PL que discrimina casamento gay viola Declaração dos Direitos Humanos
O direito a contrair matrimônio está previsto nos Direitos Humanos, que completa 75 anos desde a sua publicação nesta segunda-feira
atualizado
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“Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família”. É o que está escrito no artigo 16, § I, da Declaração dos Direitos Humanos, que completa 75 anos neste domingo (10/12). Entretanto, no Brasil, em outubro deste ano, um Projeto de Lei que proíbe o casamento homoafetivo e determina que essas relações não sejam equiparadas a entidade familiar foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Tamanha discriminação preocupa e gera incertezas. “Eu tenho uma família dentro da minha casa, mas, perante a lei, é como se eu não tivesse. Eu não vou ter meus direitos preservados, porque, perante a lei, a minha família não existe”, lamenta Gleyce Santos Lima, de 33 anos.
A educadora (professora de teatro e cursos livres) tem uma união estável com a jornalista Kathlen Amado, de 34 anos. Elas têm a Sofia, de 12 anos, filha do casal. “Provavelmente, se a lei deixar, a gente se casa ano que vem”, diz Gleyce.
De 2002 a 2022 os cartórios brasileiros realizaram cerca de 19,8 milhões de celebrações de casamentos, de acordo com dados do Registro Civil contabilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse número, 67,9 mil foram de matrimônios homoafetivos. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a permitir que os Cartórios de Registro Civil realizassem casamentos entre pessoas do mesmo sexo apenas em 2013.
Desde que passou a ser realizado em cartório, o número de matrimônios homoafetivos aumentou, aproximadamente, 222,8%, entre 2013 e 2022, quando cerca de 11,9 mil casais do mesmo sexo se uniram no Brasil. Até abril deste ano, foram contabilizados mais de 76 mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
A advogada de famílias e sucessões e mestre em direito pela Universidade de Brasília (UNB) Isadora Dourado Rocha explica que, com a regulamentação do matrimônio, as pessoas passam a ter direitos exclusivos. “O casamento é um contrato que gera efeitos. Dentre eles a possibilidade de comunhão de bens, herança, além de uma série de direitos sociais do INSS, como auxílio-reclusão e auxílio-família, que estão ali previstos na legislação previdenciária”, explica.
“Tentativa vã de mudar a realidade”
Em outubro de 2023, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o PL 5167/09, que, além de proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, impõe que relações homoafetivas não podem ser equiparadas a uma entidade familiar. A matéria teve 12 votos favoráveis e apenas cinco contrários.
De acordo com o relator da proposta, Pastor Eurico (PL-PE), “a relação homossexual não proporciona à sociedade a eficácia especial da procriação, que justifica a regulamentação na forma de casamento e a sua consequente proteção especial pelo Estado”, disse o deputado. “Tentar estender o regime de casamento aos homossexuais é uma tentativa vã de mudar a realidade através de leis”, acrescentou.
Para a advogada Isadora Dourado Rocha, a fala é problemática. “Antes de tudo ela é extremamente homofóbica. Em segundo lugar, procriar pode ser uma das consequências de um casamento, se a pessoa tiver essa vontade e a capacidade biológica. Essa fala reflete a imposição de um modelo de família que, muitas vezes, não é possível nem mesmo para pessoas em relacionamentos heterossexuais”, explica.
Ainda na opinião da advogada, o Projeto de Lei fere os direitos da comunidade LGBTQIAP+. “Eu entendo que o PL é inconstitucional porque a livre formação familiar e o livre planejamento familiar são garantias constitucionais. O Estado não pode interferir nas escolhas individuais de com quem a gente vai usufruir a nossa vida”.
A proposta ainda será analisada pelas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial e pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Caso aprovado, o PL seguirá para o Senado.
A aprovação do Projeto de Lei contraria a atual jurisprudência brasileira, já que, desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a união entre casais do mesmo sexo como entidade familiar.
O Metrópoles entrou em contato com o deputado Pastor Eurico, relator da proposta, mas até o momento não teve retorno. O espaço segue aberto para manifestações.
Famílias homoafetivas
Em 2011, quando tinha apenas 21 anos, a arte educadora Gleyce Santos Lima adotou a pequena Sofia. Sete anos depois, em 2018, foi a vez de a jornalista Kathlen Amado se juntar às duas. Depois de cinco anos de relacionamento, há pouco mais de um ano, Gleyce e Kathlen têm uma união estável e criam juntas a filha do casal. “A minha família significa basicamente tudo. É a minha motivação todos os dias, para construir algo melhor”, diz Gleyce.
Para ela, família é sinônimo de amor e respeito. “Respeito pela individualidade de cada um e amor pelo outro que mora com você é a base do que é família para mim. Independente de quantas pessoas são, de como elas são, de gênero. Se tiver amor e respeito, para mim já é considerado uma família”.
A professora conta que, apesar de “estarmos em uma época, teoricamente, melhor”, o preconceito, muitas vezes velado, ainda é grande. “Além dos olhares, acho que a gente enfrenta bastante os recortes sociais. A gente ainda tem receio de andar no shopping as três e eu estar de mãos dadas com a minha esposa, por mais que hoje em dia eu sinta que é bem mais leve, a gente ainda sente e percebe que somos diferentes”.
De acordo com Gleyce, os direitos da comunidade LGBT+ estão sempre sendo colocados à prova. “Eu acho que, para que eu e minha esposa tenhamos nossos direitos cumpridos, não é com a mesma facilidade de um casal hétero. A qualquer momento isso pode ser revogado porque as pessoas simplesmente não aceitam. Não é igual, não é da mesma forma”, opina a educadora.
“Esse ano mesmo inventaram não sei de onde uma PL para proibir os casamentos homoafetivos. Uma coisa que já tinha sido garantida, uma conquista nossa foi ameaçada. É aquela coisa: eu tenho garantido hoje, mas até quando?”, questiona Gleyce.