“Meu nome é Hitler”: conheça a história de brasileiros com o nome do nazista
Homônimos do ditador nazista contam como se sentem ao carregar essa referência na carteira de identidade
atualizado
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Quando o menino entrava na sala de aula, em um colégio no interior de Minas Gerais, os colegas levantavam-se e diziam em coro: “Heil, Hitler”. Após a saudação nazista, caracterizada pela mão na altura da testa, com pronúncia desajeitada do alemão, o som das risadas ecoava na sala, para o desespero da professora. Enquanto a docente pedia silêncio, o aluno chamado Hitler Viana procurava um lugar para se sentar.
Atualmente, aos 36 anos, ele ainda vive situações peculiares por conta do nome escolhido por seu pai, um caminhoneiro já falecido. Ele é um dos 188 brasileiros que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), carregam como nome o sobrenome do austríaco responsável pelo holocausto na Segunda Guerra Mundial.
Em 2010, o IBGE lançou dentro do Censo a ferramenta Nomes do Brasil. Por meio dela, é possível pesquisar quantas pessoas têm um determinado nome no país, pode-se descobrir também a década em que nasceram e o estado.
Dos Hitlers registrados no país até 2010, a maioria nasceu em SP (43), Minas Gerais (41) e RJ (16). A década de 1970, no período pesquisado, foi a que mais registrou novos Hitlers brasileiros (29).
O historiador René Gertz, pesquisador sobre o nazismo no Brasil, traça algumas hipóteses para essa maior incidência. “Na década de 1970, houve uma certa investida em pesquisas sobre nazistas fugidos para a América. Houve três casos famosos de carrascos nazistas presos no Brasil nessa época”, lembra.
O historiador também destaca que a Alemanha vivia um período de prosperidade econômica e grandes empresas alemãs se instalaram no Brasil. “Alemanha é associada a Hitler, mesmo quando não se fala dele. A gente não estava ainda na cultura do politicamente correto, não era um pecado falar do Hitler por aqui. A legislação que criminaliza a suástica é do tempo do FHC, na segunda metade da década de 1990”, contextualiza.
A respeito das regiões geográficas onde o nome é mais frequente, Gertz afirma que os estudos sobre nazismo no Brasil são mais concentrados na região Sul, São Paulo e no Rio de Janeiro. “Sobretudo em Minas Gerais não me lembro de nenhuma relação intensa com o nazismo”, relata.
Ele também menciona que Getúlio Vargas, até 1941, teve muita afinidade com Hitler. “Era o único chefe de estado com quem ele trocava congratulações de aniversário. Getúlio era de 19 de abril e Hitler de 20 de abril”, afirma.
De acordo com estudo do historiador Dieter Pohl, especialista em Holocausto e professor da Universidade de Klagenfurt, foram executados durante a Segunda Guerra entre 5,4 milhões e 5,8 milhões de judeus. Juntas, as seis letras — Hitler — carregam o peso desse capítulo sombrio da humanidade. Basta pronunciá-las para causar reações ao redor.
“É o meu nome, não é do demônio”
Hitler Luiz, 53 anos, Santo André (SP)
Em uma igrejinha de Cabo Verde, interior de Minas Gerais, a madrinha conduziu a criança até a pia batismal. O padre derramou, com uma jarra, a água sagrada sobre sua cabeça, dizendo as preces do batismo. Na hora de pronunciar o nome escolhido pelos pais, o clima pesou: “Hitler, eu te batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
Em seguida, o sacerdote fez uma pausa. “Hitler, um dos maiores assassinos da história da humanidade…”, destacou. A criança era Hitler Luiz Marguesani, que hoje tem 53 anos e trabalha como assistente técnico de sistema de combate a incêndio, em Santo André (SP). É casado, pai de 4 filhos e tem dois netos.
“Essa história começa com dois doidos: meu pai e meu padrinho. Em 1967, eles queriam me registrar como Adolf Hitler e o escrivão não deixou. Seria mais fácil me chamar Adolf. O Luiz foi minha mãe que escolheu, porque ela não sabia falar Hitler”, relata Hitler Luiz.
Quando questionou ao pai, José, o motivo da escolha, também ouviu a justificativa relacionada à admiração intelectual. “Foi pela inteligência dele, não dá pra negar que foi um cara inteligente. Meu pai tinha um livro sobre grandes heróis de guerra, era policial em SP, antes de existir a PM”, relembra.
O pai de Hitler Luiz nasceu em 1939, tinha 22 irmãos, fugiu de casa, tornou-se filho adotivo de um homem negro e era criança durante a Segunda Guerra. Trabalhou no ramo de fundição e foi operador de trator na roça.
Ao lado da esposa, construiu uma família no interior de Minas Gerais. “As pessoas acham que meu pai era nazista, mas coitado do velho, ele era gente boa. Só quando era da Força Pública que não era bonzinho. Depois que largou a farda mudou a pessoa totalmente”, conta.
Hitler Luiz tem 12 irmãos, todos com nomes comuns. “Meu pai chegou a botar o nome de Vladmir em um outro irmão meu, que morreu ainda pequeno, acho que por conta de algum outro nazista”, relata.
Meu pai sentia muito gosto em me chamar de Hitler. Ele gritava de longe para todo mundo olhar.
