Serviços secretos mapearam primeiros passos de Haddad na política
Exército e SNI espionaram atuação do petista no movimento estudantil da USP e em reuniões internas do partido
atualizado
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O Brasil avançava rumo à redemocratização quando Fernando Haddad começou a participar do movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP). Aluno da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o jovem filho de comerciante elegeu-se, em outubro de 1984, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto. Documentos confidenciais produzidos por órgãos de espionagem mostram que a ditadura acompanhou, nessa época, os primeiros movimentos públicos do paulistano que, em 2018, concorre na disputa presidencial pelo PT.
Nos acervos militares, Haddad aparece como um estudante envolvido nos debates nacionais e cercado de personagens da elite intelectual e política de São Paulo. Emerge, também, como um engajado militante petista.
O Metrópoles obteve no Arquivo Nacional de Brasília os registros militares sobre a atuação política de Haddad. Alguns relatórios foram produzidos depois do fim da ditadura, nos primeiros anos do governo José Sarney (1985-1989). Nas últimas semanas, o portal publicou papéis semelhantes relativos à militância da candidata a presidente da República pela Rede, Marina Silva, no movimento estudantil, no Partido Revolucionário Comunista (PRC) e durante uma greve de professores.
No caso do petista, os documentos limitaram-se à atuação no meio universitário. Produzido pela agência de São Paulo do Serviço Nacional de Informações (SNI), o Informe nº 616/140/ASP/85 trata das “eleições para renovação dos centros acadêmicos”. Faz referência, especificamente, à chapa The Pravda, presidida por Fernando Haddad, vencedora na disputa pelo XI de Agosto, tradicional entidade representativa dos estudantes de direito.
Resultado da fusão dos títulos The New York Times e Pravda, o nome escolhido pelo grupo foi uma brincadeira com os nomes dos jornais dos Estados Unidos e da União Soviética, respectivamente. O relatório do SNI tem data de 25 de abril de 1985, seis meses depois da eleição para o XI de Agosto, e tinha como destino o IV Comando Aéreo Regional (IV Comar), de São Paulo.
Com o título Campanha pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC), um relatório confidencial de duas páginas, sem timbre nem data, aborda a realização no dia 30 de janeiro de 1985 de um ato público com cerca de 800 pessoas no Largo de São Francisco.
Quatro entidades ligadas ao mundo do direito promoveram o encontro: Centro Acadêmico XI de Agosto, Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Associação dos Advogados de São Paulo.
Representante do XI de Agosto, Fernando Haddad foi um dos organizadores do ato. O encontro reuniu alguns dos personagens da linha de frente da luta pela redemocratização. Futuro ministro da Justiça no governo de Luiz Inácio da Silva, Márcio Thomaz Bastos falou em nome da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil.
Pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) pronunciou-se o jurista Ives Gandra Martins, pai do atual ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que herdou o mesmo nome. Junto com Thomaz Bastos, o estudante acendeu uma pira simbólica que deveria ser apagada apenas quando fosse feita a leitura de uma nova Constituição brasileira.
De acordo com o relatório confidencial, os oradores foram “unânimes” na defesa da convocação da Constituinte e do rompimento com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Também pregaram a legalização dos partidos clandestinos, a participação do povo na elaboração da nova Carta Magna e o fim do autoritarismo. Entre os que se posicionaram, estava Haddad.
Na data do ato na USP, os brasileiros tinham razões para acreditar que a ditadura chegava ao fim. Duas semanas antes, no dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolhera em eleição indireta o ex-governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, para a Presidência da República. O veterano político mineiro era o primeiro civil – e oposicionista – escolhido para comandar o país depois de duas décadas de governos militares.
Com Tancredo impedido de tomar posse por graves problemas de saúde, o vice da chapa, José Sarney, assumiu no Palácio do Planalto no dia 15 de março de 1985. Permaneceu no cargo, após a morte do presidente em abril, por cinco anos. No seu governo, convocou a Assembleia Nacional Constituinte, presidida pelo deputado Ulysses Guimarães. A nova Carta Magna foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988.
Outros nomes de destaque na resistência política estavam presentes no ato, como o bispo de Caxias (RJ), dom Mauro Morelli. José Gregori, na época deputado estadual pelo MDB, e com longa trajetória na defesa dos Direitos Humanos e de presos políticos. Chegou a ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso.
Ex-guerrilheiro do PCdoB no Araguaia, José Genoino estava no primeiro dos cinco mandatos consecutivos de deputado federal pelo PT. É identificado pelo documento como militante do clandestino Partido Revolucionário Comunista (PCR). Eduardo Suplicy, futuro senador petista, era deputado federal.
Ainda desconhecido na política nacional, um dos presentes iniciava uma trajetória vitoriosa e, nos últimos anos, controversa. O atual presidente do Brasil, empossado depois do impeachment de Dilma Rousseff, aparece no documento militar com o nome completo: Michel Miguel Elias Temer Lulia. Também formado no Largo de São Francisco, ele era na ocasião secretário estadual de Segurança Pública no governo de André Franco Montoro.
Propostas apresentadas no dia por diferentes segmentos da sociedade foram anexadas pelos militares ao relatório sobre o ato público. Os arquivos militares preservaram panfletos assinados pela Convergência Socialista, corrente política que deu origem ao atual PSTU, pelo Movimento Negro Pró-Constituinte, pelo PT de São Paulo, por movimentos ecológicos e por uma associação de vigilantes.
Outro relatório arquivado pelos militares aponta a participação de Fernando Haddad nos preparativos para a Assembleia Nacional Constituinte. Assim como no caso do documento anterior, por não ter cabeçalho nem timbre, não se pode determinar o órgão que o produziu.
