Parque de esculturas esquecido em Goiás tem arca de Noé e castelos
Fazenda de ex-prefeito traz centenas de obras baseadas em temas como passagens bíblicas e teoria de Darwin, torres e túmulo à prova de morte
atualizado
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Hidrolândia – Uma “cidade medieval” no meio do cerrado goiano, repleta de castelos de pedra, rodeados por esculturas de animais, seres mitológicos e passagens bíblicas.
Não bastasse isso, há uma réplica da arca de Noé, além de um túmulo excêntrico de onde é possível se comunicar com o lado exterior.
Parece ficção, mas é realidade. Isso tudo fica na zona rural de Hidrolândia, região metropolitana de Goiânia, e se mostra surpreendente.
As obras do Lago Ideia Molhada começaram em meados dos anos 1980. A proposta original era um hotel fazenda, com quartos dentro de 37 pequenos castelos e área de lazer. No entanto, o empreendimento não foi para a frente.
Um restaurante chegou a funcionar em um dos castelos, mas hoje se vê fechado. As esculturas e construções estão atualmente com aparência abandonada, tomadas pela vegetação, morcegos e insetos. Algumas, em ruínas, formam um cenário ao mesmo tempo bucólico e sombrio.
A prova de morte
As construções do Ideia Molhada foram realizadas ao redor de um lago artificial. Uma ponte larga passa sobre as águas. Logo na entrada, uma das primeiras edificações é um pequeno cômodo no formato de um cilindro, coberto de rochas arredondadas, com uma cruz de concreto no topo.
Trata-se de um túmulo, com caixão e tudo, mas não um túmulo qualquer. O local vem equipado com celular, televisão, entrada de ar e tubos de PVC no estilo mola conectados à parede que servem como “comunicadores”. A ideia é dar suporte para pessoas que, por algum acaso, despertam depois de sepultadas.
O futuro morador da sepultura é o dono e idealizador da fazenda, Freud de Melo, de 86 anos. Ele decidiu construir o próprio “descanso eterno” depois de se ver atormentado com pesadelos e histórias de pessoas enterradas vivas.
“Eu defendo a tese que hora ou outra as pessoas são sepultadas ainda com vida, com reflexos ou lampejos de vida”, explicou Freud ao Metrópoles em seu escritório, rodeado de fotos em preto e branco dele mesmo, a maioria da época em que foi prefeito.
Além da sua “cidade medieval”, Freud é conhecido na política por ter sido prefeito da cidade de Aparecida de Goiânia entre os anos 1970 e 1980. Além disso, o ex-político atua como empresário, advogado e auditor aposentado.
Inspiração religiosa
Os castelos de Ideia Molhada são interligados por estradas que rodeiam o lago e cruzam partes preservadas do cerrado ou plantações de soja. Enquanto se caminha por elas, é possível se surpreender com uma série de esculturas variadas.
A maior parte das obras veio das mãos do artista Manoel Pereira de Santana. No entanto, tudo foi realizado sob a supervisão e orientação de Freud de Melo.
Boa parte das centenas de esculturas tem inspiração em passagens da Bíblia Sagrada. Há o momento em que Adão percebe que Eva comeu o fruto proibido. Também representou-se a cena em que o grande peixe cospe Jonas na praia. Momentos da crucificação de Jesus Cristo se espalham pela fazenda.
Mas nada chama mais a atenção do visitante que uma Arca de Noé “ancorada” na beira do lago. São cerca de 100 metros de comprimento e mais de 300 animais de concreto. A cena escolhida é o momento em que o barco atraca em terra firme, depois do dilúvio, com os animais descendo da embarcação.
A sensação de ver e entrar na arca de Ideia Molhada é a de estar dentro de uma pintura religiosa representando a passagem do livro de Gênesis. Dá para andar entre os bichos de aspecto estranho e representações de Noé, sua esposa e filhos. Dentro do local, há um espaço rústico com carteiras de madeira, planejado para servir como auditório.
Veja a Arca de Noé:
Contradição
Apesar da veia religiosa cristã em boa parte das esculturas, a inspiração das obras varia bastante. Há dinossauros, monstros, cavaleiros, caipiras, a famosa imagem que representa a Teoria da Evolução, de Charles Darwin, e, acredite, uma pequena escultura de um dos Bananas de Pijama.
Para Freud de Melo, tanto o Criacionismo como a teoria de Darwin são mentiras. E a Arca de Noé? Uma mitologia.
“Eu sou Católico Apostólico Romano, mas eu não acredito na Arca de Noé. A Bíblia é um espetáculo, mas, como qualquer coisa no mundo, padece de realidade. Não estou desrespeitando a Bíblia”, avaliou.
Freud de Melo segue uma interpretação particular das escrituras sagradas, que na sua visão foram modificadas do original por escritores com o passar do tempo. Ele disse ser capaz de ler o subconsciente, assim como o xará Sigmund Freud teria sido capaz.
“Deus existe! Mas diabo, satanás, lúcifer, capeta… Vocês acreditam nisso? Olha só. Capeta do mundo! Satanás do mundo! Lúcifer! Vem por cima de mim! Olha, estou aqui desafiando! Capeta, aparece para mim, vem debater comigo! Eu estou valente porque não existe capeta”, desafiou o ex-prefeito aos gritos.
Origem incerta
Mesmo com essa mistura toda, Freud de Melo não sabe ao certo, ou prefere não dizer exatamente, o que o motivou a criar cada peça. Ele compara a construção dos castelos com a composição de uma música e a feitura de uma obra de arte.
“Eu construo com inspiração, assim como um músico, seja ele da espécie que for”, falou. “Tenho o maior centro cultural e histórico do mundo”, definiu.
Enquanto conversava com a reportagem, por diversas vezes, Freud de Melo falou sobre o tempo e sua certeza de que as obras do Lago Ideia Molhada durariam milhares de anos. “Fiz algo que daqui a 10 mil anos existirá.”
Só que ao ser questionado se o objetivo era deixar algo para posteridade, Freud de Melo disse que não se interessava por isso.
Em entrevista para a revista Isto É em 1999, o ex-prefeito afirmou que “proeminentes figuras do espiritismo” dizem que ele teria sido “um rei ou senhor feudal” em vidas passadas. Para o Metrópoles, em 2021, ele se definiu como um visionário e se comparou a inventores como Santos Dumont e Graham Bell.
Visão romantizada
O complexo de esculturas e “castelos” de Freud de Melo já foi tema até de uma pesquisa científica. O historiador Ademir Luiz da Silva escreveu o artigo “A ‘Cidade Medieval’ de Goiás”, em que ele tenta explicar o local construído pelo ex-prefeito de Aparecida de Goiânia.
Para o pesquisador, as construções da fazenda Lago Ideia Molhada são uma “apologia aos tempos medievais”, frutos de uma “visão romantizada da Idade Média”, vista na literatura e no cinema da geração de Freud de Melo.
“Em Goiás, a ‘cidade medieval’ (…) foi resultado da forma particular de Freud de Melo ‘sonhar a Idade Média’, influenciado pela maneira com que conheceu esse período da história humana nos livros que leu e nos filmes a que assistiu em sua juventude”, escreveu o historiador em um trecho de seu trabalho.
Segundo a análise, esse gosto e imaginário pelas coisas “medievais” eram divididos com um amigo um pouco mais velho, o escritor Carmo Bernardes, radicado em Goiás e morto em 1996.
Dentro da fazenda de Freud há uma pedra em homenagem ao autor: “Carmo Bernardes, escritor regionalista inimitável e sertanista nato inspirou a construção deste Lago Ideia Molhada”.