“Conservadorismo fala mais alto” que liberais à base de Bolsonaro
Conclusão é da pesquisadora Camila Rocha, que passou os últimos quatro anos estudando a formação do grupo político que assumiu o poder
atualizado
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Na disputa por influência em torno do presidente Jair Bolsonaro, é a pauta conservadora nos costumes que tem mais simpatizantes na base mais fiel do novo governo. A conclusão é da pesquisadora Camila Rocha, de 34 anos, que passou os últimos quatro anos estudando a formação do grupo político que convergiu nas eleições de 2018 e assumiu o poder. A tensão entre “anti-progressistas”, ultraliberais no Ministério da Economia e militares, segundo ela, deve continuar.
Em sua tese de doutorado em Ciência Política, apresentada na última terça-feira (5) na Universidade de São Paulo (USP), Camila mostra que o processo de formação da nova direita ocorre há mais de dez anos, na maior parte do tempo ignorado pelas instituições tradicionais. “Menos Marx, mais Mises”: Uma gênese da nova direita brasileira deve virar livro pela editora Todavia ainda no primeiro semestre deste ano.
“Do ponto de vista ideológico, o conservadorismo com certeza fala mais alto porque a maior parte da população ainda é refratária a um discurso ‘ultraliberal'”, diz Camila. Para ela, a “pressa” de ministros afinados com o discurso antiesquerdista do presidente deve “atropelar” as premissas da política tradicional.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
O que chamou atenção nesse primeiro mês de governo?
Entre avanços e recuos, eles (governo) realmente estão tentando implementar as pautas que prometeram durante a campanha. Em relação à (reforma da) Previdência, há uma articulação forte para votação ocorrer logo, e eles também conseguiram entregar o decreto que facilitou o acesso a armas de fogo. O Ministério do Meio Ambiente também cortou vínculo com órgão com quem se relacionavam antes.
Houve também várias declarações polêmicas da Damares (Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos), sinalizando qual deve ser o tom do governo em questões ideológicas, e a denúncia contra o Flávio Bolsonaro – mas em relação a isso é difícil prever quais serão os desenvolvimentos
A despeito desses incidentes todos, a impressão que eu tenho é que, de fato, eles estão tentando se acomodar na estrutura governamental e tentando já anunciar os movimentos que devem ocorrer no governo.
Há uma preocupação maior do governo em entregar resultados à base eleitoral, em comparação com outras gestões?
Com certeza há uma preocupação maior nesse sentido. Isso até pode parecer um pouco desastrado para uma parcela da população. Por exemplo, o anúncio de que iriam ‘despetizar’ o governo, tirando todas as pessoas identificadas com a esquerda. Essa é uma das preocupações principais (em relação à base eleitoral).
Há uma certa pressa dos membros do governo que se pautam mais por questões mais ideológicas, que acaba atropelando algumas prerrogativas da política tradicional.
Como essa disputa entre diferentes alas do governo pode se desenvolver daqui para frente?
Eles estão fazendo um esforço de tentar, na medida possível, acomodar algumas dessas tensões. Por exemplo: Bolsonaro dá uma declaração sobre a instalação de uma base (militar) americana. Os militares reagiram e o governo recuou. A questão da Previdência valer para os militares ou não, também, apesar de isso não estar completamente definido.
Muito provavelmente essas tensões vão permear, ao menos, o primeiro ano de governo até se chegar a acordos mínimos. Eu acho que é possível eles chegarem a esse tipo de acordo, mas tudo vai depender da aprovação inicial do governo nesse primeiro ano. É nisso que eles vão prestar muita atenção, com certeza. Se a população começar a rejeitar a maior parte dos anúncios, vai ter de haver algum tipo de mudança.
A avaliação que ficou da eleição presidencial é de que o Bolsonaro foi eleito por uma “onda” de direita. Foi isso que ocorreu?
