Pirenópolis, a cidade onde a DP é um sobrado e o canil virou cela
Justiça quer obrigar museu a virar cadeia, mas prédios históricos do século passado não têm condições de abrigar a polícia nem os presos
atualizado
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Aos brasilienses, Pirenópolis dispensa apresentações. Basta o sol anunciar que vai vingar no fim de semana para que os carros se enfileirem na BR-060, pelos 170km que separam a capital federal do município goiano. Em tempos de alta temporada, o sotaque candango se sobrepõe à cadência caipira da fala típica de Goiás, ali pelas ladeiras do centro histórico da cidade. Os turistas de Brasília correspondem, segundo o Observatório do Turismo do estado, a 57% dos visitantes em feriados, contra 31% de goianos. Nem tudo, no entanto, são pequis e cachoeiras.
Quando os viajantes vão embora e a burocracia da vida comum se impõe, os pouco mais de 24 mil habitantes da cidadela (segundo o censo de 2014 do IBGE) ficam às voltas com um drama – pode-se dizer – policial. Há 12 anos, Pirenópolis não tem presos. Também não tem celas, já que, em 2005, uma decisão judicial encerrou as atividades da cadeia pública municipal e entregou o prédio ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E, há pouco mais de três meses, o lugar perdeu ainda sua única delegacia.
A última pendenga policial aconteceu em setembro passado, quando um juiz decidiu interditar a sede original da delegacia porque ela apresentava risco de desabamento. A decisão dizia que a construção – uma casa velha com portas de madeira levantada no início do século passado – apresentava infiltrações, rachaduras e danos no forro e que, só depois de reforma e uma conseguinte vistoria, poderia abrigar com segurança a equipe de policiais (são sete agentes) da cidade.
Quando chovia, a gente precisava correr com os papéis, porque molhava os inquéritos todos. Eu mal conseguia trabalhar à tarde, de tão abafada que ficava a minha sala
Micheline Chaves, uma das duas escrivãs da delegacia de Pirenópolis
Era uma casa muito engraçada
A afirmação é em tom de comemoração: o fechamento da delegacia original forçou a Polícia Civil de Goiás a alugar um imóvel até que o novo endereço fosse definido. Desde o dia 3 de outubro passado, um sobrado residencial abriga a movimentada vida policial da querida “Piri” dos turistas.
O quarto principal, com vista para a garagem e piso de cerâmica estampada em tons de bege, virou a sala do delegado Ariel Martins (na última segunda-feira, ele deixou a função em Pirenópolis para assumir o mesmo cargo em Anápolis). As duas escrivãs da DP ocupam um cômodo no andar térreo. Recepcionista e demais funcionários se resolveram como puderam na cozinha e nos quartos.
Todos os espaços foram aproveitados. O canil, um cubículo de cimento cru gradeado, também ganhou serventia: virou cela para detentos provisórios. “Mas isso não é cadeia, não!”, exalta-se a escrivã Micheline Chaves. “Os presos só ficam lá quando estão descontrolados ou muito violentos. Ninguém dorme lá, sabe? É que, senão, ‘o pessoal dos Direitos Humanos’ cai em cima da gente”, explica a policial.No momento em que a reportagem registrava o local, um assaltante conhecia seu abrigo temporário. Ele era acusado de roubar uma carreta. “Vou ter que ficar aí dentro?”, indignou-se com o agente que o escoltava.
A pacatez da delegacia em uma tarde de sexta-feira espelha a tranquilidade da agenda criminal da cidade. Segundo a Secretaria de Segurança Pública de Goiás, entre janeiro e dezembro de 2017, os policiais pirenopolinos socorreram duas ocorrências de estupro de vulnerável, 22 de tráfico de drogas, cinco sequestros relâmpagos e 10 homicídios.
Há ainda os forasteiros que, na intenção de curtir uma brisa nas cachoeiras, dão trabalho ao enxuto contingente policial de Piri. Foi o caso de Edgar Pires Abadio, suspeito de tráfico internacional de drogas, preso em setembro de 2017, enquanto passava o feriado renovando as energias nas águas goianas com a família. Ele foi detido e mandado para Anápolis.
Mesmo sem exatamente liderar rankings de criminalidade no estado, desde o fechamento da cadeia, em 2005, a “exportação” de presos à cidade vizinha de Anápolis e a outras comarcas de Goiás tem sido a única forma que a polícia local encontrou para punir seus bandidos. No entanto, as portas do sistema carcerário alheio começaram a se fechar de uns tempos para cá.
“Tipo assim, vamos dizer que as outras comarcas ‘encheram o saco’ de receber preso de Pirenópolis, sabe?”, simplifica Ariel Martins. “A última que recebia, Goiânia, passou a não aceitar”, completa.
Eu tenho mais de 200 mandados de prisão sem cumprir porque não tenho o que fazer com os presos
Ariel Martins, ex-delegado de Pirenópolis (hoje em Anápolis)
Enquanto isso, os processos se acumulam nas gavetas e os suspeitos não são encarcerados. Sem cadeia, eles dizem, não há muito o que ser feito. “Pirenópolis precisa de uma cadeia, nem que seja para os presos provisórios”, reconhece o delegado.
Polícia para quem precisa de polícia?
