Narcóticos Anônimos enfrentam desafio adicional na pandemia: a solidão
Marcelo, Rogério e José relatam impactos causados pela pandemia da Covid-19 na luta contra o vício, e como o isolamento mudou essa batalha
atualizado
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A irmandade dos Narcóticos Anônimos (NA), presente em 144 países, se viu em uma encruzilhada no meio do caos que a pandemia da Covid-19 instalou em todo o mundo. Precisando, mais do que nunca, dar auxílio aos seus adictos, termo usado para definir uma pessoa viciada em substâncias químicas ou determinados comportamentos, as reuniões presenciais, que tinham como base o abraço, o contato humano, foram suspensas. O apoio mais caloroso entre “irmãos” foi interrompido de um dia para o outro.
Tanto participantes do grupo quando especialistas nas áreas de saúde e drogas, porém, relatam que a adaptação ao mundo virtual foi menos traumática do que o temido em um primeiro momento. Mesmo assim, a batalha contra esse novo inimigo, a solidão física, de quem foi apartado abruptamente do contato próximo com pessoas nas mesmas trincheiras, é preocupante.
As reuniões on-line ganharam força, tanto para membros antigos quanto para novatos. Mesmo em meio a tragédia do avanço implacável da Covid-19, o requisito segue o mesmo: o desejo de parar de usar drogas.
Estima-se que os Narcóticos Anônimos façam 70 mil reuniões no mundo todo a cada semana. Antes da pandemia, a sociedade – gratuita e sem fins lucrativos – fazia no Brasil mais de 3 mil reuniões presenciais por mês. Com o início da Covid-19 no Brasil, tornaram-se 1.538 reuniões on-line por semana. No total, 6.152 reuniões on-line por mês, mostrando um crescimento de 105% no número de encontros.
“A gente se organizou da noite para o dia, praticamente. Nós criamos grupos de recuperação dentro da plataforma e começamos com três reuniões por dia, todos os dias, isso apenas na região Nordeste. Nós estamos conduzindo, mas não conseguimos controlar quando vamos poder voltar ao normal. Acredito que, mesmo que volte ao normal, ainda continue um pouco no on-line”, explica, em entrevista ao Metrópoles, Rogério, coordenador da área de tecnologia do NA na região Nordeste.
Levantamento da irmandade mostra que, até fevereiro de 2020, a Narcóticos Anônimos fazia 30 reuniões virtuais por semana. Em maio, a organização chegou a atingir 1.700 reuniões por semana, número que caiu levemente desde então e se estabilizou.
Rogério ainda comenta que, na região Nordeste, o número de ingressos de novos participantes foi menor do que o normal. Ele lembrou que grande parte dos recém-chegados ainda estão em um alto nível de uso de drogas, e, consequentemente, vendem seus objetos pessoais, como celular e computador, para adquirir os produtos químicos.
“Houve membros antigos que tiveram uma certa rejeição à tecnologia, evitaram de participar, depois acabaram aderindo. Chegaram pessoas novas, sem nunca ter ido a uma sala de NA. Mas, aqui na região Nordeste, o número de ingressos foi menor do que estamos acostumados a ver no presencial. [Algumas] pessoas que, às vezes não tem nem telefone estão no uso e abuso de drogas, e todo valor que entra é para gastar em drogas”.
Rogério, coordenador de tecnologia da região Nordeste
O adicto
“Eu era um verdadeiro escravo dessa droga, um adicto, que é a etimologia dessa palavra. Ela vem disso: escravidão”: essa frase, com pequenas variações, é rotineira nas conversas com integrantes do grupo.
Definidos como “escravos” do vício em substâncias, os adictos procuram no Narcóticos Anônimos uma luz no fim do túnel para recuperar o tempo perdido no amor, no trabalho e na vida familiar.
Rogério, de 51 anos, Marcelo, de 39, e José, de 35, conversaram com o Metrópoles sobre o caminho que precisaram percorrer para aceitar a ajuda de seus irmãos na batalha para deixar as drogas de lado. Eles afirmam que chegaram ao fundo do poço antes de encontrar redenção na sociedade, e garantem que o período da pandemia causou uma preocupação sobre o futuro das reuniões, antes regadas de abraços, palavras de afeto e apoio incondicional dos colegas.
