“Não tenho mais Natal ou Ano-Novo”, diz mãe de menina sumida há 6 anos
Polyanna Ketlyn e Luciane Torres integram a estatística de crianças desaparecidas no Rio de Janeiro. Hoje, são 570 em todo o estado
atualizado
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Rio de Janeiro – Entre 1º de janeiro de 2009 e 16 de dezembro deste ano, 1138 crianças e jovens desapareceram no Rio de Janeiro. Desses, 156 seguem sem paradeiro conhecido pelos familiares. Este número corresponde a quase 30% do total de pessoas do grupo desaparecidas no estado – 570. Os dados são do programa SOS Crianças Desaparecidas, da Fundação para a Infância e Adolescência do Rio de Janeiro (FIA-RJ). O órgão é vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH) e faz o mapeamento há 25 anos.
Polyanna Ketlyn da Silva Ribeiro, hoje com 17 anos, faz parte desta estatística. Aos 11 anos, a menina desapareceu na noite de 2 de abril de 2015 após sair para comprar uma caixa de fósforo e um doce em um estabelecimento perto de casa, em Piratininga, região oceânica de Niterói (RJ). Ela disse à mãe que voltaria logo, pois assistia a um programa infantil, que estava no intervalo comercial.
Desde o dia do desaparecimento, a mãe de Polyanna, Marcele Silvério Moreira da Silva, 40 anos, luta para encontrar a menina com vida. Com a filha mais velha grávida e dois filhos autistas, a dona de casa se supera a cada dia e torce para que Polyanna entre pela porta da sala a qualquer momento.
“Eu não tenho mais Natal. Eu não tenho mais Ano-Novo. Não tenho mais saúde, porque isso me deixou debilitada, de verdade. ‘Felicidade’ é uma palavra que eu não conheço mais, deixei de saber o significado dessa palavra há muito tempo. Eu não comemoro essas datas, fico na minha casa com meus filhos. Parece que estou vivendo o mesmo dia de abril todos os dias”, desabafou Marcele em entrevista ao Metrópoles.
A supervisora hospitalar Luciene Pimenta Torres, 60, passa pela mesma situação. Na manhã de 30 de agosto de 2009, a filha dela, Luciane Torres da Silva, hoje com 22 anos, saiu para comprar pão em um estabelecimento perto da casa onde morava, no bairro Km 32, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Nunca mais voltou. Moradores chegaram a ver a menina, na época com 9 anos, ser levada por um homem em uma bicicleta. Porém, até hoje, a família não faz ideia de onde ela possa estar.
“A gente passa [por isso] porque tem que passar. Não tem como mudar nem adiar. A gente tem que lembrar que tem filhos e netos. Eles sabem do caso da tia, e assim vamos tentando levar, mas nada é como antes”, disse Luciene.
No caso de Polyanna, Marcele chegou a fazer as festas de 13 e 15 anos dela, em 2017 e 2019, para manter a memória da filha viva. A comemoração contou com uma montagem da menina com um vestido de festa em um banner e um bolo temático. No entanto, depois, Marcele resolveu parar. “É como se eu estivesse me automutilando”, contou.
A mulher disse que pensa em Polyanna o tempo todo e de diversas maneiras, pois tudo a faz rememorar a filha.
“Eu tenho um banner dela na sala. Tinha algumas redes no quintal que ela gostava muito, mas tirei, porque olhar para aquilo ali é muito doloroso. Eu dificilmente vou perto da ciclovia onde ficava acostumava brincar, só quando realmente tenho que sair por ali mesmo. Até na hora de eu fechar a porta da casa eu lembro da minha filha, porque ela que fechava. Eu lembro dela o tempo inteiro”, afirmou.
ONG Mães Virtuosas do Brasil
Mãe de Luciane, Luciene Torres se lembra de tudo do fatídico domingo em que a filha sumiu. Mudou-se da antiga casa e hoje mora em Campo Grande, na zona oeste carioca. Com o passar do tempo, ela percebeu que não poderia se acomodar com a quantidade de casos de crianças desaparecidas. Resolveu então, em 2018, criar a ONG Mães Virtuosas do Brasil, da qual é presidente.
O objetivo da iniciativa é reunir mães de crianças e jovens desaparecidos para divulgar os casos e acolher as famílias. Luciene pontuou que enxerga falhas no atendimento do governo estadual, o que a ONG tenta driblar.
