“Em 100 anos saberá”: veja as imposições de sigilo da gestão Bolsonaro
Em 3 anos e meio de governo, sigilo de 100 anos foi decretado em 6 casos. Prática também foi utilizada por Dilma, mas em menos ocasiões
atualizado
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O presidente Jair Bolsonaro (PL) já decretou sigilo de 100 anos a informações pessoais relacionadas a ele ou à família, o chamado “acesso restrito”, em ao menos seis ocasiões desde o início de seu governo.
Em todos esses casos, o atual chefe do Executivo federal utilizou um mecanismo criado em 2011, durante o governo de Dilma Rousseff (PT): a Lei de Acesso à Informação. A legislação estipula, em seu artigo 31, que pode ser decretada a restrição por no máximo 100 anos — a partir da data de produção — em questões que envolvam “intimidade, honra, vida privada e imagem”.
O artigo da lei foi usado pela Advocacia-Geral da União (AGU) no caso do cartão de vacinação do presidente da República, por exemplo. O presidente diz que não tomou a vacina contra a Covid-19, mas se recusa a apresentar a carteira. Exames de anticorpos feitos pelo presidente também ganharam o sigilo centenário.
No caso dos pastores-lobistas que atuaram no Ministério da Educação (MEC), o governo também citou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e decretou sigilo de 100 anos à lista de encontros feitos pelo presidente com os pastores.
Depois de manifestação da Controladoria-Geral da União (CGU) defendendo a necessidade de se atender ao interesse público, o governo recuou, e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pelos registros de entrada e saída do Planalto, acabou divulgando os dados.
Em documento assinado no dia 1º de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça deu 10 dias úteis para o Palácio do Planalto explicar o sigilo imposto.
Na ocasião em que o segredo foi decretado, os nomes de religiosos estavam ligados à negociação de propina para prefeitos, em troca da liberação de recursos do MEC. O caso ainda é investigado pela Polícia Federal.
O presidente já comentou a decretação dos sigilos em suas redes sociais. “Presidente, o senhor pode me responder porque todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato, você põe sigilo de 100 anos? Existe algo para esconder?”, questionou um usuário em abril. Na resposta, Bolsonaro ironizou: “Em 100 anos saberá”.
2019
Não houve imposição de sigilo de 100 anos
2020
- Nomes dos servidores que postam no perfil da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) no Twitter
2021
- Cartão de vacinação do presidente
- Processo administrativo contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello
- Dados dos crachás de acesso do vereador Carlos e do deputado Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente, ao Palácio do Planalto
- Exames de anticorpos de Covid-19 feitos por Jair Bolsonaro
2022
Para o especialista em direito público Karlos Gomes, a tática utilizada por membros do governo do presidente Jair Bolsonaro gera desconfiança na população, pois, segundo ele, o sigilo existe “para proteger informações sensíveis, seja de interesse nacional, seja de agentes públicos”.
“A decretação do nível mais alto de sigilo, até mesmo mais alto do que informações de segurança nacional, que via de regra é de 25 anos, de informações que não se tratam se segurança nacional ou de informações sigilosas sobre os envolvidos traz desconfiança para a população e insegurança jurídica, pois os atos da administração e dos agentes públicos, em via de regra, devem ser pautados pela publicidade e transparência”, argumenta Gomes.
O advogado ainda pontua que usar o sigilo que o dispositivo proporciona “em benefício próprio” é um “desvirtuamento do princípio da lei”, que, segundo ele, foi formulada “justamente para facilitar o acesso da sociedade aos atos do governo”.
“Esse governo sempre foi cercado de questionamentos, e decretar sigilo em reuniões públicas, gastos corporativos, até mesmo em cartão de vacinação, e principalmente em relação aos filhos do presidente abre espaço para que a sociedade comece questionar a idoneidade e o que o governo quer ‘esconder'”, analisa Karlos.
Ricardo Caichiolo, professor de ciências políticas do Ibmec Brasília frisa que a Lei de Acesso à Informação foi um avanço democrático, “porque reforçou a participação social”, e é um dos principais “marcadores da maturidade democrática de uma nação”. Na visão do professor, contudo, a prática da decretação de sigilos no período máximo enfraquece a lei.
“O governo de Jair Bolsonaro esvazia a legislação com a prática reiterada de impor sigilo de 100 anos. Impôs sigilo ao cartão de vacina, ao cartão corporativo, entre outros. Esses são apenas alguns exemplos da atual gestão, que vão na contramão da principal diretriz que rege a LAI: a transparência das informações é a regra; o sigilo é a exceção”, aponta.
