Mistério sobre sumiço após ritual xamânico segue depois de 7 anos
Dois acusados de matar técnica de enfermagem morreram sem confessar crime e corpo da vítima nunca foi encontrado. Caso ocorreu em Goiás
atualizado
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Goiânia – Um grupo de sete pessoas realizava um retiro espiritual com uso de ayahuasca, bebida alucinógena de uso religioso, quando um dos participantes, a auxiliar de enfermagem Deise Faria Ferreira, então com 41 anos, teve um aparente surto.
O líder do grupo, o soldado reformado da Polícia Militar Cláudio Pereira Leite, o Padrinho Cláudio, 41, ficou irritado com o comportamento alterado da mulher e iniciou uma briga com ela.
“Então some, Deise!”, disse ele de forma ríspida durante a discussão, segundo testemunhas.
Era uma noite de sábado, 11 de julho de 2015, em uma chácara no limite entre Goiânia e Nerópolis. Aquela foi a última vez que Deise foi vista. Para a Polícia Civil, ela foi assassinada por um integrante do grupo religioso.
O corpo dela nunca foi encontrado. Tempos após o sumiço, dois acusados de matar e desaparecer com o cadáver da técnica de enfermagem também morreram.
O Metrópoles teve acesso a documentos que compõem o processo do caso.
Veja quem é quem:
Mistério e dor
Todos os anos, a decoradora Marilu Rosa de Faria, mãe de Deise, publica mensagens nas redes sociais manifestando saudade pela filha.
“Ninguém nunca vai entender a dor de não saber o que aconteceu naquele lugar. Só se Deus quiser revelar. Fico com minhas angústias e dor. Filho é para sempre. Cadê minha Deise?”, escreveu.
Marilu ainda tem esperança de um dia encontrar, ao menos, o corpo de Deise.
“Tenho esperança que um dia ainda vou achar os ossinhos dela. Nunca fui embora daqui (Goiânia) por isso. Tenho esperança que um dia alguém possa falar alguma coisa”.
A chácara
Os últimos momentos em que Deise foi vista aconteceram em uma chácara de nome Territa, que fica em um conjunto de propriedades rurais. Uma rua asfaltada dá acesso ao local, que é próximo da rodovia GO-080, saída norte da capital.
A Territa é composta por um sobrado rodeado por jardim com fontes e estátuas, além de piscina. No dia do desaparecimento, a chácara era usada por integrantes do Instituto Espiritual Xamânico Céu do Patriarca Gideon e da Matriarca Genecilda.
No entanto, a sede do grupo religioso funcionava em outra cidade: Abadia de Goiás. Aquele dia na Territa era data diferenciada, com poucos convidados selecionados pelo Padrinho Cláudio, líder do instituto.
Veja vídeo do Instituto Xamânico:
Deise estava frequentando o Instituto Espiritual há poucos meses e tinha o apoio de uma prima, que também fazia parte. Ela tratava uma bipolaridade com remédios psiquiátricos.
Rótulo de alerta
Durante a manhã daquele sábado, o Padrinho Cláudio ofereceu dose de chá de Ayhuasca a cada um dos convidados, entre eles Deise. No ritual são realizadas danças e orações ao som de músicas calmas.
Já no período noturno, os convidados tomaram nova dose do chá. Foi aí que a situação saiu do controle. Ayahuasca, também chamado de Daime, é uma mistura de ervas amazônicas, que provoca alterações na consciência e é usado em algumas religiões.
Só que aquela mistura específica não era qualquer Ayahuasca, era um chá concentrado, entregue em uma garrafa com um rótulo de alerta. “Não pode servir copo cheio desse daime não porque dá problema”, teria dito um integrante do grupo, segundo depoimento.
De acordo com testemunhas, Cláudio teria desobedecido o aviso e ministrou grande quantidade de chá.
Surto
O aparente surto de Deise após tomar o chá, a bebida mais concentrada e a quantidade de vezes em que foi utilizada, foram fatos omitidos por quase todos os integrantes do grupo xamânico, na hora de prestar depoimento na delegacia. Isso ocorreu após o desaparecimento.
No entanto, interceptações telefônicas acabaram revelando um pouco do que realmente aconteceu no retiro espiritual, o que obrigou os participantes a mudarem seus depoimentos durante a investigação.
Deise teria começado a falar muito, vomitou e rolou sobre o próprio vômito. Além disso, teria começado a fazer um striptease sobre a escada e teria dado “chaves de perna” em estátuas que ficavam espalhadas no jardim.
Veja fotos de Deise:
Última vez
Por fim, Deise teria começado a pedir para ir embora, mas Padrinho Cláudio não teria permitido. Já era perto da meia-noite.
Acontece que Deise teria insistido muito, o que fez Cláudio se irritar, já que isso estaria atrapalhando o trabalho xamânico. O PM reformado teria então falado para o agrônomo Antônio David dos Santos deixar a mulher em casa.
Antônio era um integrante do Instituto Xamânico e amigo de Deise. Eles haviam chegado juntos na chácara, no Celta de Deise.
O agrônomo disse na época que estava manobrando o veículo para sair da chácara e que Deise teria ido caminhando. Ele alegou que quando chegou no portão, a técnica de enfermagem já estaria bem à frente e teria virado a direita, mas, quando ele se aproximou, não teria mais visto ela.
No momento em que Antônio saía com o carro, ao lado do portão estava uma outra integrante do grupo xamânico, que afirmou ter visto Deise caminhando próximo de uma cerca-viva. Segundo a perícia, esse ponto fica a mais de 150m da esquina onde o agrônomo disse que a mulher teria virado.
