“Minha filha viveu por 3 minutos”, relata mulher com aborto negado
Ela recorreu ao STJ para interromper legalmente a gravidez de feto com Síndrome de Edwards. Alvará foi negado, bebê nasceu e não sobreviveu
atualizado
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A alegria estampada no sorriso que Alice*, 37 anos, guardou em fotos de sua gestação durou cerca de 28 semanas. Foi o tempo entre descobrir que estava grávida de uma menina, desejada por ela e o marido, e receber do médico a notícia de que o feto seria “incompatível com a vida”, por ter Síndrome de Edwards. A gestante de Santa Catarina foi aconselhada, então, a procurar na Justiça o direito de interromper a gravidez.
O defensor Thiago Yukio Guenka Campos, da Defensoria Pública de Santa Catarina, responsável pelo Habeas Corpus que pedia um alvará para realização do procedimento, defendeu que “o feto é portador de malformações múltiplas em decorrência da Síndrome de Edwards (trissonomia do cromossomo 18) – e, por essa razão, haveria ínfima probabilidade de vida extrauterina, em consonância, por analogia, com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 54/2004 – somado ao fato de a paciente ter sido diagnosticada com diabetes gestacional.”
O feto apresentava “crescimento intrauterino restrito precoce, com peso muito abaixo do esperado para idade gestacional, ampla fissura lábio palatina bilateral, cardiopatia congênita, rins em ferradura e grande hérnia diafragmática direita, as quais comprometem diretamente a sua vida extrauterina”, segundo o laudo médico.
O defensor também destacou que “impor à mãe que dê à luz um natimorto ou, em raras hipóteses, um ser com data certa para a morte, constitui uma autêntica violência institucional”. Por fim, ele argumentou que a gestação colocava a vida da mulher em risco.
“Conforme o laudo médico expedido pelo Hospital Universitário (HU-UFSC), a gestante foi diagnosticada recentemente com diabetes gestacional, o que agrega mais riscos à sua saúde durante e gravidez, pois, caso a doença não seja monitorada devidamente, a gestante poderá desenvolver hipertensão ou pré-eclâmpsia grave na gravidez que, segundo a Guia de Práticas Clínicas do Hospital Sofia Feldman, em casos além de 34 semanas, deverão ser internadas e preparadas para interrupção da gestação”, traz o trecho da peça assinada pelo defensor.
O pedido foi rejeitado em primeira instância e levado à apreciação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reafirmou a decisão de negar o pedido de aborto, em decisão publicada em 1 de fevereiro de 2021.
“Consoante alegado pelos próprios médicos da requerente, tais alterações estruturais (no feto) são graves e, apesar de comprometerem o sistema neurológico do feto, não implicam diretamente na impossibilidade de sobrevida extrauterina, tendo em vista que ainda subsistem chances de que a criança sobreviva dias, meses ou até mesmo anos”, avaliou a relatora.
O STJ considerou que, ainda que seja remota a possibilidade de sobrevida extrauterina, “há de ser resguardado o direito à vida do bebê, bem jurídico este constitucionalmente garantido (art. 5º da CF), de relevância extrema, o qual merece proteção absoluta”. Passaram-se cerca de dois meses entre o primeiro pedido de aborto, feito ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, e a decisão do STJ, em 18 de dezembro.
Naquele momento, Alice já teria 8 meses de gestação, o que levou a ministra Laurita Vaz, relatora do processo no STJ, a concluir que:
“Considerando o avançadíssimo estado gestacional da recorrente, há grandes chances de que, quando da realização da técnica de induzir o parto precocemente para a realização do aborto a criança nasça com vida – o que é perfeitamente possível, já que se encontra com oito meses e o laudo não descarta a sua possibilidade de vida extra-útero. Tal fato, faz questionar que, nesta hipótese, estar-se-ia a autorizar um aborto ou um verdadeiro homicídio?
