Nos 467 anos de São Paulo, imigrantes contam por que amam a cidade
Reunimos pessoas com origens libanesa, boliviana e chinesa que contam os motivos de terem decidido estabelecer uma vida na capital paulista
atualizado
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São Paulo – Naim Kaloussieh (foto em destaque) era um jovem rapaz quando chegou a São Paulo em 1976, após fugir da Guerra do Líbano, que teve início um ano antes. Ele morava em Beirute quando ouviu dos pais que viajaria em breve para morar com os tios na capital paulista. Entre tiros, bombas e risco de morte diários, cruzou seu país de barco e ônibus e foi parar em Damasco, na Síria, onde conseguiu entrar em um avião depois de uma semana de muitas tentativas.
Sua preocupação era deixar um território de guerra civil para pisar em outro. Afinal, o Brasil vivia sob a ditadura militar. No entanto, Kaloussieh desembarcou em uma cidade sitiada, sim, mas que em nada lembrava os traumas vividos no Líbano.
O bairro de classe média-alta de Moema foi sua casa por muitos anos. “Fiquei com receio de chegar aqui e encontrar militares e barreiras nas ruas, só que eu não vi isso aqui, felizmente. Eu fui do inferno ao paraíso”, conta ele, que se define como antimilitarista, aos 65 anos.
Em São Paulo, o libanês aprendeu a língua portuguesa na marra, com leitura de dicionários e conversas com funcionários da loja de seu tio. Foi ali que decidiu seguir o ofício de seus familiares. Ele viajava pelo estado com uma mala em mãos e batia de porta em porta para vender produtos de armarinho. Mas não sossegou até abrir o próprio negócio com o irmão, na região da Rua 25 de Março, no início dos anos 80.
Desde então, o comerciante estabeleceu sua vida pessoal e profissional na metrópole. Casou-se, tornou-se pai de três filhos e se aposentou na capital paulista. Kaloussieh voltou ao Líbano somente em 2009, quase 20 anos depois do fim da guerra que o levou a uma até então desconhecida São Paulo. “Quando viajo, não vejo a hora de voltar para cá. Mesmo que eu esteja com a família, não importa, sinto saudade de voltar para a cidade”, relata.
Processos imigratórios
Em 467 anos de história, a cidade de São Paulo tem sido constantemente construída por imigrantes, sobretudo após os processos imigratórios dos séculos 19 e 20.
Em 2020, a metrópole abrigava 367.043 pessoas em situação regular, algo em torno de 3% da população total, de acordo com o Observatório das Migrações em São Paulo. A Bolívia lidera esse ranking com folga, com quase 100 mil moradores, seguida por China (26 mil) e Haiti (20 mil). Confira os gráficos no fim da matéria.
Uma boliviana em terra desconhecida
A médica boliviana Patricia Trigo, 55 anos, se mudou para São Paulo em 1992, anos antes de a comunidade se instalar em peso na capital paulista, a partir de 2000. Diferentemente de seus conterrâneos, que vêm para trabalhar na indústria de confecção, ela deixou Cochabamba para se especializar em dermatologia.
Descendente da etnia indígena quechua e de espanhóis, Patricia levou pelo menos um ano para se adaptar à nova vida. “Eu não conhecia Tim Maia, o grande cantor da época. Me sentia um peixinho fora d’água”, diz, aos risos. Com a ideia de crescer profissionalmente, ela estava, porém, quase desistindo do “sonho paulistano”, quando consegui entrar na Escola Paulista de Medicina, onde estudou por três anos.
Totalmente adaptada, Patricia se naturalizou brasileira há 20 anos e constituiu família com o marido, também nascido na Bolívia. Hoje, a dermatologista tem consultório e faz seu próprio horário de atendimento em hospitais. Com forte sotaque de língua espanhola, já foi alvo de comentários de pacientes sobre o seu “portunhol”, como ela diz, mas nunca se considerou vítima de xenofobia.
“Eu vejo que o preconceito existe, mas é engraçado porque nunca sofri. Meus dois filhos também não. Dou graças a Deus por isso. Não é todo mundo que se dá bem. Fui bem acolhida por amigos, isso me ajudou a ficar. Me sinto paulistana”, declara.
100% paulistano, 0% chinês
Se hoje a travessia de imigrantes pelo mar é rara no Brasil, até a segunda metade do século passado era uma grande porta de entrada. O médico nefrologista Luis Yu, 66, nasceu a bordo de um navio que levava seus pais de Hong Kong, na China, a Santos (SP). Ele inclusive recebeu uma certidão de nascimento que o classificava como holandês, pois a embarcação de nome Ruys foi construída no país europeu, e teve até o nome da bandeira adicionado ao seu. No entanto, seus pais o registraram como brasileiro tão logo pisaram aqui.
Filho de chineses, Yu conta que se sente paulistano desde que se entende por gente. A proximidade com seu pai, que trabalhou em uma indústria de sacos plásticos, o ajudou a se adaptar a São Paulo com mais facilidade.
“Os imigrantes chineses não têm relação afetiva com sua terra natal. Meu pai adorava o Brasil. Diziam que ele era baiano, porque adorava festa. Nem ele nem a minha mãe fizeram questão de manter tradição. Eu não sei falar nenhuma língua chinesa, que eu lamento hoje, porque poderia ser útil”, afirma Yu, que sequer visitou a China em seis décadas de vida.
De acordo com Yu, o que São Paulo tem de mais agradável é o “espírito cosmopolita”. O nefrologista já foi convidado para morar em outro país, mas recusou por preferir o acolhimento da cidade em que cresceu. Ele enaltece o acesso à cultura, gastronomia e ciência – no entanto, reconhece que o município está distante de ser um lugar perfeito para viver.
“Aqui não é a Ilha da Fantasia, claro. Se você pensar no centro expandido, onde eu vivo, não deixa nada a desejar aos países de primeiro mundo. Quem anda nos bairros vizinhos vai encontrar pobreza. Existe uma desigualdade social enorme. Há crime, favelas, e isso diferencia São Paulo das grandes cidades do mundo. Não posso fechar os olhos, é um aspecto muito ruim daqui”, avalia.
O problema de segurança pública passou a ser uma preocupação de Naim Kaloussieh depois de 45 anos em São Paulo. Para ele, os crimes estão em alta na capital como nunca, e usa como argumento o assalto à mão armada que uma de suas filhas sofreu no fim do ano passado.
Também uma de suas lojas foi arrombada duas vezes ao longo de 2020, afirma. “Eu começo a ficar com a pulga atrás da orelha. Pela minha segurança e a da minha família, eu troco de cidade, de vida, de tudo”, finaliza.