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Pacientes de Covid têm dívidas de até R$ 1,4 milhão com hospitais

Infectados buscaram hospitais particulares por medo ou por não conseguirem vagas no sistema público e acabaram endividados

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Arquivo pessoal
André Luiz Lopes e Letícia Valente Gouveia
1 de 1 André Luiz Lopes e Letícia Valente Gouveia - Foto: Arquivo pessoal

São Paulo – Verônica Legnari, André Luiz Lopes e Aderbal Freitas, todos moradores de São Paulo, contraíram Covid-19 em março, em meio ao colapso da saúde. Desesperados pela falta de vagas no sistema público, seus familiares decidiram levá-los para hospitais particulares.

A medida pode ter sido decisiva para que os três sobrevivessem, mas também resultou em dívidas que chegam a R$ 1,4 milhão e financiamentos que podem durar uma década.

A Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil) presta consultoria jurídica para casos assim. Indiquei muitas pessoas à Defensoria Pública que, no auge da crise, não encontravam vagas nos hospitais públicos. Não eram pessoas vulneráveis, porque o vulnerável, se ele não tem dinheiro, acaba morrendo sem alternativa. Eram pessoas com um pouquinho mais de condições”, explica Paola Falceta, presidente da Avico Brasil.

“O hospital não pode deixar você morrer na porta tendo a possibilidade de te tratar. Ele possui, contudo, todo o direito de cobrar e entrar com uma ação judicial”, afirmou Elton Fernandes, advogado especialista em direito da saúde. “O que o centro médico deve fazer: dar o primeiro atendimento e, havendo a possibilidade de transferir o paciente, fazê-lo”, assinala.

“Quando há risco de morte e não existem vagas, quem deve assumir a cobrança é o Estado. Mas isso acaba discutido em juízo. Não é uma garantia 100%, mas é possível que o juiz determine que o Estado banque aquela conta”, afirma Paola, da Avico.

Sandro Novais Freitas está com uma dívida de R$ 1,4 milhão referente a internação de quatro meses do pai Aderbal Pinto Freitas
Sandro (à. dir.) está com dívida de R$ 1,4 milhão referente à internação de 4 meses do pai, Aderbal
Dívida de R$ 1,4 milhão e nome sujo

Em 23 de março, Sandro Novais Freitas começou a se preocupar com o pai, Aderbal Pinto Freitas, 74 anos. O idoso estava com Covid-19 e saturação de oxigênio em 85%.

“Ocorreu justamente naquele pico, naquela doideira, quando os hospitais estavam com 100% dos leitos ocupados. Bateu o desespero natural de filho. Então, corri com ele para a Santa Casa. Lá, a primeira coisa que ouvimos é que não havia leitos de UTI”, relata Sandro.

Eles seguiram para o Hospital das Clínicas, também público, e depois se dirigiram ao Hospital Santa Paula, que é particular. Aderbal ficou internado por quatro meses neste último endereço. Acabou intubado, passou por traqueostomia, recebeu sonda para alimentação… Felizmente, recebeu alta, mas ainda traz sequelas e feridas pelo corpo.

“Pelo que estávamos vendo, uma internação de 20 dias, a gente juntava a família, vendia um carro e tentava pagar. Mas o meu pai ficou quatro meses, e a dívida hoje é de R$ 1,4 milhão. Eu imaginei pagar uns R$ 300 mil, e já seria o maior sufoco do mundo”, lamentou Sandro, que está desempregado e com restrições financeiras. “Meu pai sempre me falou para zelar pelo meu nome, porque é a única coisa que temos. Hoje, nem isso tenho mais.”

Sandro procurou a Defensoria Pública e reúne informações e documentação para que avaliem seu caso. O Hospital Santa Paula informou que, em respeito à privacidade e à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), não comenta questões envolvendo pacientes.

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Verônica Bernardo e Diego Legnari trabalham para pagar os tratamentos das sequelas
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Diego Legnari, técnico de enfermagem, se contagiou. Depois, Verônica também foi infectada

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Verônica Bernardo e Diego Legnari trabalham para pagar os tratamentos das sequelas

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Parcela mensal de R$ 4 mil por 10 anos

Sobrevivente do coronavírus, Verônica Legnari, 47, faz fisioterapia e acompanhamento médico. Sua jornada para deixar a Covid-19 no passado será longa. Levará cerca de ano para se recuperar das sequelas físicas. Já a parte financeira ficará comprometida por pelo menos uma década, enquanto durar o financiamento que seu pai fez para pagar os 24 dias de internação da filha, entre março e abril deste ano.