Demora
Antônio David só voltou para a chácara no início da manhã de domingo, mais de 6h depois de quando saiu para levar Deise em casa. Ele disse para os integrantes do grupo que Deise tinha sumido e que tinha passado a madrugada procurando por ela.
Mais tarde, a perícia da Polícia Científica demonstraria ser “incompatível com a realidade física” gastar toda a madrugada para fazer o percurso que Antônio disse ter feito.
Além disso, ele passou pelo posto da polícia e abasteceu o carro. Em seu depoimento, Antônio dizia que tinha avisado sobre o sumiço, mas os frentistas e guardas negaram.
Familiares de Deise só ficaram sabendo do desaparecimento dela na noite de domingo, depois que Antônio David levou o carro para uma prima dela.
Mais indícios
Dentro do carro de Deise havia uma blusa branca que ela estava usando no momento em que estava deixando a chácara, segundo testemunhas.
Uma saia branca florida que ela também usava na última vez que foi vista, foi achada jogada em uma fazenda vizinha por um policial civil, entre uma casa e uma quadra de tênis. A forma que a roupa foi achada, em um barranco, mas totalmente limpa, fez a polícia desconfiar que a peça foi jogada ali para despistar a equipe.
Ainda continua um mistério o percurso que ele fez na madrugada de domingo. O celular de Deise ficou desligado dentro do carro durante todo o sábado e domingo. Antônio David não levou o seu celular quando saiu para deixar ela em casa. Também não é claro o que foi feito no domingo, antes da família de Deise ser comunicada.
Logo após saber do desaparecimento, o líder do grupo, Padrinho Cláudio, fez três ligações seguidas para outros integrantes do grupo xamânico, que estavam na sede do instituto, em Abadia. Depois disso, foram várias ligações durante o resto da manhã entre Cláudio e membros do grupo.
Antes das interceptações telefônicas, todos negaram essas ligações à polícia. Antônio e Cláudio foram as últimas pessoas a deixar a chácara no domingo. Eles também chegaram a insinuar que a família de Deise teria forjado o desaparecimento.
Passado considerado
O passado de Antônio David também foi considerado nas investigações. A ex-mulher dele narrou que era vítima de violência doméstica e chegou a deslocar o maxilar após uma das agressões dele.
Além disso, familiares relataram em ligações interceptadas, que desconfiaram dele ter matado um primo no passado, durante um passeio de cachoeira que só estava os dois.
Investigação
Antônio David, acusado do homicídio, e o Padrinho Cláudio, acusado de ocultar o corpo, foram presos preventivamente em janeiro de 2016. Outros membros do grupo foram indiciados por falso testemunho. Delegado responsável por essa investigação, Thiago Damasceno lembra que foram meses de busca pelo corpo nas margens da rodovia, sem sucesso.
“Tiramos leite de pedra, porque (os acusados) tiveram muito tempo para organizar as coisas do jeito que queriam”, lembra o investigador.
Na época da investigação, chamou a atenção que Cláudio teria tentado atrapalhar. Ele chegou a sugerir em uma ligação telefônica que ia mandar alguém falar com uma testemunha, que estaria “falando demais”.
“Foi um trabalho complexo. A religião mexe com a pessoa de um jeito, que acabam levando sempre para o lado religioso, como se a gente tivesse algo contra. Mas nossa intenção desde o início foi esclarecer os fatos”, afirmou o delegado.
Outra tragédia
Antônio David e Cláudio nunca confessaram o crime. Cláudio ficou preso em um presídio militar, por ser ex-PM. Já David ficou preso na delegacia por um tempo e em seguida foi transferido para o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Ele foi barbaramente torturado e morto por presos em março de 2016.
Antônio David foi amordaçado, amarrado pelos braços e pernas, enquanto era atacado com murros, pontapés e golpes de arma artesanal. Para os detentos, ele era um “Jack”, gíria para estuprador.
Enquanto ele era torturado no banheiro da cela, que tinha mais de 20 presos, um dos detentos de apelido “pastor” cantou louvores evangélicos, para abafar os gritos da vítima.
No relatório final sobre a morte do agrônomo, a Polícia Civil pediu a apuração da conduta dos servidores que não deixaram o suspeito isolado, mesmo sabendo que era de um crime de repercussão envolvendo uma mulher.
Doze presos chegaram a ser condenados pelo homicídio, mas todos os servidores foram absolvidos no procedimento administrativo por falta de provas, em agosto do ano passado.
Última voz
Antes das prisões, a mulher de Padrinho Cláudio chegou a falar em uma ligação que a filha de Antônio teria afirmado que o pai se esqueceu onde enterrou o corpo porque estaria alterado com o uso do chá.
No entanto, ao serem confrontadas diante da polícia, a filha de Antônio negou que tenha falado isso em algum momento. Já a mulher de Padrinho Cláudio manteve a versão de que teria ouvido isso.
Cláudio morreu no dia 2 de janeiro de 2017 após complicações relacionadas a diabetes. Ele respondia ao crime em liberdade e não chegou a ser condenado. O caso foi arquivado.
Defesa
Procurado pelo Metrópoles, o advogado que defendeu Cláudio e Antônio, Stefano de Almeida Castro, afirmou que o relatório final da Polícia Civil não foi conclusivo sobre o paradeiro de Deise, teve falta de provas e se firmou em hipóteses.
Sobre as contradições nos depoimentos dos acusados, Stefano avaliou que o ritual com chá de Ayahuasca deixa a pessoa em um estado profundo de meditação, que ela pode não perceber o que ocorre ao redor.
Stefano ainda lembrou que foram feitos vários exames que não comprovaram a existência de sangue em objetos apreendidos.
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