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Pandemia levou jovens indígenas para o tráfico, denuncia Thyara Pataxó

Em entrevista, uma das lideranças territoriais na Bahia relata a luta solitária contra a falta de acesso à saúde e à segurança

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Mulher e liderança indígena da etnia Pataxó, graduanda em Agroecologia pela UFRB, mãe de Hywnatã e Werinahy. Assim apresenta-se Thyara Pataxó, 29 anos, nas redes sociais. Ela está entre os jovens indígenas com milhares de seguidores, que usam essas plataformas para expor violações de direitos e quebrar estereótipos raciais construídos há mais de 500 anos no Brasil.

“Descobri quem eu sou dentro do movimento indígena. O meu cotidiano é voltado para a luta pelo território e pela saúde do meu povo, que é a etnia Pataxó, no sul da Bahia”, afirma Thyara. Ela é Conselheira da  Associação Indígena Novos Guerreiros (ASSUHÃ) e segunda secretária da (Associação da Juventude Indígena Pataxó) AJIP .

Em entrevista ao Metrópoles, a liderança relatou os impactos da pandemia na aldeia. Thyara chama a atenção para a questão da pobreza que tem levado cada vez mais jovens à fome e, consequentemente, ao tráfico de drogas por falta de trabalho.

“Há mulheres fazendo faxina em troca de um Miojo no almoço, em situações análogas à escravidão”, afirma. Ela também denuncia haver um deserto de políticas públicas voltadas para os povos originários. “Não somos um enfeite na prateleira do Brasil.”

Quais são os maiores desafios na aldeia Novos Guerreiros, atualmente?

Falo da realidade Pataxó, na aldeia Novos Guerreiros, que fica entre duas cidades, e é visitada por pessoas do país inteiro. Ficamos dentro do território Ponta Grande, que segue em processo de demarcação. A aldeia é urbanizada, houve muita introdução de cultura não indígena e isso fez com que a gente precisasse fortalecer a cultura indígena local. Nos unimos com lideranças como os caciques para ter diálogo. Outros jovens já faziam esse trabalho antes de mim, as formas de luta vão mudando.

Estamos preocupados com uma nova invasão de culturas não indígenas. Aqui a questão do tráfico de drogas está muito forte, arrastando jovens para esse mundo. Precisamos abordar esse tema com mais frequência e discutir como trazer de volta esses jovens para a realidade indígena.

Aos 29 anos, Thyara é uma das lideranças indígenas da etnia Pataxó, na Aldeia Novos Guerreiros

Um dos maiores desafios é buscar parcerias: antes tínhamos apoio de ONGs, da prefeitura, mas devido a questões políticas dentro do município e à falta de recursos para instituições esses vínculos foram rompidos. Ainda assim, temos o Conselho da Juventude Indígena Pataxó, formado por jovens que representam territórios. 

Com a Associação Juventude Indígena Pataxó queremos fomentar projetos, quando há um edital aberto nós corremos atrás. Tudo para trazer uma outra realidade para essa juventude, com acesso à informação, ao  lazer e ao esporte. Essa juventude não está tendo acesso a nada disso.

O que tem sido feito para mudar essa realidade?

Há uma questão muito precária no que se trata à educação. A juventude indígena está sendo deixada de lado pelos governos estadual e federal. Cabe a nós mesmos buscar através da associação captar recursos para trazer projetos que envolvam a nossa juventude. A gente tenta chamar a juventude para o diálogo. São mais de 400 jovens expostos a essa realidade só no meu território.

Nossos anciões falam que a gente não é o futuro, nós somos o presente da comunidade. Nossos anciões eram heróis, hoje essa juventude não tem mais essa visão porque os aspectos culturais estão se perdendo.

A pandemia piorou esse cenário?

A maioria das famílias vive de artesanato. Quando surgiu a pandemia as atividades pararam, se não fossem as vaquinhas teriam entrado em necessidade extrema. Nesse momento o tráfico se fortaleceu, pela necessidade desses jovens de gerarem alguma renda.

Há cada vez mais casos de jovens consumindo e entrando no tráfico e isso nos preocupa muito. A cidade é pequena, então quando tentam sair do esquema ficam marcados por facções. Nossos encantados também ficam tristes com isso.

