Sem apontar violência, ficha do SNI chama Santa Cruz de “terrorista”
Militante da organização clandestina APML, pai de presidente da OAB participou de passeatas e comícios, mas não se envolveu com luta armada
atualizado
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Uma ficha do Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre o desaparecido político Fernando Santa Cruz usa as expressões “terrorista”, “subversivo” e “suspeito” para definir sua atuação nos movimentos contra a ditadura. Ao listar as atividades do militante, cita a participação em comícios, passeatas e agitações no movimento estudantil. O material, porém, não faz qualquer referência a ações violentas.
O nome do militante pernambucano entrou para o noticiário na última semana, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) fez insinuações sobre sua morte. O objetivo do chefe do Executivo foi atacar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido desde o dia 23 de fevereiro de 1974.
Caracterizado como “dossiê”, o documento localizado pelo Metrópoles faz parte do acervo da ditadura preservado no Fundo SNI do Arquivo Nacional. O prontuário de Santa Cruz foi organizado em 25 de abril de 1983, nove anos depois do desaparecimento.
SNI foi o órgão responsável por coordenar o sistema de informação e espionagem da ditadura. Em duas folhas, o registro trata de fatos relacionados ao militante em 1967 e, também, das pressões feitas pela família e pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição, sobre o governo militar em busca de esclarecimentos.
A primeira página, uma espécie de folha de rosto, foi produzida pela agência do SNI em Recife. Tem o título “Informe 359”. Classificada como “confidencial 4611/87”, ostenta também a marca da Presidência da República.
No cabeçalho da segunda folha, Santa Cruz é tratado como “suspeito (agitador)”. Esse prontuário lista cinco episódios relacionados a Santa Cruz, quatro deles posteriores ao desaparecimento.
Além de apontar atividades do movimento estudantil em 1967, o documento faz inferências sem evidências sobre aspectos de sua atuação. “É subversivo e terrorista. Provavelmente atuando na clandestinidade. É procurado pelos órgãos de segurança”, diz a ficha. Cita também a filiação de Santa Cruz à Ação Popular Marxista Leninista do Brasil (APML do B).
Pelo menos uma informação é falsa. O prontuário aponta um suposto endereço do militante, em Olinda (PE), em julho de 1974. Nessa data, ele já havia sido preso pelos militares.
O dossiê contém anotações úteis para se reconstituir a militância de Santa Cruz. Tem valor, ainda, como pista para se constatar como os agentes responsáveis pelos arquivos militares atribuíam crimes aos inimigos sem lastro nas investigações.
Nos anos mais sangrentos do regime fardado, ser acusado de terrorista equivalia a uma sentença de morte. Foi o que, segundo todos relatos e registros, aconteceu com Santa Cruz.
O conteúdo do prontuário reforça a impressão de que Bolsonaro falou sobre fatos inexistentes ao atribuir a morte a companheiros de Santa Cruz. Neste e nos outros documentos sobre o militante da APML, não existe qualquer pista nessa direção.
Criada em 1962 por uma ala católica, a Ação Popular (AP) foi a mais influente corrente política no meio estudantil até o final da década. Integraram a organização, por exemplo, o ex-ministro da Saúde, ex-governador de São Paulo e hoje senador José Serra (PSDB-SP), o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho – falecido em 1997 – e os ex-deputados Aldo Arantes (PCdoB-GO) e Haroldo Lima (PCdoB-BA).
Distrito Federal
Em Brasília, fizeram parte da APML, por exemplo, os estudantes Honestino Guimarães, outro desaparecido político, e Maria José da Conceição, a Maninha, que fez carreira política, foi deputada federal pelo PT e secretária de Saúde do Distrito Federal.
Depois do golpe, a AP sofreu perseguição política e líderes expressivos foram para o exílio. Os que ficaram aproximaram-se do comunismo e, no início da década de 1970, o grupo majoritário incorporou-se ao PCdoB.
Santa Cruz pertencia à ala que não entrou para o partido comunista e adotou a denominação Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Não se tem notícia de participação desse grupo em ações de guerrilha.
No que diz respeito a informações sobre execuções de militantes pelos próprios companheiros, vale ressaltar que os órgãos de segurança tinham todo interesse em registrar nos documentos secretos. Isso se deu, por exemplo, em relação à morte de Salatiel Teixeira Rolim, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), executado a tiros por ex-companheiros.
O caso foi narrado pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em relatório de março de 1974, também arquivado pelo SNI. Um grupo de integrantes do PCBR decidiu matá-lo por considerá-lo traidor. Teria, sob tortura, fornecido dados que contribuíram para o esfacelamento do partido.
