Pandemia sem água: bairros do Recife estão há um mês sem abastecimento
Mulheres em comunidades como os conjuntos habitacionais da Torre e do Passarinho se uniram para cobrar – e criar – soluções
atualizado
Compartilhar notícia
O “fio da vida” não jorra quando moradores de comunidades no Recife abrem a torneira, há mais de um mês. Quase sete décadas separam o Severino de João Cabral de Melo Neto – que fugia da seca que talhava sua morte e vida – e a realidade dos moradores dos locais afetados pelo desabastecimento, como os conjuntos habitacionais da Torre e do Passarinho. O cenário das duas épocas ainda tem em comum relatos de sede, privação e a água como um divisor entre quem vive ou morre.
Nos bairros mais ricos, como Boa Viagem, no Recife, constroem-se poços e cisternas para garantir o abastecimento. Já as regiões periféricas enfrentam rodízios e chegam a ficar meses sem abastecimento. Em vários pontos do país, do Nordeste ao Sudeste, houve registros de aumento no consumo de água durante a pandemia: as recomendações de lavar as mãos e higienizar produtos que chegam da rua, além do maior tempo passado dentro de casa, justificam essa alteração.
Assim, a falta de acesso à água de qualidade e ao saneamento básico reforça o abismo da desigualdade social. Diante desse cenários, há especialmente iniciativas de lideranças femininas nos bairros mais afetados da capital pernambucana para cobrar soluções do poder público e promover ações dentro das comunidades para amenizar os impactos desse problema.
No bairro do Passarinho, um loteamento feito durante o governo de Miguel Arraes de Alencar, há áreas em que a água chega a cada 15 dias, em outros somente uma vez por mês, e existem ainda os espaços onde não há qualquer abastecimento.
Quando a água vem, a comunidade toda se mobiliza para lavar as casas, dar banho nas crianças e encher vasilhas. O coletivo Espaço Mulher de Passarinho reuniu-se para buscar uma solução. Elas terão apoio de ONGs internacionais para criar uma sistema de reaproveitamento de água.
Cerca de 20 mulheres uniram-se em torno desse objetivo. Elas reivindicam “direito à cidade e políticas públicas relativas à água”. “É a política mais preciosa: água limpa mata a sede e dá de comer. Fizemos um intercâmbio de conhecimento com outros bairros, com escolas. Agora vai funcionar assim: quem tem máquina de lavar, a água não vai mais para o esgoto, vai para a caixa do banheiro, por exemplo. Para quem não tem essas condições, a gente está comprando bomba de tonel e canos para armazenar água da chuva”, explica Edcléa Santos, 63 anos, uma das lideranças à frente da ação.
Edcléa Santos
Em Boa Viagem não falta água. Ou seja: água tem, só não chega até aqui. Nós também somos sujeitos políticos, também queremos viver e água é vida, é um direito, especialmente durante uma pandemia que exige cuidados maiores com a higiene
Edcléa ressalta que, na comunidade, há famílias com muitos filhos dentro de habitações de um ou dois quartos, pessoas idosas e com deficiência, para as quais a falta de água representa uma privação de direitos ainda maior. Às vezes, a água só chega de madrugada, e preciso passar a noite toda acordado para conseguir armazenar o suficiente para os próximos dias.
O grupo Espaço Mulher de Passarinho existe há 22 anos e se declara como um “trabalho de resistência”. Elas já levaram para a comunidade o conceito de alimentação saudável e sustentável da agricultura urbana. “Tinha um rio maravilhoso aqui que hoje não existe mais, era essencial, o lugar onde as pessoas tomavam banho, lavavam roupa. Hoje você encontra até televisão e sofá dentro do que era o rio. O crescimento da comunidade foi se dando sem saneamento básico e políticas públicas de educação”, relata.
Edcléa nasceu no Morro da Conceição e na década de 1980 passou a trabalhar em movimentos sociais. Ela era empregada doméstica e descobriu no teatro como expressar sua voz. “Me fortaleci como mulher negra da periferia. Nosso papel é muito importante, a gente precisa se sentir sujeito político, mas nem sempre temos o conhecimento. Temos que lutar para que a gente possa aparecer, ser ouvida.”
Ela relata que o grupo Espaço Mulher tem três pilares: gênero, raça e classe. A maioria das integrantes é empregada doméstica e muitas não são alfabetizadas. Durante a pandemia, elas reivindicaram, por exemplo, que houvesse carro de som da prefeitura circulando para informar sobre a situação da saúde, mas não foram atendidas. Também querem uma audiência pública para falar sobre abastecimento de água.