Do sistema de informações do governo dos generais faziam parte estruturas militares, como serviços secretos das Forças Armadas, e instituições civis, a exemplo da Polícia Federal. Com duas páginas, intitula-se Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte.
Segundo o relato, esse fórum contava com 130 entidades e realizou, na noite de 22 de agosto de 1985, mais um ato público no Largo de São Francisco. Como aconteceu no caso a Marina Silva, os agentes secretos continuaram investigando as forças políticas atuantes no ambiente frequentado por Haddad mesmo depois do fim da ditadura.
Entre as cerca de 300 pessoas presentes no ato, estavam Haddad e personalidades como o então deputado federal Plínio de Arruda Sampaio (PT-SP), morto em 2014; a futura prefeita de São Paulo Luiza Erundina, também pelo PT; Eduardo Suplicy; e Márcio Thomaz Bastos.
Uma nota produzida pelo plenário comunica o envio ao Congresso de uma subemenda à emenda de convocação da Constituinte apresentada por Sarney.
O perfil do grupo político, mais fechado, integrado pelo jovem Fernando Haddad fica mais explícito no documento “Contribuição ao Encontro Nacional dos Estudantes do PT”, elaborado por 62 líderes universitários reunidos em Juiz de Fora (MG) em 6 de abril de 1985. O texto foi assinado por representes de entidades de Minas Gerais, São Paulo e Goiás. Entre eles estava o presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto. Os serviços secretos apreenderam uma cópia.
Autodenominados “Articulação independente”, os signatários se propõem a construir, dentro do partido, uma alternativa a grupos internos chamados de “revolucionários do PT”. São classificados de “doutrinários e aparelhistas” pelos participantes do encontro em Juiz de Fora. Essa é uma referência indireta às correntes petistas, remanescentes da luta contra a ditadura, e que disputavam o poder no movimento estudantil.
A crítica se dirigia, por exemplo, aos militantes do PRC e às tendências trotskistas Liberdade e Luta (Libelu) e Convergência Socialista, precursora do PSTU. As forças do movimento estudantil fora do PT foram acusadas de agir por “interesses próprios, em detrimento das necessidades dos estudantes”.
Nesse caso, as citações apontam diretamente para o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), hegemônico no comando da União Nacional dos Estudantes (UNE) desde a reconstrução da entidade, em 1979, o Partido Comunista Brasileiro e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Essas organizações são tratadas como responsáveis pelo esvaziamento das atividades políticas estudantis.
O grupo reunido em Juiz de Fora ficou conhecido pelas outras tendências como “PT independente” ou “PT PT”. Com o tempo, integrou-se à Articulação, corrente petista liderada por Lula e composta, majoritariamente, por sindicalistas e militantes ligados à Igreja Católica.
Com novos arranjos internos, essas mesmas forças mais tarde assumiram a denominação de Campo Majoritário e, depois, de Construindo um Novo Brasil (CNB), nome adotado até os dias de hoje.
A 2ª Seção do I Exército em Belo Horizonte, órgão de informação da Força Terrestre, também registrou o encontro de Juiz de Fora. O Informe nº 302/85/T-14/4ª DE tem como assunto “Atividades dos estudantes petistas” e identifica a realização de encontros municipais em seis cidades de Minas Gerais.
Como presidente do XI de Agosto, Haddad entrou para a linha de frente do movimento estudantil paulista. Berço político do petista, o XI de Agosto é o mais tradicional centro acadêmico do país. Fundado em 1903, teve entre seus membros personagens relevantes da história do país, como o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, o escritor Monteiro Lobato, o presidente da República Jânio Quadros e os juristas Dalmo Dalari e Miguel Reale. O atual ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira Filho, foi presidente da entidade em 1967.
A atuação do jovem estudante no Largo de São Francisco impressionou, logo de início, os veteranos do curso de Direito. Jornalista e professor titular da Escola de Comunicação e Artes da USP, Eugênio Bucci foi o antecessor de Haddad na presidência do XI de Agosto. Guarda na lembrança a imagem de um rapaz que impressionou os mais antigos pelo interesse em colaborar com o centro acadêmico e, também, pelo tino administrativo.
Rapidamente, o descendente de libaneses passou a cuidar das finanças da entidade e, na sucessão de Bucci, surgiu como nome natural. “Ele era um estudante disciplinado, inteligente e tinha uma visão clara do que ia fazer”, diz o professor. “Estudava, militava e trabalhava na loja do pai. Com essa experiência no comércio, Fernando Haddad aprendeu a fazer uma espécie de radiografia dos interlocutores”, acrescenta o colega de faculdade do petista. Nessa mesma época, ele filiou-se ao PT.
A facilidade com administração manteve Haddad próximo dos amigos do XI de Agosto. Ele cuidou, por exemplo, da assinatura da revista Teoria e Debate, editada por Bucci, que chegou a 25 mil exemplares. Terminado o curso de direito, o passo seguinte foi o mestrado em Economia na USP e, depois, o doutorado em Filosofia.
O professor guardou na memória o esforço do amigo: “Era muito difícil para alguém que não fosse economista ser aprovado, mas ele levou pilhas de livro para a sobreloja do estabelecimento do pai e conseguiu”.
Passados 34 anos da eleição para a presidência do centro acadêmico, Haddad compõe a chapa presidencial do PT. Nesse tempo, dedicou-se à vida acadêmica, foi ministro da Educação e prefeito de São Paulo. No momento, é candidato a vice de Lula, preso em Curitiba em decorrência da Operação Lava Jato.
Se for confirmada a impugnação do líder petista, por causa de Lei da Ficha Limpa, o ex-presidente do XI de agosto assumirá a candidatura ao Planalto. Na hipótese de chegar ao comando do país, poderá provar se a capacidade administrativa detectada pelos colegas continua aguçada.