiu a circulação de publicações de interesse da oposição e contrárias à ditadura. Os autores dos crimes tentavam evitar, por exemplo, a liberação da venda de livros e revistas proibidos nos anos anteriores.
Nesses atos, os terroristas abrigavam-se em denominações como Vanguarda de Caça aos Comunistas (VCC), Comando de Caça aos Comunistas (CCC), Comando Delta (CD) e Falange Pátria Nova (FPN).
Em pesquisa feita no acervo público do Arquivo Nacional, o Metrópoles resgatou as histórias dos atentados executados pelos direitistas na transição da ditadura para a democracia. Os terroristas resistiam à abertura política no governo Ernesto Geisel (1974-1979).
No total, o SNI listou mais de 260 atentados entre 1978 e 1987. Com exceção de algumas instalações militares – e de casos típicos de brigas políticas regionais – o conjunto de ocorrências vitimou pessoas, instituições e estabelecimentos envolvidos – ou, pelo menos, em sintonia – com a redemocratização.
A reportagem selecionou os casos em que os autores assumiram os crimes ou foram identificados pelas forças de segurança. Dois documentos confidenciais listam os ataques daquele período.
Um deles, de 23 de janeiro de 1984, tem o objetivo de relacionar “atos terroristas ocorridos no Brasil” para atender a um “serviço de informações amigo” interessado em fatos do mesmo gênero em toda a América do Sul.
Nesta lista, foram registrados 183 atentados. São especificadas datas, lugares, detalhes sobre armas e explosivos e grupos responsáveis.
A relação de crimes de terrorismo foi atualizada e deu origem a outro documento, de outubro de 1987, com mais 81 episódios de violência política no território nacional. Os papéis fazem parte do Fundo SNI do Arquivo Nacional.
Entre os casos abordados nesta edição, estão fatos de repercussão nacional, como a bomba do Rio Centro, em 1981. A reportagem também rememora atentados menos conhecidos dos brasileiros – como a explosão do altar da Catedral de Nova Iguaçu (RJ).
Na época destes fatos, não havia mais luta armada promovida pela esquerda no Brasil. As organizações que recorreram à violência contra o governo militar – algumas também praticaram atos terroristas – estavam desmanteladas pela repressão.
De acordo com o site Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), administrado por militares da reserva ligados à ditadura, a última ação armada contra o governo militar ocorreu no Rio de Janeiro no dia 1º de outubro de 1973. Foi um atentado à bomba, sem vítimas, contra uma agência da empresa aérea Lan-Chile.
Vale ressaltar que a Lei da Anistia, promulgada pelo presidente João Figueiredo (1979-1985) em agosto de 1979, perdoou todos os crimes políticos e conexos cometidos até esta data. Com isso, foram beneficiados todos os que lutaram contra a ditadura, entre eles os que assaltaram, sequestraram e mataram.
Também ganharam perdão os agentes do Estado que sequestraram, torturaram, mataram e esconderam os corpos dos adversários do governo militar. Os fatos posteriores à promulgação da lei não foram contemplados pelo benefício.
O Metrópoles não encontrou os personagens citados nos episódios tratados na reportagem. As páginas do site permanecem abertas para registrar a memória das vítimas e dos responsáveis pelos fatos publicados nesta edição.
A seguir, os 14 casos destacados pela reportagem.
1 – Jornal Em Tempo
Na madrugada dia 18 de agosto de 1978, um “artefato não identificado” explodiu na sucursal do jornal Em Tempo, em Belo Horizonte. Produzido por militantes de esquerda, o periódico sofreu outros ataques na mesma época. A bomba provocou danos materiais e não houve vítimas.
No documento do SNI, o crime é atribuído às organizações Grupo Anticomunista (GAC) e Movimento Anticomunista (MAC). Não houve identificação nem punição dos culpados.
Dois meses antes do atentado, o Em Tempo publicara pela primeira vez uma lista com os nomes de 233 torturadores elaborada por 35 presos políticos.
2 – Centro Acadêmico da FGV
Em São Paulo, a sede do Centro Acadêmico da Fundação Getúlio Vargas foi depredada pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no dia 11 de novembro de 1979. Os invasores destruíram “máquinas Xerox” e furtaram documentos.
A polícia não apontou responsáveis pelo ataque.
3 – Catedral de Nova Iguaçu
A explosão de um “artefato não identificado” atingiu, no dia 20 de dezembro de 1979, o interior da Catedral de Nova Iguaçu (RJ). A bomba destruiu o altar e quebrou vidros de 12 janelas, sem deixar vítimas.
Uma organização chamada Vanguarda de Caça aos Comunistas (VCC) assumiu o atentado. Não houve punições.
O bispo da Diocese de Nova Iguaçu na ocasião era Dom Adriano Hypólito, representante da Teologia da Libertação, corrente latino-americano com forte atuação junto a movimentos sociais e na resistência contra a ditadura.
4 – Livraria Capitu
O CCC reivindicou a autoria de um tiro de revólver calibre .22 contra a vitrine da Livraria Capitu, em São Paulo. Sem vítimas. A bala acertou um pôster de Ernesto Che Guevara, um dos comandantes da Revolução Cubana.
Três dias depois, mais tiros foram disparados contra a Capitu e outras duas livrarias paulistanas, Kairós e Livramento. Os autores dos atentados, não identificados, reclamavam da venda de material “subversivo” nestes estabelecimentos.
