No maior cemitério da América Latina, parentes de vítimas da Covid-19 revivem luto
Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, chegou a sepultar 80 pessoas por dia e ficou famoso com foto aérea de dezenas de covas
atualizado
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São Paulo – A pandemia que até o momento ceifou a vida de 160 mil brasileiros abre, na memória coletiva do país, espaço para cenas dramáticas, como a da terra fresca de dezenas de covas abertas lado a lado num momento em que as mortes por coronavírus aceleravam.
Estampadas na capa do jornal norte-americano The Washington Post no começo de abril de 2020, as sepulturas cavadas no Cemitério da Vila Formosa, na capital paulista, foram fechadas em enterros com público restrito e tempo contado.
Com a flexibilização das regras neste Dia de Finados, muitos parentes voltam ao local para uma espécie de complemento da despedida, agora com mais calma e reflexão.
Em agosto, no rápido velório e sepultamento da mulher com quem passou 52 anos casado, o aposentado Israel Figueiredo, 75 anos, incomodou-se principalmente com a exigência do caixão fechado.
“Para mim, o problema maior foi não poder vê-la uma última vez”, afirma ele, que conversou com a reportagem do Metrópoles enquanto cuidava da sepultura de Ana na véspera do feriado, retocando o pequeno jardim que montou no local.
Falecida aos 81 anos, ela tratava um câncer de pele, segundo o viúvo, e acabou contraindo a Covid-19 dentro do hospital – as regras impostas pela pandemia incluem o caixão lacrado quando a pessoa morreu com a doença.
Luto
Dramas parecidos foram vividos por milhares de parentes de pessoas enterradas nessa área de 763 mil metros quadrados na Zona Leste da cidade – vítimas ou não do coronavírus.
Apesar de ostentar o título de maior do país e da América Latina, o Cemitério da Vila Formosa não chega a ser atração turística, como algumas das outras 21 necrópoles públicas da megalópole paulista.
Não há ali mortos famosos ou sepulturas que possam ser consideradas obras de arte – como as do Cemitério da Consolação, tombado como patrimônio municipal.
Voltado às classes de menor poder aquisitivo, o cemitério no qual o Metrópoles passou algumas horas da manhã fria e chuvosa do domingo que antecedeu o feriado tem lápides simples, padronizadas.
Falta manutenção e mato está alto em alguns pontos. Noutros, sepulturas seguem sendo abertas em ritmo mais acelerado do que em 2019 – mas sem precisar, por exemplo, das câmaras frigoríficas, que chegaram a ser instaladas pela prefeitura.
Eram de 20 a 30 enterros por dia até março, segundo a administração do local. Em alguns dias de maio e junho, o número de sepultamentos diários chegou a 80 – todos com restrições. Nessa época, as famílias paulistanas sequer podiam escolher onde seriam sepultados seus mortos.
Cuidados
Foi o caso do irmão do operador de empilhadeira José Alves da Rocha, 60, João da Rocha, que morreu aos 71 anos, também com o novo coronavírus. “Aqui ficou longe para a maioria das famílias, que vivem na Zona Sul, onde ele vivia, mas não tivemos opção, infelizmente”, afirma ele, que foi ao local na véspera para evitar as inevitáveis aglomerações desta segunda-feira (2/11).
Mesmo tendo sido acometido pela Covid-19, com poucos sintomas, ele continua tomando cuidados – muito por causa do que viu quando sepultou o irmão.
“Eu vi aqui do chão aquela imagem do monte de covas. Quando nós chegamos com ele, essa área estava toda aberta, muito assustador”, relembra ele, que lamenta o relaxamento das medidas para evitar a propagação do vírus. “Infelizmente, o pessoal não dá valor, é só balada, só correria. Enquanto não doer na pele…”, afirma ele, com dificuldade para completar o raciocínio.
E no cemitério do cenário “assustador”, mesmo mortes que não foram diretamente causadas pela Covid-19 têm sua história marcada pela pandemia.
Para o comerciante Mario Batista dos Santos, 63, que foi visitar o túmulo do sogro ao lado da esposa, Maria Aparecida, e da cunhada, Iraci, a morte dele pode ter sido causada pelo reumatismo e pela úlcera que o tratamento causou, mas foi acelerada pelo isolamento forçado pelo coronavírus.
“A vida dele eram os netos, que não puderam mais visitá-lo. Aí, ele ficou sozinho, começou a ficar depressivo, não quis mais ir ao médico tratar do problema dele, foi definhando… São tempos muito tristes”, afirma Mario Batista, que também teve de lidar com um sepultamento cheio de restrições.
Restrições
Neste domingo (2/11), sem limite de tempo e sem aglomeração, a família pôde ficar pela primeira vez bastante tempo ao lado do parente que partiu há poucos meses.
Ainda assim, no fim de semana, com menos restrições, o público no cemitério foi pequeno, menor do que o esperado pelos funcionários, que acreditam que, além do frio e da chuva, parte da população ainda evita lugares públicos por medo do vírus.
O governo paulista afrouxou as restrições nos cemitérios por ocasião do Dia de Finados, mas medidas de distanciamento social continuam valendo. O uso de máscaras no local é obrigatório e há medição de temperatura e distribuição de álcool gel nas entradas das necrópoles.