Não gosto muito desse termo “onda” porque acho que é muito pouco explicativo. Porque “onda” parece que é uma coisa que veio do nada e que você não sabe exatamente para onde vai, o que aconteceu.
E eu acho que na verdade o que aconteceu foi um processo paulatino de construção de uma nova direita e que Jair Bolsonaro e as pessoas que os acompanharam fazem parte desse processo que começou há mais de 10 anos, a partir da internet, de fóruns, debate, comunidades na internet e foi ganhando capilaridade na sociedade civil. No mundo “fora da internet”, com o tempo, também. E foi um processo que foi sendo construído de forma bastante enraizada na sociedade civil, eu diria.
Isso aconteceu também em concomitância com tudo que estava ocorrendo nos governos do PT, na Lava Jato e tudo mais. Esses processos foram se encontrando. Mesma coisa em relação a junho de 2013. As pessoas pensavam: ‘meu Deus, aconteceu junho de 2013’. Não. Desde de 2011 começaram a acontecer várias manifestações no Brasil inteiro e as (mesmas) pessoas participaram depois da campanha pró-impeachment, em 2015, 2016.
Você diz que essa construção paulatina começa no auge do lulismo. Escândalos de corrupção favoreceram esse agrupamento?
Enormemente. Acho que o mais importante foi o mensalão. Ali acelerou um processo. Quando o (ex-presidente) Lula foi eleito era um clima muito de desconfiança e teve a “carta aos brasileiros” justamente para tentar quebrar essa desconfiança, de que não seria um governo extremista.
Estava todo mundo em stand-by, o pessoal de centro e da direita. O governo estava com uma abordagem bastante ortodoxa em relação à economia, mas quando vem o mensalão as pessoas ficam muito impactadas.
Alguns que eu entrevistei, militantes de direita falaram: ‘eu votei no Lula, confiei que eles iam fazer uma gestão ética’. Quando aconteceu o mensalão foi aquele choque. Uma das primeiras organizações disso que eu chamo de nova direita, que é o Endireita Brasil, surgiu justamente na esteira do mensalão. A ideia deles era, em 2006, fazer uma coisa parecida com o que o MBL fez na campanha pró-impeachment, ou seja, pedir o impeachment do Lula por conta do mensalão.
Só que não tinha clima. O Lula foi reeleito. O governo estava explodindo de popularidade e as pessoas que não encontravam como se expressar, expressar essa raiva, essa indignação contra o que tinha acontecido, começaram a se organizar na internet.
Boa parte de anúncios de ministros e políticas públicas foram feitos via Twitter. É o reflexo de um grupo que se consolidou no meio digital?
Eu acho que sim. Para os políticos, ideólogos, é um canal de comunicação direta, sem nenhum tipo de interferência. Você fala diretamente. O que num certo sentido seria mais crível. Inclusive foi assim que esse processo todo ele se construiu muito também em cima de uma espécie de “aqui a gente vai falar a verdade”, ‘aqui a gente não vai ter nenhum tipo de mediação’.
Até que ponto a pauta liberal ou ultraliberal foi influente na eleição do Bolsonaro?
Diria que ele foi eleito com uma série de fatores mas, do ponto de vista ideológico, o conservadorismo com certeza fala mais alto porque a maior parte da população ainda é refratária a um discurso “ultraliberal”. Estou usando um termo que eles mesmo usam para se denominar. Para essa militância ultraliberal, eles são diferentes dos neoliberais.
Os neoliberais entendendo principalmente os economistas que trabalharam durante as gestões do FHC e até durante a primeira gestão do ex-presidente Lula. Basicamente eles (ultraliberais) são muito mais radicais.
Para os neoliberais, é ‘vamos ver o que a gente vai privatizar, o que a gente não vai’. Para os ultraliberais é simples: privatiza tudo. Tudo que você puder, você privatiza porque o mercado é sempre a melhor solução para qualquer problema social e econômico. Eles estavam muito coesos em torno disso.
