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Na letra da lei: o que dizem normas brasileiras sobre vacinação obrigatória

Presidente Bolsonaro afirma que imunização não será compulsória. Contudo, especialistas defendem a medida como prevenção à Covid-19

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Jacqueline Lisboa/Especial Metrópoles
Doutor Gustavo Romero, coordenador do estudo da vacina contra Covid-19 no Distrito Federal, mostra embalagem e seringa utilizada para a imunização - vacina covid
1 de 1 Doutor Gustavo Romero, coordenador do estudo da vacina contra Covid-19 no Distrito Federal, mostra embalagem e seringa utilizada para a imunização - vacina covid - Foto: Jacqueline Lisboa/Especial Metrópoles

No Brasil é lei, mesmo que o descumprimento não tenha sanções graves: o Ministério da Saúde pode determinar a obrigatoriedade de vacinas a depender do risco sanitário. Apesar disso, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já deu indícios de que o imunobiológico contra a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, não terá interferência do governo.

Não seria novidade vacinação compulsória no país. Em 1904, o governo determinou a imunização contra a varíola — o que gerou um motim conhecido como “Revolta da Vacina”. Depois, na década de 1970, a ditadura militar importou milhões de dose para combater a meningite, após tentar esconder a doença. Não teve decreto, mas escolas foram fechadas, e a circulação era restrita.

Eventual tentativa de obrigar os brasileiros a se vacinarem contra a Covid-19 divide a opinião de especialistas. Mesmo aqueles que não são a favor da imposição defendem que o governo federal deveria induzir à proteção dos cidadãos, e não desacreditar a possível eficácia do imunizante, que ainda é estudada nas bancadas dos laboratórios.

Mas, afinal, alguém pode ser obrigado a se vacinar? Segundo levantamento do Metrópoles, nove normas — entre leis, decretos e portarias — tratam direta ou indiretamente do tema. A depender do risco sanitário, o brasileiro pode ser vacinado compulsoriamente.

Uma dessas leis foi editada durante a ditadura militar. Ex-presidente do país, o general Ernesto Geisel sancionou, em outubro de 1975, o texto prévio da elaboração do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que definiu as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.

Recentemente, outra legislação, sancionada pelo presidente Bolsonaro, voltou a tratar do assunto. Em fevereiro deste ano, início da pandemia no país, uma lei determinou que as autoridades podem adotar medidas, como vacinação e ações profiláticas, contra a Covid-19.

Um parêntese: as duas legislações abrem brecha para que estados e municípios criem regras próprias de vacinação compulsória. O Supremo Tribunal Federal (STF) reiterou, em abril deste ano, que tanto a União quanto os estados e municípios têm competência para tomar medidas de combate ao novo coronavírus.

Além disso, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Estatuto do Idoso, por exemplo, garantem o direito à saúde e à vida. Isso, segundo juristas, também pode resvalar na obrigatoriedade da vacina.

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Deixando o campo da legislação para focar na saúde pública e coletiva, um grupo de especialistas defende que a vacinação deveria ser compulsória ou pelo menos incentivada oficialmente pelo governo federal. Contudo, para eles, o que se assiste no país é negacionismo sistemático, além de disputa política.

Alcides Miranda, professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), explica que, quando existe um risco coletivo, a análise de imunizar ou não deixa de ser uma vontade pessoal.

“A medida compulsória tem aparo constitucional. Essa é uma discussão que regride para o século passado. Obrigar, eu diria, tem amparo legal, mas gera reatividade muito grande, com desobediência civil e uma polêmica”, explica o docente.

Restrições e negacionismo

O professor aponta um caminho: “Os governos estaduais podem, por exemplo, criar uma regulamentação que restrinja o acesso das pessoas sem imunização. Pode-se impor medidas intermediárias, que induzem fortemente a vacinação”.

A lei editada por Geisel prevê a edição de medidas estaduais — com manifestação prévia do Ministério da Saúde — para a obrigatoriedade das vacinações.

O Brasil sempre foi reconhecido por organismos internacionais pela qualidade de seu programa de vacinação. Contudo, as principais metas não têm sido alcançadas nos últimos anos. Mas como o país chegou a ter “aversão” à vacina — mesmo sem a descoberta do imunizante e aprovação pelas autoridades regulatórias? O professor explica.

“O governo foi intencionalmente negligente e instituiu uma necropolítica. A polarização levou à negação do conhecimento científico. Pode-se questionar a eficácia, mas questionar simplesmente pela procedência? Isso é obscurantismo. É um preço muito alto a se pagar com vidas”, pondera.

“Sociedade entorpecida”

Médico e doutor em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Flávio Goulart é mais enfático: “A vacina deveria ser obrigatória. As leis brasileiras garantem isso, sendo válido para todo o esquema do Programa Nacional de Imunizações. Não se trata de ‘liberdade’ individual, o que está em jogo é a proteção coletiva”, salienta.

Para o profissional, a investida do governo contra a vacina — seja da China ou de outro país – não tem cabimento. “O que está em jogo é a saúde de 200 milhões de brasileiros. Há uma negligência generalizada em atuar neste caso, seja do STF, do Ministério Público, do Legislativo e mesmo da sociedade civil, que está entorpecida. Não há nada como isso em toda a história do Brasil. Nem mesmo a ditadura chegou a tal estado de coisas”, critica.

Na letra da lei

A legislação brasileira garante: a saúde é um direito social e difuso. Com base nisso, Fabio Lima, especialista em direito público pela Universidade de Brasília (UnB) e sócio do escritório Lima e Volpatti Advogados Associados, defende que o Estado não tem o direito de se omitir e que toda sua atuação deve ser baseada na ciência. “Estas políticas devem se guiar pelo princípio da precaução e da prevenção, com base em critérios técnicos”, acrescenta.

O advogado explica que, quando se há uma doença infectocontagiosa, com potencial letal, sem tratamento conhecido, e caso haja imunizante eficaz e seguro, é dever do estado exigir a vacinação.

“Isso porque a vacina é um processo social para defesa de todos, sendo tão mais eficaz quanto maior o percentual de vacinados. Assim, cada pessoa que não se vacina gera um risco de dano a terceiros, superando qualquer liberdade individual. Não há liberdade de infectar terceiros”, completa.

Fabio Lima emenda: “Por tudo isso, entendo que o direito exige uma postura ativa do governante na promoção da saúde pelos meios seguros e eficazes disponíveis, incluindo eventual vacina”.

Versão oficial

Durante dois dias, o Metrópoles questionou o Ministério da Saúde sobre qual é o embasamento da pasta para não tornar a vacina da Covid-19 obrigatória. O órgão não respondeu. O espaço segue aberto para esclarecimentos.

Nesta semana, o presidente Bolsonaro declarou que o imunizante não será obrigatório. “A vacina contra o Covid, como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão, ela não será obrigatória”, disse o mandatário da República, durante cerimônia no Palácio do Planalto para apresentação de pesquisa sobre um medicamento.

O secretário-executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco, também afirmou nesta semana que, a depender da pasta, o imunizante contra o novo coronavírus não será obrigatório. “Quando qualquer vacina estiver disponível, certificada pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e adquirida pelo Ministério da Saúde, ela será oferecida aos brasileiros por meio do PNI, e, no que depender desta pasta, não será obrigatória”, pontuou.

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