A execução de Rolim pelos companheiros se tornou pública, em 1987, com o lançamento do livro Combate nas trevas, escrito pelo historiador comunista Jacob Gorender, ex-dirigente do PCBR. Trata-se de uma das obras mais importantes para se conhecer a atuação das organizações de esquerda durante a ditadura.
Sobre Santa Cruz, nunca se ouviu nada parecido antes de Bolsonaro resolver atacar o presidente da OAB. Jamais foi comentado que ele poderia ter sido assassinado por companheiros da APML.
Importante destacar que o presidente não apresentou qualquer fonte. Indagado sobre a origem da informação, saiu-se com evasivas: “Com quem eu conversei na época, oras bolas. Conversava com muita gente, estive na fronteira… Conversava. (…) Essa é a informação que tive na época, sobre esse episódio”.
Do ponto de vista de quem pesquisa os fatos escondidos pela ditadura, a declaração de Bolsonaro tem as características de um boato sem valor histórico. Assemelha-se às mentiras, como os atropelamentos forjados, divulgadas pelos órgãos da repressão para encobrir os assassinatos nos porões do regime militar.
Um sinal evidente de que o presidente não tem compromisso com a verdade está em outra afirmação, feita em rede social. Para Bolsonaro, a Ação Popular era o “grupo terrorista mais sanguinário que tinha”.
Quem conhece minimamente a história da repressão durante os 21 anos de ditadura sabe que essa afirmação aleatória não faz o menor sentido. A AP foi uma das organizações da luta armada que menos praticou ações sanguinárias.
Seguramente, em um grau bastante superior de violência, destacaram-se em atividades de guerrilha a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
A APML não praticou sequestros, assaltos a bancos ou núcleos de guerrilha armada. Os casos conhecidos de crimes da organização nos anos 1970 relatados por militantes foram desvios de dinheiro do mercado financeiro para capitanear a vida na clandestinidade.
A organização priorizou a infiltração de militantes em fábricas e no meio rural para politização e maior aproximação com as classes trabalhadoras. Assim mesmo, teve a cúpula estudantil dizimada pela repressão.
Atentado a bomba
A rigor, pelo que se registrou, sabe-se de uma única ação violenta praticada por integrantes da APML: foi um atentado a bomba no aeroporto de Guararapes, em Recife, no dia 25 de julho de 1966. O ataque foi preparado, aparentemente, contra o marechal Artur da Costa e Silva, que fazia campanha para suceder Humberto de Alencar Castelo Branco na Presidência da República – o que se confirmou.
Em vez de ir para o aeroporto de Guararapes, no entanto, Costa e Silva tomou outro destino, mas a bomba explodiu assim mesmo. Nesse episódio, morreram o jornalista Edson Regis de Carvalho e o almirante reformado Nelson Gomes Fernandes. Mais de uma dezena de pessoas ficaram feridas, algumas com gravidade.
Esse é um dos poucos casos de terrorismo com bombas e vítimas praticado por grupos de esquerda durante a ditadura. O responsável pelo planejamento da ação, Padre Alípio de Freitas, pertencia à AP e entrou em atrito com o comando da organização depois desse ataque.
Embora a cúpula não assumisse o atentado, na história da guerrilha urbana, a responsabilidade pelo atentado ficou com a Ação Popular. Apesar da defesa da luta armada, por princípio, a AP nunca mais a praticou, segundo as informações disponíveis.
Fernando Santa Cruz nada teve a ver com a bomba no aeroporto de Guararapes. Rigorosamente nada. Na época, tinha 16 anos e era estudante secundarista na capital pernambucana. Embora, nesse ano, tenha sido detido durante uma semana por participar de uma manifestação, seu nome nunca esteve associado a qualquer ação da luta armada.
Tampouco se vê referência ao pai do presidente da OAB em atos de violência nos documentos militares ou nos relatos de ex-companheiros da APML. O livro de cabeceira de Bolsonaro, A verdade sufocada, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, tem um capítulo dedicado ao atentado no aeroporto de Guararapes. Santa Cruz não é citado entre os envolvidos.
Trinta e cinco anos depois do fim da ditadura, para merecer consideração, as informações sobre o período de sombras devem ser referendadas por documentos da época ou por declarações assumidas por quem viu ou praticou atos relacionados à morte e ao desaparecimento de militantes.
O boato tornado público na semana passada teria saído de “conversas” que Bolsonaro manteve na época em que Santa Cruz sumiu. Nada mais vago. Na prática, se não surgir nenhuma outra evidência, as declarações se enquadram por enquanto na categoria de fofoca presidencial.