“Eu estava em um momento muito ruim de abuso de drogas, de perder trabalho, amizades, ser expulso de casa. Consegui encontrar uma internação e tive acesso ao programa dos Narcóticos Anônimos. Foram vários momentos de muita felicidade por não estar mais usando drogas, mas muita tristeza, pois eu não sabia como viver”, relata José.
Segundo ele, que está “limpo” há 11 anos, quando a pandemia chegou, em março do ano passado, o questionamento era: “Se fecharmos as reuniões, os membros vão morrer?”
Já Marcelo estava limpo há três anos, mas sofreu uma recaída no fim do ano passado. Se recuperando há cinco meses, ele revelou que relacionou o uso de drogas aos estudos, e acabou migrando para narcóticos mais pesados. “Quando eu cheguei ao doutorado o meu quadro piorou muito. Eu fiz insanidades muito grandes, questões de mentir para a esposa, para a família, acabar com todos os meus recursos. Tive que vender carro, troquei minhas coisas por droga, cheguei até a roubar.”
“Um psiquiatra me indicou as reuniões de Narcóticos Anônimos. Eu cheguei ao grupo para parar o sofrimento, não queria parar o uso. Eu só consegui entrar em uma recuperação quando comecei a frequentar reuniões constantes, quando eu me rendi completamente”, completa Marcelo.
Ele explicou que sua recaída não foi por conta da pandemia da Covid-19, mas garante que negligenciou as reuniões por não saber lidar com as outras áreas de sua vida, principalmente por conta da flexibilização das regras de isolamento.
Em concordância com os colegas, Rogério contou que perdeu seu negócio, seu noivado e precisou de uma intervenção da família para chegar ao NA. Segundo ele, que está limpo há 7 anos, sua relação com a droga foi muito longa. “A droga chegou na minha vida muito cedo e saiu muito tarde”, relata.
“O relacionamento acabou, meu negócio acabou, já não tinha mais a casa, não tinha mais carro. Entrei numa fase muito nebulosa, eu usava para viver e vivia para usar [droga]. Eu sofri uma intervenção familiar e fui internado em uma clínica compulsoriamente. Eu conheci a irmandade dentro da clínica, mas questionei tudo. Eu não queria parar de usar, queria parar de sofrer”, desabafa.
“Durante a pandemia não houve aquela vontade [de usar drogas que chegou a], não, mas veio aquele lapso de pensamento. Você tenta driblar sua doença, que é uma doença terrível. Hoje eu consigo identificar meus pontos fracos e consigo contorná-los.”
Rogério
Anonimato
O psiquiatra Luan Diego lembra que, para a maioria das pessoas, a droga chega como uma estratégia para “lidar com uma falta ou sensação de desconforto”. Segundo ele, a pandemia intensifica essas emoções, ajudando os adictos em tratamento a ter uma nova onda de sensações antes desconhecida.
“Um desejo dos pacientes é de fato estarem anônimos, a dependência química faz com o que paciente sinta vergonha. Já teve muitas perdas pessoais, existe muito constrangimento. E o on-line traz essa proximidade com o anônimo de uma forma mais real”, completa o médico, citando as vantagens de um encontro do grupo de forma virtual.
“Logo após a primeira onda, a ciência discute que um dos problemas de saúde pública será adoecimento emocional. Os serviços de saúde foram fechados, e os de saúde mental não foram diferente. Na ciência, nós vemos que narcóticos são grupos de apoio ao tratamento e necessitam de estrutura, como psicólogos, psiquiatras e assistência social. Hoje, o dependente químico está mais vulnerável do que tudo nesse processo, perde o tutor, os amigos do grupo e tem um acesso mais difícil ao tratamento. A gente tem essa preocupação com a fragilidade de toda a cadeia de serviço de saúde. A solidão é um gatilho, a substância pode aparecer”, explica.
Como encontrar uma reunião?
Para encontrar uma reunião, basta acessar o site do Narcóticos Anônimos, na aba “Encontre uma Reunião”. A página mostrará a reunião mais próxima a você. No Brasil, o grupo está presente em todas as regiões do país, com reuniões diárias e disponíveis 24h, nas plataformas Zello, Zoom, Meet e WhatsApp.
As reuniões são gratuitas e abertas para todos.