Análise: Bolsonaro se mistura com sangue e avança para extrema-direita
Presidente recorre à mentira para atacar memória do pai do presidente da OAB, desaparecido político, morto pela ditadura militar
atualizado
Compartilhar notícia
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) parece governar com raiva. Em manifestações públicas cada vez mais frequentes, investe contra pessoas e instituições com sanha destrutiva. Não respeita os fatos nem a democracia construída nas últimas cinco décadas.
Nas aparições mais recentes, Bolsonaro tratou com desrespeito e desdém duas situações que envolvem sangue. Em uma delas, sem apresentar evidências, duvidou do assassinato do cacique Emyra Waiãpi, no Amapá, por garimpeiros ilegais.
Outra declaração de Bolsonaro ofende a família e a memória do estudante pernambucano Fernando Santa Cruz, um dos 210 desaparecidos políticos da ditadura. Militante da organização Ação Popular Marxista Leninista (AP-ML), ele é pai de Felipe Santa Cruz, atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Com o objetivo de atacar a OAB, Bolsonaro tenta reescrever a história do pai do presidente da entidade. Para isso, confronta até mesmo documentos militares da época. Na versão de Bolsonaro, Fernando Santa Cruz foi morto por integrantes da AP-ML.
Trata-se de uma mentira. Um relatório da Aeronáutica, produzido na década de 1970, registra a prisão do estudante, nunca mais visto pela família. Documentos da Marinha e do Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) de São Paulo têm a mesma informação.
Investigações feitas por organismos de Direitos Humanos apontam o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), braço da repressão, como responsável pela captura e assassinato do estudante. Não há qualquer registro de participação de Santa Cruz em ações armadas, nem mesmo nas publicações editadas por ex-integrantes das forças de segurança.
Em nenhuma hipótese, o pai do presidente da OAB teve o perfil de “terrorista” usado pela repressão para desqualificar os militantes das organizações clandestinas. A morte e o desaparecimento foram crimes praticados pelo governo militar contra um cidadão brasileiro.
Na época do assassinato, Santa Cruz trabalhava regularmente na Companhia de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo, onde ingressou por concurso. Quando foi preso, visitava amigos no Rio de Janeiro.
A execução do estudante se deu em um momento em que praticamente não havia mais luta armada no Brasil. As organizações que recorriam à violência contra o governo haviam sido desmanteladas pelo aparato repressivo. A Guerrilha do Araguaia, maior iniciativa no campo, estava dominada.
Vitoriosos contra os adversários mais radicais, setores militares começavam a desenhar a abertura política. Mas os homens que atuavam no combate sangrento contra a esquerda tentavam se manter em combate, mesmo que os adversários estivessem aniquilados. Matavam para provar que ainda tinham inimigos. A morte de Santa Cruz se deu nesse contexto.
As mentiras de Bolsonaro ganham ressonância entre pessoas que desconhecem a história e não toleram qualquer manifestação de pensamento identificado com as correntes de esquerda. Aceitam qualquer mentira que lhes dê argumentos para defender o comportamento do presidente e as atrocidades do passado.
Pai de João Dória
Quando faz esses movimentos, o chefe do Executivo se mistura com o sangue produzido pela ditadura. O ódio contra adversários ajuda a reforçar os laços com a extrema-direita, ala de seguidores que, por exemplo, pede intervenção militar, fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso.
Ao mesmo tempo, o presidente se afasta de apoiadores de peso de sua eleição, como o governador de São Paulo, João Dória (PSDB-SP). O pai do tucano, João Agripino Dória, era filiado ao Partido Democrata Cristão (PDC) e teve o mandato de deputado federal cassado pelos militares.
Muita gente não sabe, mas a ditadura não perseguiu apenas a esquerda. Esse aprendizado, todos os brasileiros deveriam ter.