É aí que os dramas da cidade sem delegacia (ou com uma provisória mais honesta que a original) e o da cidade sem cadeia se encontram. Sem vagas para os criminosos de Pirenópolis, a Justiça goiana decidiu, então, que o município deveria arrumar um teto para seus próprios presos.
Na decisão, de dezembro de 2017, a juíza de direito Simone Monteiro acatou pedido do Ministério Público de Goiás para que a antiga cadeia voltasse a funcionar na sua incumbência original. A partir do próximo dia 20, quando o recesso processual termina, a prefeitura terá 15 dias para desocupar o prédio, sob pena de pagar R$ 2 mil em multa por dia de descumprimento.
A decisão deu início a um tremendo jogo de empurra entre as autoridades locais. Depois da desocupação da cadeia, em 2005, o prédio em que funcionava a carceragem – uma construção de 1919 nos moldes da Casa de Câmara e Cadeia do século 18 – foi tombado como patrimônio histórico pelo Iphan. A fachada branquinha às margens do Rio das Almas, no centro histórico da cidade, hoje abriga o Museu do Divino.
Em vez de criminosos, desde 2007 o prédio guarda cartazes e trajes típicos da Festa do Divino, uma das principais atrações turísticas do lugar. Por R$ 2, o visitante vê, distribuídos em dois andares, vídeos, formas de doce de limão tradicionalmente distribuídos às crianças durante as festas, máscaras coloridas usadas nas Cavalhadas, entre outros apetrechos.
Na saída, é possível desfrutar um agradável almoço em um restaurante de varanda, às margens do rio. Crianças correm com boias coloridas pela mesma calçada para onde as grades da antiga prisão dão de vistas. O TripAdvisor, rede social de compartilhamento de dicas de viagem, tem mais de 6 mil fotos do museu. Turismo puro.
Quando foi fechada, a condição era que a cadeia passasse a funcionar em outro lugar, mais condizente com as construções do século 20. Uma obra chegou a ser levantada na cidade, mas foi embargada por uma ação civil pública em 2009. O argumento: o tal presídio seria em perímetro urbano, o que é proibido. Ficou por isso mesmo. Um museu e nenhuma cadeia.
“Não acreditamos que a Justiça siga com essa ordem. O museu não pode receber presos. Imagina só, aquilo é um cenário”, argumenta, perplexo, o secretário de Cultura da cidade, Beto Rego. A decisão da prefeitura, então, foi recorrer. O departamento jurídico do órgão já pediu o adiamento do prazo de desocupação e, tão logo os processos voltem a tramitar, deve também ajuizar o recurso que, em outras palavras, argumenta ser absurda a exigência do Judiciário.
“O prédio é tombado pelo Iphan. Isso significa que não pode ser reformado. E, como está hoje, não tem condições de virar cadeia”, diz a procuradora-geral de Pirenópolis, Bruna Vellasco. O museu tem dois andares. Duas celas do térreo foram preservadas. São salas amplas, de piso e forro de madeira.
Duas janelas grandes de grades xadrezes, como nos tempos da construção da cidade, nos idos de 1700, dão de frente para a rua, feita de pedras. A um quarteirão dali, estão os mais famosos restaurantes de Pirenópolis. A antiga delegacia, fechada a tempo de não cair sobre a cabeça dos policiais, compartilha uma parede com a construção.
“Além de o local não ser adequado, ainda onera o município porque um presídio funcionando certamente vai degradar o prédio. E a multa do Iphan, nesse caso, é alta”, afirma a procuradora. “Fora a localidade. Ali é o ‘centro do centro’ histórico. É o lugar mais turístico da cidade. Nem mesmo os moradores e comerciantes querem uma cadeia ali”, emenda.
O secretário de Governo de Pirenópolis, Adriano Gustavo de Oliveira, assina embaixo e endossa o drama. Chama de “catástrofe” a troca de um espaço cultural por um centro de custódia de criminosos. “Primeiro pelo local. Depois, porque aquele prédio não oferece nenhuma segurança à população como cadeia. Você viu, as janelas dão para a rua. A cidade perde culturalmente e perde financeiramente”, argumenta.
Em ritmo de emergência, o governo do estado até que começou a se mexer. Na última semana do ano passado, se reuniu com a Polícia Civil de Anápolis para tratar do futuro da polícia pirenopolina. A delegada Aline Vilela, responsável pela comarca de Anápolis e Pirenópolis, deixou o encontro com a promessa de que Piri não apenas terá uma delegacia e um centro de custódia provisório, como ela será a “mais moderna do estado”.
O boato já chegou aos policiais aninhados no sobrado. “Ouvi dizer que vai ter toda a estrutura, as salas todas, estacionamento…”, comenta a escrivã Micheline. O prédio já está semipronto: seria a tal cadeia que teve a obra embargada em 2009. Segundo a Polícia Civil de Goiás, contará com “total segurança, amplo estacionamento, novas viaturas e novos agentes.”
Ganhará ainda, como consta na promessa, novas funções: vai funcionar como Central de Flagrantes e Delegacia do Turista 24 horas (hoje o esquema é de plantão voluntário: 48h nos finais de semana). A obra tem previsão de conclusão em abril e, de acordo com um assessor da delegada, já está em fase de licitação. Até lá, os inquéritos seguem acumulados (porém secos) e o canil continua como único abrigo temporário de bandidos.