Hitler Luiz
Hitler diz que nunca teve sérios problemas por causa do nome. Mas aos 13 anos procurou emprego em uma loja de móveis. O dono mostrou todo o espaço e estava pronto para contratá-lo, mas desistiu ao saber seu primeiro nome. Anos mais tarde, voltou a ter complicações no trabalho.
“Na época que começaram a matar umas pessoas mencionando a suástica, em Santa Catarina, em nome do nazismo, de 2006 para 2007, aí eu troquei meu crachá da empresa que eu trabalhava. Muita gente estava vinculando meu nome com o que estava acontecendo no Sul”, diz.
Essa não foi a única ocasião de conflito. “Um segurança do banco certa vez disse que eu tinha nome de demônio. É o meu nome, não é do demônio. Ele se alterou, a chefia teve que interferir”, relata. Entrar em redes sociais também pode ser inviável com o nome original. Nem o Orkut nem o Facebook aceitaram a criação do perfil de Hitler Luiz.
Hitler Luiz tinha ambições militares, mas foi dispensado do alistamento ao Exército. “Na hora que falei meu nome o cabo levantou, chamou o sargento, que foi buscar o superior dele. Eles comemoraram: vamos ter o Hitler no Exército brasileiro”, descreve. Hitler acabou dispensado por excesso de contingente.
Durante a entrevista, ele faz piadas diversas vezes e se diz “da paz”. “As pessoas sabem muito pouco sobre a história do mundo. Já me perguntaram quem foi Hitler, eu disse que era um cantor de forró.”
Nunca pensei em trocar de nome. É estranho dizer isso, mas é marcante, todo mundo lembra de mim.
Hitler Luiz
Hitler diz que não gosta de política, mas nas redes sociais, que criou com um apelido, Luiz Bia, declara frequentemente apoio a Jair Bolsonaro. “Eu gosto da maneira que ele (Bolsonaro) age. Foi do Exército, admiro o respeito pela doutrina. Se ele está de farda fez algo pra merecer estar de farda”.
Sobre ocasiões em que integrantes do atual governo federal foram acusados de apologia ao nazismo, Hitler Luiz minimiza. “Eu não acho que sejam nada nazistas”, opina.
“O nome Hitler abriu portas para mim na mídia”
Hitler Viana, 36 anos, Ipatinga (MG)
A voz no autofalante do saguão do aeroporto em Salvador anunciou: “Senhor Hitler Viana, favor comparecer à Polícia Federal”. O homem, que esperava um voo para Portugal, levantou-se diante dos olhares curiosos de quem assistia a cena e dirigiu-se ao local solicitado. Ao chegar, teve a bagagem revistada e respondeu perguntas a respeito da sua identidade.
“Nessa hora, me deu uma vergonha”, lembra Hitler Viana, 36 anos, morador de Ipatinga (MG). Em outra ocasião, na França, ele também teve de responder a um interrogatório no embarque. Nascido em Expedicionário Alício, um distrito de Aimorés (MG), com 20 mil habitantes, o brasileiro diz ter sido batizado a pedido de um suposto primo de segundo grau de Adolf Hitler.
O médico alemão chamado Ervino Meyer era vizinho do sítio dos pais de Hitler Viana, um caminhoneiro e uma costureira que desconheciam a história do nazismo no mundo. “Ele queria me adotar, quando eu ainda estava na barriga da minha mãe. Como meus pais negaram, ele pediu essa homenagem ao primo, que botassem meu nome de Hitler”, conta.
O homem se dizia familiar do ditador, mas jamais apresentou qualquer prova da afirmação. Pesquisadores do nazismo no Brasil procurados pela reportagem também não identificaram em seus estudos nenhuma menção ao nome citado. “O povo daquela época no distrito começou a dizer que meu pai era maluco”, afirma Hitler Viana.
Na escola, Hitler conviveu com o que chama de “ brincadeiras de mau gosto”. “Na hora da chamada todo mundo fazia a saudação nazista. Eu não reclamava porque a zoação, se você fica nervoso, é pior”, avalia.
Na adolescência, Hitler Viana chegou a procurar um advogado para alterar o nome, mas desistiu. “O peso que enxergo é o peso do mal que ele fez para milhões de pessoas naquela época. Muitas famílias foram assassinadas, então tem gente muito espiritualista que acha que eu ia carregar o peso”, relata.
Sobre isso, Hitler se diz em paz. “Procuro fazer de forma diferente com a minha arte, levar mensagem de paz, amor, esperança, de que é possível alcançar sonhos e mostrar que o nome não influencia em nada”.
Ele diz ter tirado algum proveito da situação em programas de televisão e de reportagens em jornais locais para falar sobre o seu nome. Ele enxerga como uma oportunidade de promover o programa que mantém no YouTube, Hitler Viana e Amigos, no qual recebe cantores, a maioria gospel e sertanejos. “O povo tem curiosidade e eu gosto de conversar. O fator do meu nome ser Hitler abriu portas pra mim na mídia”, afirma.
Em outra frente profissional, Hitler também faz locuções em eventos. Trabalha com frequência para políticos em campanhas e lançamentos de candidaturas. Em 2018, diz ter sido o locutor oficial da campanha de Jair Bolsonaro no Vale do Aço, em Minas Gerais. A assessoria de imprensa da Presidência da República enviou uma nota à reportagem: “O Palácio do Planalto não comenta”.
Para saber mais
Leia aqui o artigo do historiador Marcos Meinerz: Sintoma da normalização do passado: por que meu nome (não) é Hitler?