“Morte” e “Bolsonaro” são os temas mais sonhados por brasileiros na pandemia
Pesadelos com políticos, perseguição e morte têm sido frequentes. Há semelhanças com sonhos recorrentes na Alemanha nazista
atualizado
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Jair Bolsonaro invade a casa da sua mãe e representa um perigo, então você e seus dois cachorros se transformam em Power Rangers para matá-lo, em legítima defesa. Ao acordar de repente na madrugada, com o coração acelerado, percebe-se que tudo não passou de um sonho.
Todas as noites, ao fechar os olhos para dormir, muitos brasileiros têm tido sono inquieto, resultado do trauma coletivo vivido no país. Pesquisadores reuniram 1.500 relatos no livro “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia”, lançado este mês.
Os depoimentos vindos de todas as regiões do Brasil foram enviados por meio de um formulário, disponível no Instagram @sonhosconfinados. Houve também escuta individual quando as pessoas se dispuseram a fazer sessão gratuita de análise.
A publicação é resultado de um estudo em andamento há mais de um ano, que envolve cerca de 40 pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Responsáveis por compilar os resultados, os psicanalistas Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski estão à frente do projeto.
“Fomos dormir em um mundo, acordamos em outro. De uma hora para outra, os sonhos entraram na nossa realidade, e a realidade, ou o que ainda restava dela, invadiu nossos sonhos. Na ressaca do Carnaval de 2020, a pandemia, que parecia tão distante, de repente invadia todos os momentos da nossa intimidade. Começava para valer o século 21”, traz o texto de apresentação do livro na Amazon.
Os centros de estudo se uniram para registrar e analisar os sonhos sob recortes específicos: no contexto clínico, da política, do gênero e do sofrimento social. Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, descreve que os relatos sobre os sonhos mudam de acordo com cada fase da pandemia.
“No primeiro momento, eram sonhos muito vívidos, com extensão inabitual, verdadeiras novelas. Tinham efeito transformativo, a pessoa acorda com a sensação de que está diferente. Ela pode ter avançado um luto ou se dado conta de que precisava fazer algo ou desfazer. Ali era muito comum sonhar com a mãe”, descreve.
Posteriormente, os sonhos começaram a ser “evacuativos” ou de continuidade. “As pessoas vão dormir e sonham que estão trabalhando, é um inferno em vida. Não se consegue ter uma escapatória nem no sonho, isso mostra o crescimento do sofrimento, da angústia, das formas depressivas. Começam a surgir pesadelos com o vírus invadindo a casa, perseguição, paranoia, sonhos com o mar, com pessoas andando sem saber para onde vão, perdidas em um deserto”, aponta.
O terceiro momento da pandemia é caracterizado pelos sonhos em que a pessoa está na rua sem máscara ou nua, por exemplo. “Temos sonhos de luta, batalhas, uma percepção social mais forte do número de mortes, da irresponsabilidade política na condução da pandemia. Não se sonha tanto mais com a mãe, mas com o pai, que está ali para ser decifrado”, traz Dunker.
O sonho é como um filme com cenário, figurino e roteiro assinados pelo inconsciente, e há muito a entender sobre o resultado final. “A pandemia de Covid não é somente uma doença física, é feita também de doenças psíquicas. O sonho é uma interpretação do desejo, um termômetro da vida subjetiva, um sismógrafo da vida psíquica individual e do modo como entendemos o coletivo”, explica o psicanalista Gilson Iannini, da UFMG.
O autor destaca que “sonhos não mentem”, trazem à tona questões que a consciência muitas vezes não admite. Na análise ficou evidente a necessidade de elaborar o trauma de uma mudança repentina na vida, o que ocasiona sonhos mais intensos e vívidos.
Pesquisadores usaram programas de computador para avaliar as expressões mais recorrentes nos relatos, entre elas estão “morte” e “Bolsonaro”. Nos primeiros meses da pandemia, participantes do estudo começaram a relatar pesadelos que envolviam o presidente da República.
“A gente normalmente não sonha com políticos. As pessoas, algumas vezes, sonhavam com o risco de ser morto por ele ou algo associado a ele, com o Bolsonaro invadindo a casa. Em outras situações, havia uma fila de pessoas que seriam mortas pelo presidente”, relata Iannini.
Christian Dunker coordenou o capítulo relacionado à política nos sonhos. O profissional explica que o vírus não tem cara, então, para se defender dele, o sonhador cria algo com forma e imagem, contra o qual é possível lutar. “Na transformação da angústia para o medo, a gente inventa máscaras para o vírus. Muita gente escolheu Bolsonaro, Pazuello, os anti-heróis da pandemia, para figurar como o vírus malvado que entra em casa”, explica.
Nessa batalha, o sonhador também convoca aliados. “Na hora que o monstro vai te pegar e te picar com uma injeção de Cloroquina, aparece o Chico Buarque ou o Paulo Gustavo, por exemplo”, exemplifica.