Verônica e o marido, o técnico de enfermagem Diego Legnari, testaram positivo para Covid-19 em 10 de março. Doze dias depois, ela, que tem bronquite, sentiu falta de ar e pediu socorro ao companheiro. “Meu marido trabalha na saúde e sabia que não possuía vaga na região de Mairinque, cidade onde moro. Então, ele me levou para um hospital particular no município de São Roque”, contou.

O centro médico (Verônica preferiu não revelar o nome do local) diagnosticou que 50% dos pulmões da paciente estavam prejudicados. Ela acabou internada e precisou de ventilação mecânica. Como não havia mais vagas na UTI, foi transferida para outra unidade, em Cotia.

Os 24 dias de internação, inclusive na UTI, custaram cerca de R$ 300 mil – valor pago com um empréstimo bancário que o pai contraiu, com parcelas de R$ 4 mil por 10 anos. A autônoma, que produz brindes personalizados, recebe ajuda de amigos por meio de uma campanha de arrecadação virtual.

Verônica reconhece que seu caso é complexo para ser resolvido juridicamente. “O problema é que a gente não deu entrada em nenhum hospital, porque, como o meu marido trabalha na saúde, já sabia que não tinha vaga. Onde ele trabalha já estava tendo que intubar com comprimido, isso é muita tortura”, relata.

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Letícia levou André para um hospital particular
André e Letícia no momento em que ele teve alta, após 22 dias internado
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André Luiz Lopes é corretor de imóveis, e Letícia Valente Gouvêa, promotora de eventos

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Letícia levou André para um hospital particular

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André e Letícia no momento em que ele teve alta, após 22 dias internado

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Entrada de R$ 72 mil

No início do ano, a promotora de eventos Letícia Gouvêa esteve com o marido, André Luiz Lopes, três vezes no Hospital Mandaqui, em São Paulo, que é público. Uma tomografia apontou que 50% dos pulmões do corretor de imóveis estavam comprometidos pela Covid-19, e a saturação de oxigênio chegou a 85%. Apesar dessa situação, André não foi internado.

Em 13 de março, ela decidiu levar o marido para o Hospital São Camilo, onde André Luiz ficou 20 dias internado, sendo 7 deles intubado. “Por meio do São Camilo, eu comecei a lutar por uma vaga no Cross [Central de Regulação de Oferta de Serviços da Saúde] [sistema do estado de São Paulo para procura de vagas nos hospitais]”, assinala.

Assim que deu entrada no endereço particular, Letícia criou uma vaquinha para ajudar a sanar as despesas. “A gente só conseguiu pagar a entrada, de R$ 72 mil. O resto financiamos diretamente com o hospital por cinco anos, com parcelas de R$ 2 mil”, relata.

A advogada Cristiane Ferreira prepara o processo para pleitear que o Estado reembolse o casal. Ela explicou que a ação questionará o São Camilo por não ter cobrado esse valor do poder público.

Sobre o atendimento na rede pública, a Secretaria de Estado da Saúde afirmou que André esteve no Conjunto Hospitalar do Mandaqui por dois dias em março. “Foi atendido por equipe multidisciplinar, sendo mantido em observação. Foram realizados exames, e o paciente foi liberado com orientações envolvendo o retorno ao local, caso necessário. A opção de seguir o atendimento em outro serviço foi exclusivamente da família. O hospital preza pelo respeito aos protocolos e, diante do relato da família com relação ao atendimento, direcionou o caso para o Conselho Regional de Medicina (Cremesp)”, disse, em nota.

Procurado, o Hospital São Camilo informou que todo o processo do paciente correu dentro da normalidade.

Quem paga a conta

De acordo com Elton Fernandes, advogado especialista em saúde, quem ainda possui dívida com o hospital pode recorrer à Justiça. “Se tiver uma prova robusta, é possível entrar com ação para buscar liminar. É simples? Não é simples. O juiz vai olhar desconfiado, vai considerar o impacto disso nas contas públicas”, pondera.

A advogada civil Ana Cristina Medeiros concorda que, na falta de vagas no sistema público, é possível entrar com um processo contra o Estado para reaver os valores gastos.

Provas documentais, como prontuários médicos e e-mails, e testemunhas são fundamentais. “Eu digo para as famílias que a complexidade é provar que foi tentada a internação em um hospital público e não tinha vaga, porque a prova é sua. Não adianta achar que o juiz vai ser bonzinho”, explica Elton.

“Ao mover uma ação judicial para buscar recuperação desses valores, isso vai para precatório. Mesmo que você ganhe a ação, sabe-se Deus quando é que você vai ser pago. Esse é um grave problema do nosso sistema de Justiça”, afirma.

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