Na dúvida, e principalmente, considerando a não comprovação de que a gravidez apresenta riscos à vida da apelante, bem como havendo chances de vida extrauterina do feto, ainda que remota, e não sendo o caso de gravidez por estupro, há de ser mantida incólume a decisão de primeiro grau.”
As possibilidades de interrupção de gravidez permitidas pelo Código Penal são:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou quando for decorrente de crime de estupro.
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Há ainda a ADPF 54 do STF, que versa sobre casos de fetos anencéfalos.
Para o STJ, no caso dos autos, “evidentemente não restou comprovada nenhuma dessas hipóteses”.
O defensor público Thiago Yukio Guenka Campos discorda do parecer. “O sistema não tratou a mulher com a dignidade devida, ela foi reduzida a um instrumento de procriação pelo Estado. Essa situação viola a autonomia da mulher, o direito de decisão sobre sua própria vida, que estava em risco”, afirma.
Quando a decisão do STJ foi publicada, em 1 de fevereiro de 2021, o parto já havia ocorrido espontaneamente. “Eu perdi a minha filha, que nasceu e depois de 3 minutos veio a falecer”, escreveu Alice, em resposta ao Metrópoles. Ela afirmou ser uma pessoa com deficiência auditiva, sem acesso a um intérprete naquele momento, e por isso não poderia dar mais informações sobre o caso em contato feito pela reportagem.
Decisões
Em 2018, o STJ recebeu o HC 437982, impetrado pelo advogado Gustavo Miguez de Mello a favor da vida de um feto com síndrome de Edwards, identificado como “nacituro”. A gestante havia conseguido no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro o direito de interromper a gravidez, o que Mello desejava impedir. O STJ não chegou a analisar o pedido, pois no momento da apreciação a gravidez já havia sido interrompida no Instituto Fernandes Figueira, vinculado à Fiocruz.
O Comitê de Ética do instituto deu parecer favorável à interrupção da gravidez naquele processo e recomendou que a gestante buscasse autorização judicial para abortar, pois decisões positivas já haviam sido obtidas naquele serviço de saúde.
Entre 2010 e 2017, pelo menos 29 mulheres ganharam na Justiça, no Brasil, o direito de abortar fetos com Síndrome de Edwards, como apontou levantamento do jornal O Globo. O juiz Thiago Baldani De Filippo, de Assis (SP), em novembro de 2016, autorizou o aborto a uma mulher após esse diagnóstico.
“O direito à vida deve prevalecer, mas nesse caso devemos ceder à liberdade de escolha da gestante. É louvável uma mulher que opta por levar adiante uma gravidez como essa, mas o Estado não deve exigir isso da pessoa”, informou ao jornal à época do processo.
Em 2011, O juiz da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, Jesseir Coelho de Alcântara, também autorizou um casal a abortar feto diagnosticado com síndrome de Edwards. O magistrado entendeu que a Justiça não pode “deixar de prestigiar a responsável via escolhida pela mãe grávida, ao buscar, no Poder Judiciário, a solução da sua pretensão de abortar, com esse procedimento, a Justiça esta contribuindo no combate à prática de abortos clandestinos”.
Em outubro de 2019, o Tribunal de Justiça da Paraíba negou um pedido para interromper a gravidez de um feto com Síndrome de Edwards, em João Pessoa.
Em 1º Grau, o Ministério Público se mostrou favorável à aprovação do pedido. Depois, em 2º Grau, o procurador Francisco Sagres Macedo Vieira apresentou parecer pelo desprovimento.
Ao votar, o juiz Tércio Chaves de Moura, relator do caso, disse: “É um caso com previsão legal, com base no artigo 128, §1º. Sou contra a qualquer tipo de aborto, exceto nos casos do aberto terapêutico. Sou sempre a favor da vida e me atenho a um laudo médico. Ao procurar tutela da Justiça, essa senhora demonstra ser muito honesta, já que 90% dos abortos são praticados de forma clandestina”.
