Bolsonaro pulou análise ao apresentar projeto que muda lei de trânsito
Material foi entregue pessoalmente à Câmara antes de passar por unidade que verifica questões técnicas e de mérito
atualizado
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Recheado de pontos polêmicos, o projeto de lei elaborado pelo Ministério da Infraestrutura para alterar o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) foi distribuído pelo protocolo da Presidência da República às 8h48 do dia 4 de junho. Antes mesmo de passar pela área jurídica, porém, a entrega do material pessoalmente à Câmara estava na agenda do presidente Jair Bolsonaro (PSL) na mesma manhã. Um comunicado em edição extra do Diário Oficial da União (DOU), publicado às 10h23, também antecipava o ato. Para honrar o compromisso, a análise interna do PL no Palácio do Planalto foi feita às pressas e pela metade.
A íntegra do processo referente ao PL nº 3267/19, registrado no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) da Presidência da República, foi obtida pelo Metrópoles por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e mostra como o assunto foi tratado em poucas horas nas unidades responsáveis pela averiguação do conteúdo na Casa Civil. Três trechos do projeto foram suprimidos a pedido da Subchefia para Assuntos Jurídicos.
Entre outras questões, o projeto que foi enviado ao Congresso dobra a validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de cinco para dez anos e o limite de pontos para a perda do documento, de 20 para 40, além de extinguir a multa para o transporte de crianças de até 7 anos e meio fora da cadeirinha.
Defendida com afinco pelo presidente, a proposta divide a população. A mais recente pesquisa feita pelo instituto Datafolha nos dias 4 e 5 de julho aponta que 68% dos brasileiros são contra afrouxar a punição para o transporte irregular de crianças e 56% reprovam o aumento de 20 para 40 pontos no limite de pontos em decorrência de infrações.
Um parecer jurídico, assinado eletronicamente às 11h49 daquele 4 de junho, diz explicitamente que a brevidade na avaliação está relacionada à falta de tempo, marcado pelo compasso da agenda oficial. Outra observação é que a competência para analisar as questões técnicas e de mérito é da Subchefia de Ação Governamental.
Antes de passar pelo setor, no entanto, o projeto de lei foi entregue por Bolsonaro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), junto ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e ao ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas. Com as modificações, o PL para mudar as regras de trânsito foi protocolado às 12h36 na Casa. A nota técnica, entretanto, só saiu quatro horas depois.
“É um projeto que mexe com todo mundo. Quem não dirige, é dirigido. Quem não conduz, é conduzido”, declarou Bolsonaro, no momento da entrega do texto a Maia.
Tardio, o novo documento incluso no processo se limitou a repetir a argumentação elaborada pelo Ministério da Infraestrutura e a destacar as mudanças sugeridas pela área jurídica, já executadas.
Questionada, a Casa Civil respondeu que a rapidez se justifica porque já havia consenso entre os responsáveis por tratar sobre o tema no governo, mas não deu detalhes sobre as negociações, que não estão registradas na tramitação interna do projeto. Também não informou por qual motivo o material foi entregue antes de passar pela Subchefia de Ação Governamental.
Os documentos contidos no processo nº 50000.016611/2019-66 também não estão organizados em ordem cronológica. No sistema interno do Planalto, o envio do projeto de lei aparece depois do parecer jurídico e do parecer técnico, respeitando a ordem lógica do trâmite. Sobre isso, a Casa Civil não se posicionou.
“O processo acelerado de resposta de análises técnicas entre a Casa Civil e os ministérios setoriais decorre de o debate e a construção de consensos estar já amadurecido quando da inclusão de manifestação nos sistemas de informações da Presidência da República”, diz a nota enviada.
Argumentos do ministério
A minuta assinada pelo ministro Tarcísio Freitas diz que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) precisa ser revisto para se adaptar às novas diretrizes da nova gestão, além de estar, segundo o governo, de acordo com a vontade do parlamento.
Em seguida, há a descrição de cada mudança proposta. O ministério explica, por exemplo, que alterou o artigo que trata sobre o transporte de crianças para evitar contestações judiciais com base em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Todavia, a extinção de multa em caso de descumprimento não foi justificada.
Para explicar a necessidade do aumento de pontos para que o motorista perca a CNH, o Ministério da Infraestrutura argumenta que, atualmente, é mais fácil atingir o limite máximo.
“A atual complexidade do trânsito brasileiro cada vez mais gera a possibilidade de o condutor levar uma autuação de trânsito, ainda que não tenha a intenção de cometê-la. Alcançar 20 pontos está cada vez mais comum na conjuntura brasileira”, diz o trecho sobre o tema.
Outra alteração, em relação à validade da CNH, é baseada no aumento da expectativa de vida dos brasileiros, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Tal evolução é fruto da melhoria da saúde e condições de vida do brasileiro. Em decorrência dessa constatação, fez-se necessário o ajuste da legislação, a fim de não se impor ao cidadão habilitado uma exigência que não seja imprescindível para sua capacidade de dirigir”, afirma o texto.
O material com a descrição de cada alteração também está na íntegra do PL divulgada pela Câmara dos Deputados.
Mudanças barradas
Foram suprimidos três trechos do projeto original, que incluía o inciso XXXI no artigo 19 do CTB e modificava os artigos 282-A e 284.
O inciso do artigo 19 faria com que fosse submetida ao Conselho Nacional de Trânsito (Contran) a aplicação de medidas administrativas aos órgãos do Sistema Nacional de Trânsito. No entanto, o parecer jurídico do Planalto considerou a formulação “vaga”.
A mudança no artigo 282-A tornaria obrigatório aos estados e municípios o oferecimento da opção de notificação eletrônica aos usuários autuados.
A alteração no artigo 284 estabelecia que o motorista que optasse por receber o aviso de infração pelo sistema de notificação eletrônica e decidisse não apresentar defesa prévia nem recurso poderia pagar 60% do valor da multa até a data de vencimento. Atualmente, o artigo fixa 80% do valor da multa e não cita o sistema eletrônico.
Nesse contexto, a Subchefia para Assuntos Jurídicos considerou que o texto não estabelecia prazos para a adequação e violaria um decreto em vigor.