A gente tenta fazer o máximo, mas o atual governo pauta que as comunidades demarcadas são as únicas a receber qualquer coisa. A Funai pertence ao governo. Os encontros, congressos, tudo que envolvia a juventude acabou. A gente saía daqui para participar em vários outros lugares, conhecer as necessidades de outros povos. Eu me formei uma liderança nesses encontros, nesses intercâmbios.

Agora, mais do que nunca, as comunidades indígenas estão abandonadas. O governo criou barreiras e as nossas bases estão sofrendo: não há segurança, saúde, educação. Isso afeta a existência da nossa juventude. 

Houve casos de Covid na sua aldeia?

Tivemos pelo menos quatro casos de Covid-19. Em um dos mais recentes, a enteada do meu primo foi mandada para casa com falta de ar todos os dias. Quem tem de morrer vai morrer, quem tem que viver vai viver, segundo o médico.

Estamos dentro do município de Porto Seguro (BA). O governo esconde os dados, abafa a realidade, é uma falta de humanidade terrível. Porto Seguro vive lotado inclusive de turistas. A gente colocou cadeados na entrada da comunidade, fez rodízio na portaria para controlar a saída e entrada e ainda assim tivemos casos de Covid. Em outras aldeias de Coroa Vermelha teve outros casos. 

As pessoas entraram sem máscara, não usavam álcool. Turistas entram como querem e a população indígena pode ter imunidade baixa, além da preocupação com nossos anciãos. 

Continuamos a fazer barreiras sanitárias, alertando sobre as variantes. Não há suporte nenhum dos governos e as pessoas precisam comer, então continuam fazendo artesanato e indo para a praia vender. Agora há ainda mais crianças trabalhando. Outras comunidades não têm a mesma voz, os Caiapós no Mato Grosso, por exemplo, vivem a mesma luta. 

Essa realidade expõe as pessoas à precarização do trabalho?

Pessoas indígenas estão trabalhando por R$ 30 reais a diária, em trabalhos análogos à escravidão. Alguns trabalham em troca de um Miojo no almoço. Antes da pandemia, o valor mínimo por uma faxina era de R$ 60 ou R$ 70, ou até mais, com hora de entrar e de sair, alimentação digna e vale transporte. Agora estão pagando R$ 30 sem nada. São situações que deixam a gente extremamente revoltada.

Na sua visão, mulheres de diferentes raças são afetadas de diferentemente pela pandemia?

O movimento feminista, por exemplo, hoje não compreende a necessidade das mulheres indígenas e negras. Não é uma luta de todas as mulheres se não nos engloba, não inclui a questão de raça e social. Nesse formato, eu não vejo como uma luta emancipadora. 

O movimento feminista, de forma geral, tem que melhorar em muitos aspectos para incluir de fato mulheres indígenas e negras, respeitando suas culturas, e a forma como essas mulheres atuam dentro das suas comunidades. 

Não é porque ela vive em uma comunidade que ela não tem direito à voz. Eu tive contato com mulheres de vários povos e elas muitas vezes não têm de fato a oportunidade de falar dentro de suas comunidades, mas são sábias, sabem o que querem, e o que os homens falam nos espaços de liderança é baseado no que elas dizem dentro de casa.

A participação feminina sempre foi muito forte no movimento indígena.  Grandes exemplos disso são Sônia Guajajara, na política, e a doutora Samara Pataxó, no poder judiciário. As mulheres indígenas estão tomando espaço e lutando lado a lado com os homens.

O movimento feminista não faz essa leitura dessas mulheres, acham que o movimento só compreende mulheres que em sua grande maioria são brancas e falam abertamente sobre questão de gênero, mas não pautam a questão racial e social. O contato com a cultura não indígena, os jesuítas, por exemplo, demonizaram questões de gênero relacionadas às mulheres. Hoje temos grupos LGBT, pautamos o reconhecimento das lideranças femininas.

Como se deu o seu contato com o movimento feminista?

