Onças-pintadas resgatadas dos incêndios retornam ao Pantanal
As onças Itapira e Miranda foram reintroduzidas na natureza após tratamento. Nem todos os animais resistiram aos ferimentos
atualizado
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“Todos estão seguros, perto dos carros?”, perguntou a bióloga Lilian Rampin. Com a confirmação, ela subiu na gaiola e abriu a porta com cuidado. A onça-pintada Itapira rosnou, mas saiu da jaula em direção ao Pantanal do Mato Grosso do Sul (MS) em uma tarde quente no dia 5 de outubro. Em agosto, a felina de quase dois anos havia sido resgatada com as patas queimadas nos incêndios que atingem o bioma.
Dias antes, Rampin havia participado da reintrodução de outra onça-pintada: Miranda. As duas conseguiram fugir do fogo, mas precisaram ser socorridas e tratadas porque suas patas apresentavam queimaduras de segundo grau. Pelo menos outras quatro morreram vítimas dos incêndios no Pantanal.
A onça é fundamental para o equilíbrio do ecossistema, explicou Rampin. Ela é bióloga do Onçafari, ONG voltada para a conservação da natureza. “Por estar no topo da cadeia alimentar, ela garante o equilíbrio da biodiversidade. O ambiente que tem onça-pintada não vai ter um desequilíbrio, com muita capivara, jacaré ou porco do mato.”
A beleza da espécie também justifica sua conservação. “Estamos falando de um bicho que só não voa”, disse Rampim, que trabalha há 12 anos com os felinos. “Ela é conhecida como mão fofa. Na tocaia, você não a escuta chegando. Ela consegue se camuflar na paisagem verde, marrom, preta, mesmo sendo um bicho cheio de rosetas pretas. Corre muito rápido, escala, sobe e desce de árvore, salta longas distâncias.”
E mesmo com todas essas habilidades, as onças-pintadas precisaram de ajuda para sobreviver aos incêndios.
Rastros em vez de pegadas
O incêndio que começou no fim de julho atingiu cerca de 85% da Caiman, em Miranda (MS), uma propriedade de 53 mil hectares que abriga uma das bases do Onçafari. Na medida em que o fogo avançava pela região, os profissionais da ONG lutavam para salvar os animais.
Uma das primeiras missões foi socorrer Pacato, onça que estava em um recinto de treinamento. No local de 10 mil metros quadrados, as filhotes Isa e Fera aprenderam a caçar antes de retornar ao seu habitat em 2016. Aquele foi o primeiro processo bem-sucedido de reintrodução de felinos na natureza no mundo. Pacato foi salvo, mas o espaço acabou consumido pelo fogo.
O Onçafari estima em R$ 2,5 milhões os prejuízos causados. A ONG espera arrecadar este valor na campanha Recupera Pantanal, com o objetivo de manter equipes de brigadistas para o combate ao fogo, construir poços de água, oferecer suplementação de alimentos, adquirir novos equipamentos e cuidar dos animais sobreviventes, como Itapira.
Assim como outros bichos, Itapira se refugiou em uma manilha, um tubo de concreto usado para escoar a água nos tempos de cheia do Pantanal. Estava com as patas, os bigodes e os cílios, um importante órgão sensorial, queimados. “Passou um filme na minha cabeça. Porque Itapira é filha da Isa. Se a Isa não tivesse retornado à natureza, Itapira não existiria porque sua mãe estaria em cativeiro em algum lugar do Brasil”, avaliou a bióloga.
Os profissionais do Onçafari passaram a observar a onça para avaliar se a ajuda era realmente necessária. Tiveram certeza que ela precisava ser resgatada quando olharam para suas pegadas: em vez de marca de patas, encontraram sinais de que estava se arrastando.
No dia 7 de agosto, o veterinário Ricardo Arrais usou um rifle para atirar um dardo com anestésico na onça. Assim que o medicamento fez efeito, os profissionais verificaram que ela tinha queimaduras de segundo grau nas patas. Mas os tendões, responsáveis por retrair as garras na hora da caça, estavam intactos.
Itapira ainda ficou alguns dias no Onçafari, mas precisou de cuidados mais intensos, até porque a Caiman tinha sido queimada. Ela foi levada para Corumbá de Goiás (GO) no Instituto Nex No Extinction, ONG que atua há 24 anos na proteção das onças.
Tratamento e soltura
Enquanto Itapira estava sendo levada para Goiás, Miranda era resgatada na divisa entre a Caiman e uma propriedade vizinha. O processo foi liderado pelo Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal (Gretap), que surgiu após os incêndios que devastaram o bioma em 2020. Ele é formado por órgãos governamentais, instituições privadas e entidades do terceiro setor.
Miranda foi levada para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), em Campo Grande (MS). Foi submetida a curativos no Hospital Veterinário Ayty, com uso de pomadas cicatrizantes e tratamentos de ozonioterapia para acelerar a cicatrização de suas patas. Itapira, no Instituto NEX No Extinction, passou por procedimentos parecidos.
Além do tratamento em si, era importante que as onças não se acostumassem com os seres humanos, disse Rampin. “Combinamos com o Instituto NEX para não humanizar Itapira. Ninguém oferecendo comidinha, ninguém chamando na tela. Eles foram perfeitos. Itapira chegou aqui mostrando os dentes, tão selvagem quanto antes.”
Miranda foi solta primeiro, no dia 27 de setembro. Ela não era um dos cerca de 45 felinos monitorados atualmente pelo Onçafari. Em 5 de outubro, Itapira ganhou liberdade. As duas receberam rádio-colares, que envia informações dos animais por meio de um GPS.
Sem tempo de se salvar
Pelo menos quatro onças-pintadas morreram por causa dos incêndios no Pantanal. Antã, que chegou a ser resgatada, faleceu no CRAS de Campo Grande, dois filhotes que estavam em uma propriedade vizinha à Caiman e Gaia, que era monitorada desde seu nascimento no Onçafari.
A morte de Gaia mostra a força do incêndio que atingiu a região. “O fogo cercou completamente o capão onde ela estava, e ela foi buscar refúgio em uma árvore. Ela foi carbonizada porque não teve chance de correr“, descreveu a bióloga do Onçafari.
Choveu na região da Caiman no fim de agosto. Rampin contou que as piúvas, como são chamados os Ipês na região, começaram a brotar, garantindo alimentos como flores e sementes para muitos animais. “Tivemos perdas substanciais sim, encontramos várias carcaças, vários animais que não resistiram. Mas hoje estamos vendo vários bichos com filhotes.”
No dia 13 de outubro, um domingo, após tratar uma anta em recuperação, Rampin viu uma ema seguida de 20 filhotes. “Os bichos estão se reproduzindo. Estamos vendo emas, veados e cervos-do-pantanal com filhotes, as araras-azuis estão em época reprodutiva. A natureza é tão sábia que parece que, em momento de catástrofe, quem sobrevive copula e já deixa filhotes para seguir as gerações”.
Após ser solta, Miranda, como era de se esperar, seguiu em direção à uma propriedade vizinha da Caiman, provavelmente seu habitat. Itapira permaneceu na Caiman. As duas onças-pintadas também terão a chance de se reproduzir, deixar descendentes e ajudar na recuperação do Pantanal.
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