“O principal para nós é a divulgação, mas também cuidar da família. Eu me pergunto: ‘quando a gente localiza uma criança que sumiu e entrega para a família, como é que faz? Qual o suporte que o governo dá a essa família?’. É como se fosse um embrulho, tem alguém dentro, vai ser entregue para a família e ela que se vire, sendo que não é assim. Temos uma equipe de psicólogos voluntários, e assim vamos tentando costurar falhas deixadas pelo governo”, destacou Luciene.
A supervisora ressaltou também que a ONG orienta as famílias sobre como proceder quando uma criança desaparece. Ela recomenda sempre que seja feito o registro de ocorrência na delegacia. “Recebemos um caso recentemente em que a pessoa estava desaparecida há duas semanas e a família ainda não havia feito registro. Disseram que não sabiam”, lembrou.
No final de outubro, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) e a FIA lançaram uma cartilha de prevenção ao desaparecimento de crianças, com orientações à população. Uma delas é comunicar às autoridades o mais rápido possível, e não após 24 horas. O documento pode ser lido na íntegra aqui.
Investigações
Luciene considera que as investigações sobre o desaparecimento da filha nunca avançaram de fato. Ela afirmou que levava pistas por conta própria até a delegacia, na Baixada Fluminense.
“Tudo que eu consegui eu levei até o delegado. O homem que levou a minha filha chegou a ser preso no dia seguinte. Mas menos de um ano depois, ele foi posto em liberdade, e eu só soube porque uma jornalista me avisou. Fui ao Ministério Público de Nova Iguaçu, o caso da minha filha acabou sendo arquivado”, disse.
Marcele passou pela mesma situação, só que no setor de desaparecimentos da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG). Ela queria que a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA) assumisse o caso. As mulheres dizem que sentem que, com o passar do tempo, os casos de Polyanna e Luciane são “varridos para debaixo do tapete”, já que cada vez mais crianças desaparecem e a polícia estabelece novas prioridades.
“Eu estou tentando levar o caso da minha filha para a DDPA, na Cidade da Polícia, porque é específica, só cuida de casos assim e funciona 24 horas. Minha filha sumiu em uma quinta-feira, véspera de feriado, e as investigações [da DHNSG] começaram apenas na segunda-feira. E nós sabemos que as primeiras horas são essenciais para conseguir localizar a criança”, explicou.
Lei Polyanna Ketlyn
No dia em que Polyanna completou 17 anos (08/12/2021), a Câmara Municipal de Niterói aprovou, em segunda discussão, o Projeto de Lei 388/2021, conhecido como PL Polyanna Keltyn. A proposta, de autoria do vereador Jhonatan Anjos (PDT), sugere a instituição do Alerta para Resgate de Pessoas (ARP) no município, com uma política municipal de contingência em casos de desaparecimento, rapto ou sequestro de menores e jovens.
Inspirado no Alerta AMBER (America’s Missing: Broadcast Emergency Response), dos Estados Unidos, o sistema tem como objetivo estabelecer uma rede de comunicação a partir do momento em que uma criança ou um jovem não tem paradeiro conhecido pela família. Informações como nome, foto e local da ocorrência serão enviados
“A emissão do ARP deverá ser feita por órgão oficial da Prefeitura, a ser definido pelo Poder Executivo Municipal, após a formalização de notícia de desaparecimento à autoridade policial ou judiciária […] devendo o órgão […] enviar e-mail e mensagem de texto aos aparelhos de telefones celulares dos diretores-gerais ou representantes de portos, barcas, terminais rodoviários e shoppings centers da cidade, assim como aos Comandantes da Polícia Militar, em especial aos postos das Polícias Rodoviárias responsáveis pelas praças de pedágios das rodovias, Guardas Municipais, Prefeituras e Câmaras Municipais da Região Metropolitana na qual Niterói faz parte”, diz o Artigo 4º do PL.
A mãe de Polyanna esteve presente nas duas sessões que votaram o projeto e ficou satisfeita com a proposta. “Essa lei é fundamental no combate aos desaparecimentos aqui em Niterói. É algo que deveria haver em todo o estado, porque falta unificação de informações. No meu caso, tive que ir de abrigo em abrigo, de hospital em hospital. Demora muito, além de ser doloroso”, descreveu Marcele.
Para a Lei Polyanna Ketlyn entrar em vigor, depende da sanção do prefeito de Niterói, Axel Grael (PDT).