Pesquisadores trazem à tona horrores do DOI-Codi na ditadura militar
Escavações arqueológicas foram realizadas no endereço do principal centro de repressão da ditadura, em São Paulo
atualizado
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Rua Tutóia, 921. Neste endereço, no bairro paulistano do Paraíso, funcionava uma sucursal do inferno. Entre 1969 e 1982, de 52 a 79 pessoas foram brutalmente assassinadas ali por agentes do principal órgão de repressão e tortura durante a ditadura militar: o Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna, mais conhecido como DOI-Codi.
Nas últimas duas semanas, uma equipe de 25 pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) dedicaram-se a esquadrinhar as dependências desse antigo centro policial. O objetivo era arqueológico: encontrar evidências materiais do aparelho estatal de tortura e repressão que funcionou no famigerado local.
“Apareceu muito material. Agora, tudo vai para análise, é preciso muito cuidado”, afirma o arqueólogo Andrés Zarankin, da UFMG. Sua frente de trabalho realizou sondagens em cinco pontos do local, três na área externa e duas na área interna, com escavações de 1,5 metro de profundidade.
“Entre os itens encontramos um frasco de tinta da década de 1960, tinta feita para carimbos, nas proximidades do lugar onde os prisioneiros eram fichados”, comenta. “Também foram localizados elementos da cotidianidade, como fragmentos de louças, pratos, xícaras, garrafas de vidro, de perfume, de medicamentos e de um jornal de 1976”, acrescenta Zarankin.
Nos próximos meses, deve ser realizada a fase seguinte: a análise laboratorial, quando tudo isso será limpado e analisado “a nível contextual”, explica o arqueólogo. “Aí, sim, vamos tirar conclusões para fazer afirmações mais sólidas.”
Todo o material não orgânico ali retirado será analisado em um laboratório da Unicamp. Já os resquícios orgânicos serão examinados na Unifesp.
A etapa atual da pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Unicamp, que investiram, respectivamente, R$ 89 mil e R$ 80 mil.
Sangue em paredes
Paredes também foram analisadas, com o objetivo de localizar indícios materiais do passado sob as diversas camadas de tinta, graças a um processo de decapagem. “Em uma delas, encontramos inscrições com dias marcados em um mês de novembro, mas ainda não sabemos de qual ano”, acrescenta Zarankin. As marcações encontradas são de 22 de novembro a 3 de dezembro — e, pela lógica dos dias da semana associados a essas datas, os pesquisadores acreditam que tenham sido feitas em 1970 ou em 1981.
Em paralelo, outra equipe de pesquisadores se dedicou à chamada arqueologia forense. Neste campo, os pesquisadores colheram diversos materiais para buscar traços biológicos que remetam aos personagens que por ali passaram — calcula-se que o endereço tenha sido o local de detenção, e muitas vezes tortura, de pelo menos 7 mil presos políticos durante a ditadura.
“Esta é a frente que investigou a parte interna de um dos prédios, onde, por meio de pesquisas e testemunhos, identificamos ser um dos principais locais onde ocorreram torturas”, diz a historiadora Deborah Leal Neves, também integrante do projeto.
“Localizamos evidência de sangue. E esse material ainda vai ser analisado”, adianta o arqueólogo Zarankin. Os vestígios de sangue foram localizados embaixo do piso de tacos de madeira em duas salas usadas para o interrogatório dos presos.
Uma das mais notáveis personalidades executadas nas dependências do DOI-Codi foi o jornalista Vladimir Herzog (1937-1975).
Valorizar a democracia, combater a ditadura
O arqueólogo avalia que essas materialidades servirão para contar em mais detalhes a história do prédio. “E as pessoas irão compreender melhor como uma ditadura funciona, com suas atividades completamente fora do que seria um espaço de direito. É importante para que todos valorizem mais a democracia e que consigamos chegar a um acervo para um futuro memorial”, alerta Zarankin.
“Há uma importância simbólica enorme neste trabalho, porque é o maior espaço da repressão da ditadura brasileira. E foi dirigido por muito tempo pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o herói do ex-presidente Jair Bolsonaro”, comenta o arqueólogo. “Não há dúvidas de que este protejo será importante para darmos um fechamento a essas ideias delirantes de que a ditadura pode ser uma coisa positiva.”
Para a historiadora Deborah, o trabalho arqueológico deve servir tanto para nortear o futuro memorial que eles pretendem ver instalado no local, quanto para “a construção de uma política de defesa da democracia no Brasil”.
“Nosso trabalho se soma a outros tantos que já vêm sendo feitos ao longo das últimas décadas para tentar compreender o que foi o DOI-Codi e humanizar também as pessoas que foram sequestradas e torturadas nesse espaço”, explica a historiadora. “Porque elas foram despidas de sua humanidade pelo órgão de repressão. Então, estamos buscando vestígios materiais da ocupação desse espaço que corrobore pesquisas [anteriores] e os testemunhos coletados.”
Há nove anos, Deborah coordena um grupo de pesquisadores que defende que a antiga sede do DOI-Codi seja convertida em um espaço memorial.