“Eu sempre fiquei puxando e convidando as meninas para participar. Nesse grupo, a gente foi se descobrindo feminista e mulher negra. E isso foi nos fortalecendo porque muitas mulheres tinham medo de dizer que são negras”, lembra Edcléa.
A família dela foi uma das 500 transferidas do morro para o assentamento, há mais de duas décadas. “No começo, tinha água todos os dias, com o crescimento, a Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento) veio e botou água dia sim outro não, depois uma vez por semana e assim foi.”
Em 2015, quando o IBGE fez a contagem, a população do Passarinho era de 20 mil habitantes. “Hoje tem muito mais. Temos a Vila Nossa Senhora da Conceição, com duas ocupações: Vila Esperança e Vila Bom Jesus, que necessitam de tudo, e o habitacional com 306 apartamentos.”
No Conjunto Habitacional da Torre, também no Recife, a situação se repete. Há mais de 60 dias os moradores não têm abastecimento regular. Mesmo assim, a operadora de caixa Cláudia Ferreira, 45 anos, recebe – e paga – todo mês a conta de água, que este mês veio mais de R$ 90. “O problema piorou do ano passado para cá. Passamos o Natal sem água, em 31 de dezembro chegou e acabou no dia seguinte. A última vez que chegou foi no fim de janeiro”, relata.
A moradora conta que o conjunto habitacional, nascido com a transferência de pessoas que viviam nas palafitas para aquele terreno, há 17 anos, sempre teve problemas de desabastecimento. “A prefeitura nos trouxe para o conjunto, o prefeito da época deu entrevistas, se você olhar o projeto era lindo, mas nada daquilo se concretizou. Eu agradeço a Deus por ter recebido minha casa, mas a verdade tem que ser dita.”
Cláudia relata que há esgoto correndo ao lado das caixas d’água, então não é possível cozinhar nem tomar aquela água. Ela e outras mulheres do residencial se uniram para protestar, no último mês, e conseguiram que a Compesa enviasse caminhão pipa até o local. “Mas não é suficiente nem para uma semana, não resolve o problema. Eles não
fazem uma cisterna ou poço”, afirma.
A vida da comunidade gira em torno da luta pela água. Quando chega na torneira de uma vizinha, as outras fazem fila na porta para encher recipientes e garantir o mínimo para a sobrevivência. “A fila fica enorme, tem gente que passa o dia inteiro. Eu tenho que tomar banho com meio balde de água, para deixar o restante para o meu marido. Há quatro meses não sabemos o que é banho de chuveiro”, conta Cláudia.
Quando lava pratos, Cláudia usa a água que sobra para poder dar descarga – que vem fraca. Para lavar roupa, ela vai até o centro do Recife, na casa de familiares. “Para cozinhar a gente compra água mineral. Além de cozinhar, a gente toma. Eu tô ficando doente com isso, isso causa em mim problemas de depressão, emocionais, fora o esforço físico de viver subindo e descendo escada com galão”, relata.
Viemos da palafita. É uma comunidade pobre, a gente não tem vergonha de dizer. Nos tratam como qualquer coisa que jogaram lá e se acabou
Cláudia Ferreira
Com a pandemia, os moradores têm se desdobrado para comprar álcool, já que não há outra forma de limpar as mãos e objetos. “Imagine passar por uma pandemia que requer higiene sem água. Os apartamentos são muito pequenos. Se você deixa um banheiro sem descarga e sai pra trabalhar quando volta é insustentável. É difícil para quem tem dignidade e quer viver na limpeza e na organização. E todo mês chega a conta”, reforça o marido de Cláudia, Willames. Os dois tiveram Covid-19, mas passam bem.
Nova crise
Rud Rafael, representante da ONG Fase e da Articulação Recife de Luta, que é vizinho do Conjunto Habitacional da Torre, lembra que a construção dos grandes centros urbanos se dá pelo êxodo em função da seca.
“Está na figura do sertanejo a migração para outros lugares, como vemos em Morte e Vida Severina, o retrato da condição de vida daquele momento. Houve um conjunto de investimentos e políticas ao longo do tempo, sobre convivência com o semiárido, política de cisternas. Mas a falta de política de infraestrutura urbana na capital faz com que a gente chegue a um colapso de novo. Pouco mais de 40% do Recife é saneado. A falta de investimento em políticas públicas gerou essa crise”, aponta.
“Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
Cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
O que pensei ser mentira
Quem sabe se nesta terra
Não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem buscou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina”
João Cabral de Melo Neto, em Morte e vida Severina
O ativista destaca que, no século passado, o problema de seca parecia ser “ladainha de sertanejo” que peregrinava para as capitais para fugir dela. “O “progresso” capitalista está universalizando essa experiência para todo mundo”, observa.
Rafael afirma que territórios como o Passarinho e o Conjunto da Torre estão se articulando para dar uma resposta para problemas que o poder público gerou. “Recife vive um processo histórico de racionamento desde que me entendo por gente. É a capital da desigualdade. Que a pandemia nos ensine a priorizar os direitos à saúde, ao saneamento e à moradia. É isso ou morte.”
Ver essa foto no Instagram
Por meio da assessoria de imprensa, a Compesa informou que atua sistematicamente na solução para o melhor abastecimento do Conjunto Habitacional da Torre, localizado no bairro de mesmo nome no Recife.
“Assim que tomou ciência da questão, a Compesa iniciou estudos e sondagens para identificar a causa da falta de água, que é uma ocorrência pontual, apenas neste residencial. Após sucessivas vistorias na rede de abastecimento de água, válvulas e registros, os técnicos da Companhia encontraram um ponto provável de vazamento oculto (aquele que não aflora na via) no cruzamento da Avenida Caxangá com a Avenida Professor Estevão da Costa.
Para ter a certeza sobre este vazamento, que pode ser a causa da falta de água, será utilizado o geofone, equipamento de alta precisão que indica o ponto exato de vazamentos ocultos. Por se tratar de uma rua muito movimentada, esse serviço será feito no período noturno, devendo ocorrer com brevidade. Até a regularização do fornecimento de água do Conjunto Habitacional da Torre, a Compesa está atendendo o residencial por meio de carro-pipa, todas as noites”, traz a nota.
Com relação à comunidade Passarinho, a Compesa explica que a localidade é atendida por redes de distribuição distintas, e que, para esclarecer sobre situação de falta de água, é necessário que seja informado o endereço completo dos moradores que reclamaram da situação.
“A Compesa esclarece, ainda, que o regime de distribuição de água é estabelecido de acordo com a disponibilidade hídrica de cada bairro, a topografia e o sistema de abastecimento a qual a localidade está inserida. No final de janeiro deste ano, a Companhia anunciou a ampliação do rodízio de abastecimento em dez cidades da Região Metropolitana do Recife, consequência dos baixos níveis dos reservatórios que atendem a RMR.
Mediante o anúncio da Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC), um cenário reiterado na semana passada com a previsão climática em Pernambuco para o próximo trimestre (março, abril e maio) indicando probabilidade de chuvas abaixo da média em todo o estado, a Compesa, na tentativa de preservar a água disponível nos mananciais até o inverno e também atender a população de cada bairro dessas cidades, de forma igualitária, alterou o calendário da região.”
A assessoria também frisou que a Compesa “segue promovendo investimentos sistemáticos na universalização do saneamento. Nos últimos dez anos, foram investidos R$ 7,5 bilhões em obras de ampliação de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. Tal estratégia tem sido viabilizada pelas parcerias firmadas ao longo dos últimos anos com governos federal e estadual, bancos internacionais, bancos nacionais privados e públicos e empresas privadas.”
Saneamento
Quase metade da população do Brasil continua sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário, o que significa que quase 100 milhões de pessoas, ou 47% dos brasileiros, utilizam medidas alternativas para lidar com os dejetos – seja através de uma fossa, seja jogando o esgoto diretamente em rios.
Além disso, mais de 16% da população, ou quase 35 milhões de pessoas, não têm acesso à água tratada, e apenas 46% dos esgotos gerados nos país são tratados.
Os números são do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), divulgados em 2020 e referentes a 2018.
Água e pandemia
Há relatos sobre aumento no consumo de água em vários estados brasileiros, durante a pandemia. No Rio Grande do Norte, o governo faz alertas à população sobre a necessidade de fazer uso consciente dos recursos.
Em Santa Catarina, uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) indicou que houve, no estado, aumento médio de 11% no consumo de água, durante a pandemia.
O consumo residencial de água na cidade de São Paulo, por exemplo, aumentou 5% durante a pandemia, mas há bairros da Zona Leste da capital que sofrem com problemas no abastecimento durante a crise da Covid-19.
O Serviço de Água e Esgoto do Município de Araras (Saema-SP) constatou que em abril de 2020, com a pandemia do coronavírus, em comparação ao mesmo período do ano passado, quando não existia o isolamento social, o consumo de água nas residências aumentou cerca de 40 milhões de litros num mês.