5 – Incêndio de carro
O carro de Raimundo Jinkings, militante do Partido Comunista do Brasil (PCB) e ex-dirigente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), foi incendiado em Belém no dia 7 de junho de 1980.
Não reconhecido pelo governo, o CGT foi precursor das centrais sindicais atuais. O CCC assumiu o ataque, sem vítimas, e ameaçou incendiar a livraria de Jinkings. Ninguém foi punido.
6 – Loja de jornais e revistas
Dois atentados executados no mesmo dia tiveram a marca da Falange Pátria Nova. Na madrugada do dia 12 de agosto de 1980, um incêndio atingiu a Edu Jornais e Revistas, loja de propriedade de Eduardo Batista dos Santos em Santa Rosa (RS).
O fogo foi provocado por um bastão de estopa embebido em óleo diesel. Antes do atentado, o CCC e a Falange Pátria Nova ameaçaram o estabelecimento. Batista dos Santos representava os jornais Correio do Povo e Zero Hora. Sem punições.
7 – Banca na W3 Sul
Também no dia 12 de agosto de 1980, na primeira hora da madrugada, a Falange Pátria Nova explodiu um petardo de pequena potência na área externa da banca de jornais da Quadra 514 Sul, em Brasília. Dono do estabelecimento, Eunio Ney Teixeira militara no movimento estudantil de Pernambuco. Não houve punições.
Um panfleto da FPN deixado no local afirma que os ataques a bancas de revistas são motivados pela “imposição governamental” de uma “posição de esquerda” e pelo sufocamento da direita. Ninguém foi responsabilizado pelo ato.
8 – Banca da rodoviária de Brasília
A Falange Pátria Nova voltou a atacar em Brasília dez dias depois. Em 22 de agosto de 1980, às 3h35, um petardo explodiu na banca de jornais da plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto. O explosivo foi acionado por um dispositivo de tempo (bomba-relógio) e danificou o interior da loja.
Ninguém foi responsabilizado pelo ataque. Quatro décadas depois do atentado, a banca pertence ao mesmo proprietário, Samuel Credmann.
9 – Diretório Central dos Estudantes da UFC
O único caso tratado nesta reportagem em que os culpados foram identificados e punidos aconteceu no dia 30 de setembro de 1980. Na ocasião, uma bomba de baixo teor explosivo foi atirada no estacionamento do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza.
Presos na Paraíba com armas e munições, um grupo de jovens confessou a autoria deste atentado e de outros ataques na cidade, como uma bomba detonada na Praça do Ferreira. Os responsáveis pelo ataque adotavam a denominação Movimento Anticomunista (MAC) e faziam pichações “nitidamente direitistas”, segundo o delegado Antonio Carlos Monteiro, que investigou o caso.
Pelos atos praticados, foram indiciadas nove pessoas: Valério Lênin Lélis Nogueira, Luiz Clóvis Lanicca de Sousa Filho, Carlos Henrique dos Santos Ferreira, José Feitosa Dantas, Germana de Oliveira Moraes, Francisco Jorge Feitosa Caneca, Francisco Marcelo Macedo Leitão, Cláudio Feitosa Dantas, Fernando Januário Barbosa.
10 – Ônibus da Petrobras
Até então desconhecida, uma organização autodenominada Comando Delta praticou dois atentados no início de 1981. O primeiro, com uma bomba de fabricação caseira, foi no dia 7 de janeiro e atingiu um ônibus da Petrobras na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro.
Colocado debaixo do veículo, o petardo provocou apenas danos materiais. Não houve identificação nem punição dos responsáveis.
11 – Relógio digital
No dia seguinte (08/01/1981), uma bomba assumida pelo Comando Delta explodiu um relógio digital de propaganda na rua Humaitá, também no Rio de Janeiro. Vidraças de prédios próximos também foram danificadas.
Os autores não foram identificados nem punidos.
12 – Riocentro
O mais rumoroso e impactante atentado deste período foi executado no dia 30 de abril de 1981 por dois militares da ativa do Exército, o sargento Guilherme Pereira do Rosário e o capitão Wilson Dias Machado.
A bomba explodiu no estacionamento da casa de espetáculos Riocentro antes do planejado, quando os dois ainda estavam dentro do carro. Em consequência, Rosário morreu e Machado ficou gravemente ferido. Outro explosivo foi detonado na casa de força sem causar vítimas.
No Riocentro, encontravam-se cerca de 20 mil pessoas para assistir a um show em comemoração ao Dia dos Trabalhadores, com participação do cantor Chico Buarque e de outros artistas. Protegido pelo Exército, o capitão nunca reconheceu a autoria do atentado, mas as evidências são inquestionáveis. Machado continuou na ativa, recebeu promoções e lecionou no Colégio Militar de Brasília.
13 – Lancha em Vitória
O Comando Delta também assumiu, pelo telefone, a responsabilidade pela explosão de uma lancha de um órgão estatal do Espírito Santo. O atentado ocorreu no dia 3 de dezembro de 1981. O relatório do SNI não fornece detalhes sobre a bomba nem sobre vítimas.
Ninguém foi identificado nem punido pelo ato.
14 – Célio de Castro
Presidente do Sindicato dos Médicos de Belo Horizonte, Célio de Castro teve o carro atacado e danificado no dia 20 de junho de 1984. Os autores quebraram vidros, rasgaram pneus e riscaram na lataria as siglas CCC e CCA.
Antes do ato, Castro havia recebido ameaças. No futuro, o médico será deputado federal e prefeito de Belo Horizonte.