metropoles.com

“Não aguentava mais”: candidata trans denuncia discriminação no CNU

Diana Dias conta que foi coagida pela banca de heteroidentificação do CNU a se identificar com o nome civil e relata série de discriminações

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Arquivo Pessoal
Foto colorida de Diana Maciel Dias, de 23 anos - Metrópoles
1 de 1 Foto colorida de Diana Maciel Dias, de 23 anos - Metrópoles - Foto: Arquivo Pessoal

Diana Maciel Dias (foto em destaque), cientista social preta e trans de 23 anos, descreve sua experiência no processo de heteroidentificação do Concurso Público Nacional Unificado (CNU) como desconfortável e incômoda. Ela conta que foi coagida pela banca a se identificar com o nome civil – aquele registrado em cartório, no nascimento – e não com o seu nome social – aquele que reflete sua identidade de gênero.

Mesmo tendo solicitado o uso do nome social durante a inscrição no certame e este constando em sua documentação, Diana afirma que a banca não permitiu que ela o usasse na heteroidentificação.

Ao Metrópoles, Diana relata uma série de preconceitos vividos durante o processo seletivo para cotas do CNU, tanto em relação à sua identidade de gênero quanto à sua identidade racial. “É muito emblemático estar passando por isso em pleno mês da visibilidade trans. A gente ainda tem muito para avançar”, reflete a jovem.

Placa de identificação

“Desde o primeiro momento, quando eu tento entrar na sala [para o processo de heteroidentificação], eu já não consigo. A pessoa que estava na porta não conseguia achar meu nome. A partir daquele momento eu já soube que ia ser uma manhã desgastante e exaustiva, tendo que lidar com o fato de eu ser uma pessoa trans e os sistemas burocráticos não estarem adaptados para isso”, conta Diana.

Ela diz ter solicitado o uso do nome social durante a inscrição no certame.

Apesar da “confusão”, o nome social da jovem foi encontrado “no cantinho da folha”, ao lado do nome civil, em um tamanho menor, e ela conseguiu entrar na sala.

4 imagens

Ao chegar ao espaço para realizar o processo, Diana percebeu que os candidatos que concorriam a cotas raciais no CNU estavam recebendo uma placa de identificação feita em uma folha A4 branca, que continha o número de inscrição e o nome do participante.

“Quando chegou na minha vez [de receber a placa], a placa que me entregaram estava com o meu nome errado e não tinha nenhum indício do meu nome social. Esse já foi o meu primeiro estranhamento. Eu questionei porque não estava com o meu nome certo e a pessoa só me disse que ‘era assim que estava e era isso que tinha'”.

Diana relembra que se sentiu em um impasse. Mesmo diante das dificuldades e do desrespeito que estava enfrentando, a jovem estava focada em seu objetivo de participar do processo seletivo e não queria que as questões burocráticas e a transfobia a impedissem de tentar.

A candidata foi posicionada em frente a uma câmera, segurando a placa de identificação, para realizar a heteroidentificação.

Coagida a se identificar com o nome civil

Os candidatos tinham que segurar a placa contra o peito em frente a uma câmera, ler o número de inscrição e o nome que estava escrito na folha.

Diana afirma que falou à banca que o nome que estava na placa estava incorreto e que ela usa o nome social por ser uma pessoa trans. Apesar de ter comunicado o nome certo, a banca não reconheceu e não respeitou a sua identidade de gênero, a coagindo a usar o nome civil no vídeo de identificação.

“Eu me senti perdida, mas eu só obedeci porque eu sabia que se eu não gravasse o vídeo eles iam enquadrar o caso como se eu tivesse recusado por outros motivos. Com certeza eles não registrariam que eu recusei por conta da falta do nome social e eu só seria eliminada. Pelo menos esse foi o entendimento que eu tive naquele momento”, explica a jovem.

Diana conta que se identificou com o nome civil, leu o conteúdo da placa e que foi embora do local “porque não aguentava mais estar ali”, sentindo desconforto e preconceito. Ela acreditava que o pior já havia passado. No entanto, a situação tomou um rumo inesperado.

“Não enquadrada”

Cerca de duas semanas depois, Diana descobriu que foi classificada como “não enquadrada” pela banca de heteroidentificação. Isso significa que a banca não a reconheceu como uma pessoa negra, o que a deixou extremamente surpresa e confusa.

“Na minha cabeça daria tudo certo porque sempre me entendi como uma pessoa negra. Em nenhum espaço que frequento e que já frequentei, na minha vida, isso foi duvidado. Nunca deixei de sofrer racismo na escola, ser mal encarada na rua. Várias vezes em estabeleciementos os seguranças me seguiam… O clássico de violências racistas”, afirma Diana.

Segundo a banca, Diana não é preta nem parda. “Uma pessoa branca eu não sou, uma pessoa indígena eu não sou, árabe e asiática muito menos. Estão me heteroidentificando como o quê?”, questiona.

“Não foi um caso isolado”

Por acreditar que seria enquadrada, a jovem acabou perdendo o período de recurso. Foi quando ela encontrou um grupo de pessoas pretas e pardas que também haviam sido “não enquadradas” como pretas e pardas pela banca de heteroidentificação do CNU.

“Não foi um caso isolado. Várias outras pessoas que não são retintas, mas que possuem características que fazem delas pessoas negras, tiveram o processo para cotas negado”, afirma Diana.

Ela ainda questiona a utilidade de ter o nome social no documento se as instituições não o respeitam e não o usam, ficando “à deriva da boa vontade da instituição”. “Do que adianta a conquista de conseguir colocar meu nome social em um documento se as instituições não reconhecessem?”, reflete a jovem.

Após toda a experiência de desrespeito e preconceito, Diana está buscando meios legais para garantir seus direitos como cidadã. Ela conta que quer ser respeitada em sua identidade e poder participar de processos seletivos de forma justa, com seu nome social e identidade racial reconhecidos.

“Nós percebemos claramente uma transfobia. O segundo ponto é a ilegalidade do não enquadramento como pessoa negra”, explica o advogado Emanuel Jorge Fauth de Freitas Junior. “Nosso trabalho agora é comprovar a transfobia.”

Denúncia ao MPF

Além de Diana, Emanuel representa outras 10 pessoas pretas e pardas que tiveram a raça negada pela heteroidentificação do CNU. “Temos diversos casos repercutindo. A situação é bem esdrúxula, até porque [a banca] não justifica o porque a pessoa não é enquadradada como negra ou parda”, afirma Emanuel.

Revelada pelo Metrópoles em reportagem, uma denúncia recebida pelo Ministério Público Federal (MPF) aponta que um membro da cúpula do Ministério da Gestão e Inovação (MGI) teria orientado, de forma deliberada, que as bancas de heteroidentificação excluíssem os candidatos negros não retintos do sistema de cotas no CNU. A medida vai contra a Lei de Cotas.

O ministério, responsável pelo concurso, negou o fato ao Metrópoles e a banca organizadora não se manifestou. O espaço segue aberto.

A denúncia entrou no sistema do MPF na semana passada e foi para o gabinete do procurador da República Nicolao Dino, da área de Direitos do Cidadão. O órgão informou ao Metrópoles que a Cesgranrio, banca organizadora do certame, já foi oficiada, com prazo de cinco dias para dar informações sobre os fatos.

Em relação à lei de políticas afirmativas, pessoas autodeclaradas pretas não têm vantagem sobre pessoas autodeclaradas pardas, visto que ambas são consideradas parte da população negra. O Estatuto da Igualdade Racial define a população negra como o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE. Essa definição também é usada na Lei nº 12.990/2014.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?