Os psicanalistas também notaram recorrência de sonhos paradigmáticos. Uma mulher relatou sonhar com situações de emergência em um prédio, ela precisa fugir, mas as escadas estão inacessíveis. A participante do estudo compara a estética das imagens a um quadro de Salvador Dalí: as escadas estão do lado de fora, e o prédio gira em torno do próprio eixo. Quando a sonhadora tenta alcançar as escadas, uma parede a impede, abre-se um abismo. Ela acorda assustada com essa possibilidade de fugir de algo que nem sabe bem o que é.
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Livres para sonhar
Entre os temas mais frequentes nos sonhos, também estão as palavras “mãe” e “casa”. Há uma tentativa de elaborar a quarentena e o isolamento. A casa aparece como um lugar ambíguo, que protege e também prende, que confina, mas dá segurança.
“Há aí a infamiliaridade, como Freud descreveu. Estamos em casa com as pessoas mais conhecidas e, de repente, aquilo tudo é estranho. No núcleo familiar, há algo que não tínhamos visto. Casais estão se vendo de outro jeito, filhos aparecendo em novos ângulos. É a vida se recompondo. O sonho reorganizou seu lugar no mundo”, descreve Dunker.
Mulheres são maioria entre as participantes do estudo, representando quase 80% das pessoas que responderam o questionário. Por isso houve também uma interpretação dos sonhos com recorte de gênero. A professora de ética no departamento de filosofia da UFRJ Carla Rodrigues coordenou o capítulo chamado “Mãe, sonhei com você”.
“Não dá para supor que as mulheres sonharam mais, mas podemos dizer que elas tiveram uma necessidade maior de relatar os sonhos. Nos debruçamos a tentar entender por que mulheres procuravam mais esse recurso”, explica a pesquisadora.
A docente cita alguns exemplos de como a expressão “mãe” se faz presente nos sonhos das mulheres. “Algumas são mães impactadas com o trabalho de cuidado dos filhos, que sempre existiu, mas nota-se uma exigência muito maior. Agora, soma-se a isso o medo que aparece diante da doença, a dúvida se vai dar conta de tudo”, frisa Carla Rodrigues.
A sobrecarga das mulheres durante a pandemia – com acúmulo das atividades domésticas e outras formas de trabalho – também ficou evidente. Uma das participantes ouvidas sonhava frequentemente que estava na cozinha cortando toucinho. “Desempregada, ela cuida do marido, do filho e de outros parentes. Estão todos em casa, mas só ela faz trabalho doméstico. Esse sonho a fazia lembrar da mãe, que aparece mesmo que indiretamente”, relata a professora da UFRJ.
Em um dos relatos, a filha que havia perdido a mãe antes da pandemia voltou a sonhar com ela depois do isolamento. “A mãe aparece nos sonhos como alguém que está cuidando dela, mesmo não estando mais viva. Ela vai buscar amparo na mãe e escuta dela, no sonho, que pode se cuidar sozinha, que pode cuidar da irmã, que elas estão amparadas”, descreve a pesquisadora.
Carla Rodrigues afirma que as mulheres estavam em busca de um caminho, tentavam simbolizar o que estava acontecendo, pois não tinham outros recursos para dar conta do trauma.
“Mulheres recorrem ao sonho como forma de linguagem, já que no campo social elas são mais impedidas de falar, no sentido de ocupar espaços públicos. O sonho é um espaço que não está impedido, que ainda é livre“, interpreta a docente.
Sonhos e nazismo
O psicanalista Christian Dunker afirma que sonhos podem ter caráter premonitório. Cita como exemplo clássico disso o livro Sonhos do Terceiro Reich, da jornalista alemã Charlotte Beradt. De 1933, quando Hitler chegou ao poder, a 1939, início da Segunda Guerra, ela compilou relatos de sonhos de 300 pessoas. Parte deles estava à frente da história e já previa as consequências do totalitarismo, como os campos de concentração e a aniquilação da individualidade.
Gilson Iannini também destaca que sonhos são um fenômeno muito singular em momentos de incerteza, estado de exceção, pandemia ou guerra, por exemplo. “Nesses momentos, o sonho traz características mais coletivas, menos presentes em períodos mais ou menos normais. Nesse sentido, é possível traçar paralelos com os Sonhos do Terceiro Reich: são sonhos mais coletivos, que se confundem com a realidade de tão intensos, é um trauma coletivo e singular ao mesmo tempo.”
Os sonhos mais vívidos foram mais preponderantes nos quatro primeiros meses do estudo, quando a pandemia era novidade. “Aos poucos, a vida onírica também vai se adaptando. O sonho tem um papel adaptativo, ajuda a pessoa a organizar melhor essas experiências para as quais não tinha um repertório”, descreve Iannini.
A coleta dos relatos sobre os sonhos continua ativa, pois os pesquisadores desejam publicar outros volumes da coleção, comparando sonhos dos períodos diferentes da pandemia. Para colaborar, basta preencher o formulário.
A participação também tem caráter terapêutico para aqueles que sofrem com distúrbios do sono. “Escrever o sonho ou contá-lo ajuda. Compartilhar o sonho por meio de pinturas, textos e desenhos também pode fazer bem. Tudo isso faz parte do processo de elaboração do próprio sonho. Se não puder contar com um especialista, fale com uma pessoa de confiança”, aconselha Iannini.