O tema não é consenso entre médicos, juristas e entidades de defesa de pessoas com deficiência. Segundo a medicina, a síndrome é considerada rara e grave, provoca alteração no cromossomo 18, o que pode resultar em até 150 tipos de malformações em órgãos e membros. Pesquisas apontam que somente 10% das crianças que nascem com ela sobrevivem a mais de um ano.
Patrícia Salmona, médica pediatra, presidente do Departamento de Genética da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), afirma que não é formalizado um entendimento de que a síndrome de Edwards seja “incompatível com a vida”.
“Ainda há centros de ensino que tratam essa Trissomia do cromossomo 18 como síndrome incompatível com a vida, um conceito que não se aplica recentemente. A expectativa de vida tem aumentado, há uma brasileira de 31 anos com Síndrome de Edwards, relatos de adultos jovens. A pessoa mais velha tem cerca de 40 anos, nos EUA”, relata.
A incidência da Síndrome de Edwards é de um para cada 3 a 5 mil nascidos vivos. Trata-se da segunda cromossomopatia mais comum, e só fica atrás da Síndrome de Down.
A médica explica que apenas entre 5% a 10% dessas gestações chegam às 39 semanas e têm o nascimento como resultado. A maioria termina em aborto espontâneo. “Desses 10% que nascem, 5% a 10% sobrevivem ao primeiro ano de vida. Mas após o primeiro ano de vida há intervenções precoces, como a cirurgia cardíaca, que eleva a sobrevivência para entre 25% e 30%.”
A pediatra afirma que, antigamente, era comum que os médicos esperassem algumas horas para descobrir se a criança poderia respirar sozinha, por exemplo, uma realidade que mudou. “Não costumavam investir em mandar essa criança para uma UTI, enviar para uma cirurgia cardíaca. Essa assistência tem que ser dada imediatamente. Essa conduta de esperar e observar não é mais aceita. As intervenções precoces geram um prognóstico e uma qualidade de vida maiores para o bebê e para a família”, diz.
A especialista aconselha famílias que recebam um diagnóstico de Síndrome de Edwards a procurar informação confiável, antes de tomar qualquer decisão. Ela cita a Sociedade Brasileira de Pediatria, a Sociedade de Pediatria de São Paulo e a Sociedade Brasileira de Genética Médica como bons lugares para buscar conhecimento sobre esse tema.
“Quando médicos recomendam aborto com esse argumento de incompatibilidade com a vida estão mantendo um preconceito que um dia já foi verdadeiro, mas esse conceito mudou. Antes, a medicina não tinha as mesmas ferramentas que hoje existem”, diz.
Apoio
A ONG Síndrome do Amor oferece apoio e informação a famílias que convivem com a síndrome de Edwards. “Nosso papel é o de levar informação de qualidade e adotamos uma postura muito séria de não julgamento. Estamos abertas a quem optou pela interrupção, a pessoas que têm um filho com a síndrome, a outras que tiveram, mas o filho faleceu”, informa a fundadora da ONG, Marília Castelo Branco.
Marília é mãe de Thales, que nasceu com síndrome de Edwards e viveu por um ano e meio. Ela partiu da experiência pessoal para levar apoio a outras pessoas e já faz esse trabalho há 14 anos. A ONG já acompanhou mais de 1.300 casos.
“Durante a gravidez eu não sabia do diagnóstico. Eu vi o meu filho, convivi com ele, foi um divisor de águas. O importante é mostrar para essas famílias os caminhos possíveis. Quando um médico usa o termo “incompatível com a vida” ele não dá alternativas para aquela mulher e isso pode, inclusive, levá-la ao aborto clandestino, colocando a própria vida em risco”, defende.
Marília reforça que a ONG Síndrome do Amor respeita a autonomia de todas as mulheres. “É preciso dizer que a morte não é a única opção. Existe a possibilidade de nascer e viver pouco tempo, a possibilidade dessa criança nascer e viver mais do que horas ou anos e a chance dela nascer e se tornar adulta. Todas as opções causam frustração e dor, pois trata-se de uma criança diferente do padrão. A gente trabalha para que todas as escolhas sejam vistas como uma parte construtiva da experiência.”