Ciência ajuda PF a decifrar rede de pornografia infantil na web
Agentes publicaram artigo na Nature para revelar como operação esvaziou fórum de pornografia infantil nas profundezas da internet
atualizado
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A Matemática e a Física se tornaram aliadas inovadoras nas investigações conduzidas pelo Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal no Rio Grande do Sul. Conceitos científicos e até fórmulas têm sido estudadas como ferramentas para decifrar organizações criminosas, identificar quais as peças principais das redes — e como é possível desmontar essas organizações.
Para contar como a ciência pode ajudar a desvendar o funcionamento do crime, três policiais federais do Brasil, em parceria com três matemáticos da Universidade de Limerick (Irlanda), publicaram artigo este mês na revista Nature, uma das mais conceituadas publicações científicas no mundo.
No texto, detalham o impacto da Operação Darknet, feita pela PF entre 2014 e 2016 em 18 estados e no Distrito Federal, em uma rede de pornografia infantil que atuava nas profundezas da internet. O saldo de 182 presos resultou na derrubada das publicações que concentravam 60% das visualizações no fórum virtual em que eram compartilhados vídeos e imagens pornográficas.
O artigo científico ressalta efeitos de algo que destoa da rotina de investigações brasileiras: aproximar a ciência da apuração policial. Nesse encontro, as duas partes se beneficiam de um incremento na eficiência.
A Operação Darknet tem duas marcas emblemáticas que, segundo os pesquisadores, são iniciativas pioneiras no mundo: infiltrar agentes policiais em uma rede da dark web, parte da internet escondida intencionalmente para proteger a identidade dos usuários e bastante usada para propósitos ilícitos, como negociações do mercado paralelo de armas e drogas, além da pornografia infantil; usar de técnicas para compreender a atuação dos criminosos para análise dos impactos causados pela operação.
Para investigar a produção e a distribuição de pornografia infantil nesse ambiente, a PF infiltrou agentes, com aval da Justiça, que monitoraram e coletaram dados sobre o tráfego, reunindo informações que poderiam responsabilizar os criminosos. A maior dificuldade foi quebrar a barreira de anonimato para deixar de lidar com avatares — espécies de máscaras digitais, atrás das quais os usuários podem se esconder — e conhecer as pessoas reais por trás das ações. A chave para quebrar essa barreira segue guardada em sigilo pelos investigadores.
“Só duas polícias do mundo trabalharam nesse ambiente, o FBI (EUA) e a Scotland Yard (Reino Unido). Com tecnologia desenvolvida dentro da própria Polícia Federal, conseguimos identificar os criminosos e bater na porta dos caras certos”, disse ao Estado o agente da PF Luiz Walmocyr dos Santos Júnior, que assina o artigo.
Rede
A analogia que ele escolhe para explicar o trabalho é a de um castelo de cartas. O castelo, diz, representa a rede criminal. Há cartas, continua, que representam muito mais para a sustentação do que outras. “Claro que se retirar todas as cartas, inevitavelmente o castelo cai. Mas qual é a forma mais eficiente de derrubá-lo com poucas prisões? É importante saber”, conta, ressaltando que nenhum crime pode ser desconsiderado.
Os investigadores mostram que de 10,4 mil usuários do fórum de pornografia alvo da Operação Darknet, 9,6 mil estão conectados com o chamado núcleo central de 766 indivíduos fortemente conectados. Estes 9,6 mil usuários não publicaram conteúdo. Em outra via, os 766 do núcleo compartilham e visualizam ativamente, o que os põe, sob a ótica dos federais, na posição de estruturadores.
Analisar como esse castelo se estrutura, qual o comportamento das peças e como atacá-las do modo mais eficaz é trabalho do agente da PF Bruno Requião da Cunha, físico por formação que se aprofundou no uso da ciência para o entendimento de redes criminais durante o pós-doutorado na Irlanda.
Para explicar o que faz, ele usa o termo criminofísica, que remete à física social — aplicar métodos da Física para entender o comportamento humano. Essa análise sobre interações na rede — com uso de conceitos e até fórmulas matemáticas — permite identificar padrões e perfis que serão úteis à investigação tradicional.
“Uma rede é um conjunto de pontos ligados por linhas. A maneira como essas conexões ocorrem sempre vai refletir determinado comportamento. Sabemos que há previsibilidade nessas relações. Não é aleatório.”
O modelo, diz, já pode ser usado em outras investigações de crimes em rede, mesmo fora da internet, como grupos de tráfico de drogas, terrorismo e lavagem de dinheiro.
“É preciso investir em inteligência”, afirma Moro
O ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, disse ao Estado que a publicação do artigo dos agentes da Polícia Federal na revista é “um indicador da qualidade dos conhecimentos científicos forenses da PF”. “Reforça ainda o quanto é preciso investir em métodos de inteligência para valorizar o trabalho dos investigadores.” Essa modernização, de acordo com o ministro, é uma das metas da pasta.
O agente da PF Bruno Requião da Cunha, físico de formação e um dos autores, diz que o que tem sido feito no país é inovador no mundo inteiro. Isso precisa ser reconhecido, diz, e fomentado. Para dar escala a esse método de trabalho, segundo ele, é preciso cooperação entre centros de pesquisa e órgãos de investigação. Mas, mesmo com toda a ciência, o conhecimento do investigador experiente não fica de lado. “A supervisão deles pode confirmar se os resultados fazem sentido na vida real”, afirma Cunha.