Quando o Bolsonaro foi para o Partido Social Cristão no começo de 2016, já com essa intenção de se eleger presidente, tinha um militante ultraliberal, o Bernardo Santoro. O Santoro foi presidente de uma tentativa de formação de um partido ultraliberal no Brasil, o Líber. Também era militante da internet, mas na época ele estava no Instituto Liberal do Rio de Janeiro. E ele foi conselheiro econômico do Pastor Everaldo.
Quando a família do Bolsonaro chega no partido, o Bernardo está lá. Em 2016, o Eduardo Bolsonaro se inscreve na 1ª turma de pós-graduação em economia austríaca do Instituto Mises. O Flávio Bolsonaro sai para prefeito do Rio de Janeiro em 2016 e o Bernardo é o coordenador de campanha. Então uma coisa começou a se formar.
O Jair saiu do PSC, foi para o Patriota, o Bernardo foi junto e se tornou secretário-geral do Patriota. Já no final de 2017 o Rodrigo Constantino sugere para o Bolsonaro que o Paulo Guedes seria um nome interessante para o Ministério da Fazenda. Então o Bolsonaro começa a frequentar esses circuitos, interagir com essas pessoas, esses ideólogos, se aproximar. Porque tinha muita desconfiança (em relação a) um militar, uma visão desenvolvimentista, nacionalista.
A crítica ao globalismo não é uma contradição à própria proposta liberal?
Existem essas tensões importantes e esse, por exemplo, é um ponto de tensão importante.
Olavo de Carvalho tem uma influência clara e já conhecida sobre o que se poderia chamar de “bolsonarismo”. Como avalia o papel dele na formação desta nova direita e do novo governo?
Muito grande. Tem várias denominações, como o ‘parteiro da nova direita’, o ‘guru da nova direita’, que acho que se aplicam com certeza porque o Olavo de Carvalho atuou, de certa forma, em uma espécie de vanguarda para as pessoas principalmente em relação ao discurso do que chamam de hegemonia esquerdista.
Como os militares se inserem no contexto da nova direita?
Esse é outro elemento que também foi fonte de tensão nesse processo de consolidação da nova direita por dois motivos: o principal acho que é econômico, porque no Brasil depois do governo Castelo Branco, que foi um governo liberal do ponto de vista econômico, o regime começou a tomar essa direção desenvolvimentista. Claro, um desenvolvimentismo conservador, de direita, e que para uma pessoa que se diz liberal na economia foi uma catástrofe completa.
Dado que Jair Bolsonaro teve uma trajetória militar, veio desse tipo de pensamento nacionalista, desenvolvimentista. Isso sempre foi um motivo de desconfiança para os ultraliberais.
Não saberia falar, em termos ideológicos, como hoje as Forças Armadas no Brasil estão organizadas, como estão pensando isso. Mas, ao que parece, por enquanto eles estão aderindo a esse projeto ‘ultraliberalismo para dentro e para fora a gente se alinha com Estados Unidos e pode se dizer nacionalista’.
Na sua tese você cita o que o Timothy Power classificou a direita como “envergonhada”.Em que momento essa direita perdeu a vergonha?
Começou a perder a vergonha de se dizer de direita quando as manifestações pró-impeachment ganharam expressão.
Até que ponto a questão religiosa tem a ver na formação dessa nova direita e no sucesso eleitoral do Bolsonaro?
O pastor é conservador, mas não quer dizer que ele vai ser assim na política, que ele vai ter uma agenda coerentemente de direita Então acho que essa coerência também foi se montando à medida que esses grupos foram estabelecendo laços e criando uma agenda.
Houve um esforço de coordenação de forças. Mas isso foi importante não só do ponto de vista das alianças políticas, mas principalmente do ponto de vista eleitoral, com certeza. É só lembrar a Marina, por exemplo, que derreteu. Teve menos de 1% dos votos