Perdão dado por Bolsonaro é inédito desde a redemocratização do Brasil
A graça concedida para extinguir punibilidade de Daniel Silveira não tem registros desde 1985, quando a ditadura militar terminou
atualizado
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A graça constitucional concedida pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), nessa quinta-feira (21/4), é inédita no Brasil democrático. Desde a redemocratização, em 1985, não há registros de indulto individual a ninguém no país por um presidente da República.
A possibilidade de graça está prevista na Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988.
O indulto natalino, aquele concedido por chefes do Executivo a um coletivo de apenados que se encaixem em critérios pré-definidos, em nada se parece com a chamada “graça” – concedida na quinta-feira nominalmente e individualmente ao parlamentar condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por estimular atos antidemocráticos e proferir ataques a ministros do tribunal e instituições democráticas.
Ao contrário dos decretos publicados, geralmente no fim de cada ano com o indulto, o presidente deu a Daniel Silveira o que é chamado no direito de “graça plena”.
“A graça é destinada a uma só pessoa e o objetivo é extinguir a punibilidade, extinguir todas as penas com relação aos crimes que foram a ele imputados. No caso desse decreto em específico, foi concedida a graça plena a uma pessoa”, afirmou a advogada constitucionalista e mestre em direito público administrativo pela FGV Vera Chemim.
Ela lembra que, desde a Nova República, em 1985, isso nunca ocorreu no país. “O indulto individual surgiu no tempo dos reis, na Europa, quando havia condenação à morte e o rei dava a clemência para o condenado. No Brasil, isso não acontece. A meu ver, é uma previsão constitucional, de prerrogativa do presidente, no entanto, surge neste momento apenas para agravar a tensão que já existia entre o Executivo e o Supremo”, analisou a especialista.
Bolsonaro usa voto de Moraes para justificar perdão a Daniel Silveira.
Em transmissão ao vivo nas redes sociais, Bolsonaro afirmou que o perdão a Silveira não se direciona somente às penas privativas de liberdade do deputado, mas sim ao afastamento das sanções impostas pela condenação judicial. Como jurisprudência sobre o tema, o chefe do Executivo federal citou trechos de votos anteriores dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.
As decisões dos ministros, no entanto, tratavam de indultos natalinos para benefício de um conjunto de pessoas — o Supremo já chegou a validar um indulto de Natal do ex-presidente Michel Temer (MDB) que incluiu o perdão a condenados por corrupção.
Para o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, a atribuição do presidente é constitucional, porém pouco usual no Brasil. “Acontece muito nos Estados Unidos. O Supremo Tribunal Federal poderá, em última análise, apurar se houve ou não desvio de finalidade. Contudo, existe a previsão constitucional e é necessário respeitar a independência entre os Poderes”, disse.
1945
Com o término da Segunda Guerra Mundial, José Linhares concedeu indulto, em 3 de dezembro de 1945, a oficiais e praças integrantes da Forças Expedicionárias Brasileiras.
Na ocasião, Linhares tinha assumido a presidência no lugar de Getúlio Vargas e concedeu perdão presidencial a Di Bartolomeu Ader e Ranzzette Soliene, do Serviço de Intendência da Força Expedicionária Brasileira da Itália e do Pôsto Regulador de Livorno.
Embora seja decisão nominal, o decreto foi publicado em conjunto com o indulto coletivo. Mesmo em outro regime, a decisão não se compara à medida direcionada de Bolsonaro.
Crise
Quando anunciou a “graça constitucional” a Silveira, Bolsonaro disse que o decreto “vai ser cumprido”. A fala foi vista como mais um recado para a Corte Suprema. Especialistas, por outro lado, alertam para eventual mau uso do instrumento, com o desvio de finalidade do perdão da pena, se for constatado que houve violação ao princípio da impessoalidade.
“Esse indulto fere o princípio da impessoalidade. […] O indulto concedido a Daniel Silveira poderá ir ao STF e ter sua constitucionalidade analisada. Mas nada disso é sobre direito. É sobre corrosão constitucional e desgaste democrático que o presidente promove desde que assumiu seu mandato”, explicou Eloísa Machado, advogada e pesquisadora sobre o STF, em publicação nas redes sociais.
O advogado criminalista e professor da FGV-SP Celso Vilardi acredita que a atitude do presidente Jair Bolsonaro pode ocasionar uma crise institucional, visto que o Supremo “foi duro e coeso” ao decidir pela condenação de Daniel Silveira. Durante o julgamento, foram 10 votos a favor da penalização do deputado contra apenas um que pedia a absolvição do político.
De volta ao STF
Embora o presidente da República tenha afrontado uma decisão da Suprema Corte antes mesmo do trânsito em julgado da ação contra Daniel Silveira, o próprio STF vai analisar a legalidade da norma. A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi escolhida, nesta sexta-feira (22/4), relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 964, que analisará a legalidade do perdão concedido pelo presidente a Silveira.
A relatoria foi sorteada nesta sexta-feira (22/4). Rosa Weber assume a ação gerada a partir de pedidos dos partidos Rede Sustentabilidade, PDT e Cidadania. As legendas acionaram o STF por considerarem que a decisão do presidente viola os princípios da separação dos poderes, com “evidente desvio de finalidade à luz da teoria dos motivos determinantes”.