“Não recebemos autistas”: homem sofre preconceito e família pede ajuda
Depois de ser impedido de fazer curso, família de Bernardo inicia campanha “onde tem espaço para o Bernardo?” nas redes sociais
atualizado
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Onde tem espaço para o Bernardo? É a pergunta que Juliane Ribeiro e Alice Ribeiro, mãe e irmã do Bernardo, homem autista de 36 anos, tentam responder. Através das redes sociais, Alice expõe que seu irmão foi vítima de capacitismo ao ser impedido de realizar um curso de costura, promovido por um centro espírita em Lagoa Santa (MG), apenas por ser autista. O caso aconteceu na última quarta-feira (7/2).
De acordo com a família, uma das justificativas dadas pelo espaço é que Bernardo não utilizaria a profissionalização como fonte de renda. “Eu entendo, em certo ponto, o trabalho que esse centro espírita está realizando, mas é uma questão tão complicada a gente excluir essa pessoa com autismo e falar ‘olha, mais uma vez esse espaço não é para você’. Isso gerou uma dor muito grande”, lamentou Alice através do vídeo publicado nas redes sociais.
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Com o objetivo de expor o caso e estimular o debate e reflexão acerca da acessibilidade promovida a pessoas autistas, a família resolveu criar a campanha “Onde tem espaço para o Bernardo?”. “Não é para julgar esse centro espírita, nem atacar a instituição. Eu fiz esse vídeo para pedir ajuda. Onde tem espaço para o Bernardo e para pessoas como ele? Minha mãe se pergunta isso há 36 anos”, diz Alice Ribeiro.
Bernardo conta que estava muito feliz com a notícia de que iria fazer um curso de costura, porque fica muito tempo em casa e, atualmente, não tem amigos. “Eu adoro costurar e eu achei que ia aperfeiçoar o meu ponto e que eu ia fazer amizades e arrumar uma namorada lá. Me senti arrasado. Fiquei triste de não ser aceito na sociedade. Eles não sabem o que estão perdendo porque eu sou muito bom de costura”, afirma “Bê”.
O caso
Juliane Ribeiro, mãe do Bernardo, conta que ano passado o filho foi internado em uma clínica psiquiátrica por conta de crises desencadeadas pela solidão. Os psicólogos aconselharam que a família buscasse um espaço de socialização que recebesse Bernardo e pessoas que enfrentam necessidades semelhantes, para que ele pudesse fazer amigos e ter uma namorada – um dos sonhos de Bernardo.
“Procuramos a APAE [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais] de Lagoa Santa, que informou que não tinha vaga. O CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] disse que só atendia emergência e que não tem nenhum programa de socialização. Procuramos o posto de saúde que o encaminhou para o CAS [Conselho de Assistência Social], mas tinha só para criança”, desabafou Juliane.
Segundo ela, uma amiga, ao saber da sua dificuldade de encontrar um espaço para o Bernardo, indicou o centro espírita, que estava oferecendo cursos profissionalizantes. “Fiz a inscrição pela internet. Eles me responderam que não recebiam alunos autistas porque, infelizmente, os instrutores não estavam preparados para receber alunos com deficiência, por não serem gabaritados”, afirma Juliane, que prefere não expor o nome da instituição.
De acordo com a advogada consultora em acessibilidade e inclusão, Isaura Sarto, o caso de Bernardo é um exemplo claro de capacitismo e que a carência de profissionais qualificados é uma desculpa recorrente utilizada em instituições de ensino para justificar o preconceito de forma velada.
“Conforme o relato da irmã, o coordenador [do centro espírita] disse que a oficina é voltada para ‘pessoas que de fato vão ter uma utilidade com esse trabalho, vão conseguir sustentar sua família com esse trabalho, não é voltado para pessoas com deficiência, então a gente não vai receber ele’. A fala do coordenador transborda capacitismo ao concluir que Bernardo, em razão do autismo, não será capaz de trabalhar e gerar renda com sua costura”, disse a advogada.
Isaura Sarto ainda afirmou que o a prática do preconceito foi clara. “Ficou cristalino que Bernardo foi discriminado em razão da sua deficiência, que decretaram sua incapacidade sem nem mesmo conhecê-lo. A deficiência de uma pessoa não pressupõe sua incapacidade. Importante destacar que capacitismo é crime – artigo 88 da Lei n° 13.146 de 2015 – conhecida como Lei Brasileira de Inclusão”, ressaltou.
O Ministério da Cidadania define capacitismo como o preconceito e a discriminação que a pessoa com deficiência vive na sociedade por ter sua existência relacionada à incapacidade e inferioridade. Quando a pessoa é reduzida à sua deficiência.
Preconceito
“Quando eu tinha 5 anos eu já era discriminado e eu lembro disso até hoje. Eu lembro das professoras que não aceitavam meu jeito, me chamavam de burro. Quando eu queria brincar com meus colegas, eles faziam uma roda, brincavam entre eles e riam de mim. me faziam de cavalinho, me batiam muito. Isso dói muito até hoje no meu coração porque só minha mãe e minha irmã, que era mais nova que eu, me defendiam”, compartilha Bernardo.
Ele conta que, por medo de ser julgado de novo, passou a fazer amizade apenas com “gente antiga”. “Eles tinham paciência comigo. Hoje eu sou um grande colecionador de antiguidades. Tenho mais de mil peças, um quarto inteiro que coleciono desde criança. Essa é minha maior paixão”.
A mãe relembra quando ele sofreu preconceito na escola, enquanto fazia parte da Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Em 2007, quando morávamos em Recife, foi chamado de burro pela professora do EJA. Nesse dia, ele rasgou os cadernos e disse que nunca mais voltaria pra escola. Desde então, ele só aceitou fazer cursos profissionalizantes, como corte e costura, pintura e mecânica”. Apesar de apresentar os sinais de autismo a vida inteira, Bernardo só foi diagnosticado há cerca de quatro anos.
Em 2013, ele começou a trabalhar e, desde então, passou por 3 empresas. “A maioria o recebeu, mas não sabia lidar com as ‘estereotipias’ dele, como falar sozinho, andar de um lado pro outro, ser literal nas coisas que diz e ouve, as manias com horário. São formas que ele encontra para se auto regular. O problema é que, por falta de conhecimento, muita gente acha estranho e o julga. Hoje ele está afastado pelo INSS e não consegue retornar ao trabalho por conta dessa falta de condições”, conta Juliane.
Bernardo afirma que seu maior sonho é ter uma vida normal. “Ter amigos, uma namorada. Tem quase 30 anos que eu sonho em ter uma namorada todos os dias da minha vida. Ninguém vive sozinho. Se eu tivesse uma namorada eu ia partilhar as coisas, conversar um papo cabeça, dar beijo na mão, ir ao cinema e até pagar a conta dela. Eu também sonho em ter um carro antigo e fundar o meu museu”, finaliza “Bê”.
O Metrópoles não conseguiu contato com a instituição envolvida na polêmica até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.