Eu vim entender o que era feminismo depois de grande, mas desde muito pequena minha mãe e minhas tias me ensinaram a lutar, me posicionar, sempre fui muito bem preparada dentro da minha casa. Vi exemplos de violência dentro da minha família e não queria passar por aquilo nunca. A violência contra a mulher indígena fica muito invisibilizada.

Sou filha de uma mulher indígena com um homem negro. Não sou aquela índia de cabelo liso e olhos puxados, o estereótipo do colonizador. Algumas comunidades aqui são lideradas por mulheres caciques, que assumiram suas comunidades, ao contrário da realidade de outros povos em que as mulheres não têm voz. É todo um processo que vem ocorrendo.

Trata-se de uma questão cultural de cada povo. Sobre a minha realidade, sempre tive exemplos de mulheres fortes perto de mim, as histórias delas sempre serviram de inspiração e me fortalecem.

Como a luta pelo território e a luta das mulheres indígenas se complementam?

A luta pelo território é a principal e o corpo da mulher indígena feminista é o território. A gente perpetua isso nas futuras gerações. Isso é muito vivo dentro da gente. Cabe a nós preservar os costumes e manter a cultura viva. Sem território não damos continuidade aos ensinamentos tradicionais, não podemos cultuar os encantados. O território é nossa mente, nossa alma, somos protetores das matas.

São 521 anos de genocídio e extermínio. Ainda temos muita coisa a ser descoberta sobre os povos indígenas, muitos povos sendo reconhecidos e com orgulho e liberdade de se auto afirmar como indígenas. Minha avó tinha que se declarar cabocla, que era um termo pejorativo, mas menos ruim do que ser indígena. Ela foi criada por pessoas não indígenas e escravizada. Até a identidade foi negada a ela. Há um processo de transformação em andamento.

E como o acesso à internet impactou nesse processo e na vida em sua aldeia?

A internet chegou na aldeia em 2010. As pessoas aqui começaram a interagir com as redes há poucos anos, o wifi é recente. Muitas não têm rede móvel nem wifi, as casas que ficam mais próximas da cidade têm mais acesso, outras, a mais de 300 km da cidade, ficam sem acesso à internet. 

Quando a internet chegou a gente achou um absurdo, uma arma apontada para as nossas cabeças, e muitas vezes foi usada assim. Mesmo tendo acesso à internet, um celular na mão, a gente não ia usar para atacar as pessoas que nos atacavam, mas surgiu a necessidade de ocuparmos as redes para dizer quem somos. 

É uma forma de protagonismo, recebíamos orientação para não postar nada. Agora, queremos usar esse meio para levar a nossa verdade mais longe, para mostrar o que é eu ser jovem, mulher, indígena e liderança.

Esse acesso à tecnologia já gerou alguma conquista para o seu povo?

Ano passado houve reintegração de posse na aldeia, o celular era a única ferramenta de proteção. A Funai mandou uma carta dizendo que não ia defender o território. A gente ficou sem saber o que fazer. Nos reunimos com o cacique e usamos as redes para mostrar o que  estava acontecendo.

Queriam tirar 24 famílias do território: postei as falas dos caciques, dos anciões, e as pessoas se engajaram. De algo local, que não era para falar para ninguém, segundo a Funai, chegou a conhecimento internacional. Fizemos pressão popular e derrubamos uma liminar. Se não fosse isso, o fato de usar de forma inteligente as redes, já teríamos perdido território.

Essa visibilidade é útil para que as pessoas tenham mais sensibilidade com os povos indígenas. Todos os dias sofremos ataques diferentes: mortes, violência, pessoas sequestradas. Usamos as redes para expor essa realidade. 

Antes, a gente não usava as redes sociais porque existiam políticas públicas voltadas para a juventude, havia diálogo. Usamos as redes para pedir socorro, mostrar as violências, negligências, a falta de políticas públicas, a falta de acesso à saúde. A Secretaria de Saúde Indígena tem que atender as demandas das comunidades indígenas. A gente não tem visto isso acontecendo.

Pessoas espalham notícias falsas sobre recebermos grandes recursos do governo para não fazer nada. Ruralistas criam uma narrativa mentirosa. Muitas pessoas vêem os indígenas como um ser que serve como um enfeite na prateleira do Brasil. Nós não somos ornamentais.

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