Em linguagem popular, tem jeito de fuxico ou futrica. Só serve para incomodar desafetos e tumultuar o ambiente político.
Incinerado no forno de uma usina
Em relação a Fernando Santa Cruz, especificamente, um ex-agente da repressão assumiu a responsabilidade pelo seu desaparecimento. Segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, o militante da APML foi incinerado no forno de uma usina depois de morto por agentes da repressão.
Não há razão para se duvidar de Guerra. Convertido a uma religião evangélica, o ex-delegado leva vida pacífica e se diz arrependido do que fez no passado. Nenhuma informação que tornou pública desde 2012 – quando resolveu contar os fatos que viveu nos Anos de Chumbo – foi desmentida pelos envolvidos, pelos órgãos de direitos humanos ou pelos pesquisadores do assunto.
Outra evidência da falta de periculosidade – e até de relevância – de Santa Cruz se encontra no Encaminhamento nº 97916E/71/AC/SNI, do mesmo fundo do Arquivo Nacional, com data de 8 de dezembro de 1971. Na folha de rosto, lê-se “relação nominal de elementos implicados com as atividades da ‘Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil – APML-doB’, no período compreendido entre 1968 e o 1º semestre de 1971”.
Em 18 páginas, o SNI lista 719 integrantes da “APML do Brasil”. Todos os líderes conhecidos da organização estão identificados. Santa Cruz nem aparece no rol de mais de sete centenas de pessoas recrutadas pela Ação Popular.
Observa-se, em resumo, que os fatos reconstituídos com base em documentos dos militares indicam que Fernando Santa Cruz atuou como militante do movimento estudantil e integrou uma organização clandestina que defendia a luta armada. Porém, nunca se envolveu em ação violenta.
Não cabia, portanto, no figurino de “terrorista”, propalado pelos órgãos de repressão a fim de justificar para a população as prisões, torturas e mortes de adversários. Quando desapareceu, o militante da APML morava em São Paulo com a mulher e o filho, Felipe. Era funcionário concursado do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado.
No Carnaval de 1974, a família foi visitar amigos, alguns também da APML, no Rio de Janeiro. No dia 23 de fevereiro, saiu sozinho para se encontrar com Eduardo Collier Filho, da mesma organização.
Nunca mais os dois foram vistos e o quarto de Collier foi revirado por desconhecidos logo depois. Segundo documentos da Aeronáutica, da Marinha e do DOPS de São Paulo, Santa Cruz foi preso por órgãos de segurança.
Os dois militantes caíram quando a luta armada no Brasil se encontrava nos estertores. Derrotadas pelo aparato repressivo, as organizações clandestinas não tinham mais poder de fogo para a guerrilha urbana ou rural. Prisões, mortes e banimentos esfacelaram as correntes radicais de esquerda.
Dilma Rousseff
Para se ter uma ideia do momento vivido pelos grupos clandestinos, a então militante da VPR Dilma Rousseff – presidente da República entre 2011 e 2016, estava livre desde 1972, depois de quase três anos na cadeia. Vencida, a esquerda saía aos poucos da clandestinidade e retomava a vida na sociedade brasileira.
Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier faziam parte de um grupo da APML que foi perseguido por tentar manter a mobilização nas universidades depois do fechamento da União Nacional dos Estudantes (UNE). Nessas atividades, estavam José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, Humberto Albuquerque Câmara Neto e Honestino Guimarães.
Da AP, também foram mortos pela ditadura o deputado estadual (SC) Paulo Stuart Wright, o engenheiro Jorge Leal e o operário Raimundo Eduardo da Silva. Ao todo, pelo menos nove militantes da AP se encontram na lista de vítimas do governo militar.
Sem registro de participação de Santa Cruz em ações violentas – ou mesmo contato com armas – a explicação pelo desaparecimento se dá pela fase de endurecimento das atividades repressivas quando uma ala dos militares iniciava os movimentos de abertura política.
Nesse contexto, a linha mais radical dos porões lançou-se contra o que ainda restava dos movimentos de esquerda, mesmo os que pregavam o enfrentamento pacífico com a ditadura – caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB), também vitimado com o desaparecimento de dirigentes.
Pelo que relatam os documentos – e também ex-companheiros de militância e familiares –, o pai do presidente da OAB era um típico agitador de movimento estudantil, recrutado pelo grupo mais forte na política universitária no início da ditadura.
Com esse perfil, tornou-se um dos 210 desaparecidos políticos da ditadura. No total, durante os 21 anos do governo militar, 434 adversários foram mortos.