Informações restritas, secretas e ultrassecretas
No que se refere a informações de caráter público, o prazo máximo de restrição de acesso à informação é de 25 anos, prorrogável uma única vez por igual período. Os graus de sigilo para informações públicas são os seguintes:
- Informações classificadas como “restritas”: 5 anos
- Informações classificadas como “secretas”: 15 anos
- Informações classificadas como “ultrassecretas”: 25 anos
Nesse último caso, a prorrogação do prazo de sigilo pode acontecer se o acesso ou divulgação puder ocasionar “ameaça externa à soberania nacional ou à integridade do território nacional ou grave risco às relações internacionais”.
Segundo a lei, podem decretar sigilo o presidente da República, o vice-presidente da República, os ministros de Estado ou servidores que tenham cargos equivalente, os comandantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e os chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior.
Segundo o sócio da Dharma Politics Matheus Albuquerque, o sigilo de informações de Estado “é uma ferramenta legítima e democrática”, principalmente para “protegê-lo contra ameaças”, contudo, faz-se necessária a mitigação de riscos.
“A utilização dessa ferramenta precisa estar acompanhada da percepção do chefe de Estado que o acesso à informação é uma ferramenta igualmente importante quando pensamos na qualidade da democracia. Em um contexto de incerteza política e crescente polarização, a utilização de ferramentas legítimas correm o risco de serem deturpadas”, enfatiza.
“O propósito dessa estratégia parece ser orientada pela manutenção dos focos de atenção sociais e o fortalecimento no imaginário na base do presidente de que o governo está sendo perseguido pelos seus opositores. Como resultante, gera-se uma diminuição de transparência perante uma parcela da sociedade, a qual diminui o grau de confiabilidade na gestão Bolsonaro, enquanto que, em outra parcela, mantém a base agregada”, completa Albuquerque.
Outros sigilos
Além dos casos de sigilo de 100 anos, o governo ainda impôs reservas de menor duração em outros casos. Determinou, por exemplo, sigilo de 5 anos aos documentos que basearam a Operação Formosa, que em setembro de 2021 incluiu um desfile inédito de tanques em frente ao Palácio do Planalto, e um exercício militar em que Jair Bolsonaro deu tiros de artilharia em Formosa (GO).
Segundo o Comando da Marinha, o sigilo é necessário para não “prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicas das Forças Armadas”.
Também foi imposto sigilo sobre documentos que levaram à admissão da filha de Bolsonaro, Laura, no Colégio Militar de Brasília, sem ter de passar por um processo seletivo. O Exército justificou que a exposição dessas informações colocaria em risco as vidas de Laura e do presidente. O segredo deve ser mantido pelo menos até o último dia do governo Bolsonaro, 31 de dezembro do próximo ano. Ou, caso ele se reeleja, pelos quatro anos seguintes.
Em 2019, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, colocou sigilo sobre os documentos relativos à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma da Previdência. No ano seguinte, aos relativos à PEC da Reforma Administrativa. Ambos os sigilos caíram após pressão pública.
Comparação com governos anteriores
Ao fim do governo do ex-presidente Michel Temer, em 2018, ele decidiu decretar sigilo por prazo indeterminado aos dados relacionados à transição do governo para o recém-eleito presidente Jair Bolsonaro.Todas as informações sobre o orçamento previsto e executado pela Comissão de Transição entre os governos foram resguardadas.
Em abril de 2013, durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff, o então ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, decretou sigilo de 15 anos aos documentos que falavam sobre os financiamentos brasileiros concedidos aos governos de Cuba e de Angola.
Em 2015, o Ministério das Relações Exteriores classificou como sigilosos por 15 anos ao menos 760 documentos que revelavam pagamentos da empreiteira Odebrecht a viagens internacionais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Dos dados retidos, 141 documentos foram considerados como secretos, e 619, reservados.
No ano seguinte, o governo Dilma, além de ter decidido manter segredo sobre o tamanho exato da dívida e quem são os devedores de taxas destinadas à Caixa Econômica Federal, a gestão decretou também restrição de 100 anos aos e-mails do servidor Jorge Rodrigo Messias, o “Bessias”.
Messias ficou conhecido por ter sido mencionado em uma conversa entre a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O servidor teria sido designado para levar um suposto termo de posse que daria a Lula o cargo de ministro da Casa Civil.
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