Menores infratores escrevem sobre histórias de vida em projeto no RJ
Desde 2014, educador Binho Cultura conta sua história e convida menores a reescreverem as suas. Projeto é tema de TCC em Sorbonne, na França
atualizado
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Um dos principais dilemas que correm nas mentes de menores infratores é o próprio futuro. Desde a ressocialização até a dificuldade em conseguir um emprego, a tendência deles é pensar que, mesmo após a soltura, tudo está perdido em consequência de fatos análogos a crimes que eles cometeram. Com isso, muitos voltam à criminalidade e tornam-se personagens recorrentes em centros do Departamento Geral das Ações Socioeducativas (Degase). É este cenário que o projeto Palavras que Libertam, criado pelo escritor e educador Binho Cultura no Rio de Janeiro, busca reverter.
Criador da Festa Literária da Zona Oeste (Flizo), Binho, 41 anos, nasceu e cresceu na comunidade Vila Aliança, em Bangu. O local é dominado pelo tráfico de drogas, e o rapaz reforçou que, enquanto negro e periférico, precisou “sabotar o sistema” para sobreviver. Ele é formado em Ciências Sociais e autor de seis livros.
Como parte da dinâmica do projeto, Binho conta sua própria história e, em seguida, convida os menores a reescreverem as suas, literalmente. As oficinas de produção textual os aproximam do educador e permitem uma interação delicada e pessoal, longe da brutalidade.
“Conto como foi não morrer entre os 16 e 24 anos, como foi ser universitário e me formar, passando por todas as dificuldades que eles passaram, ou até mais, e sobreviver a tudo isso. Me tornei um profissional da educação sabotando o sistema. Eu reescrevi a minha história, e os convido a fazer o mesmo”, contou Binho em entrevista ao Metrópoles.
Ele explicou que o propósito contundente do projeto Palavras que Libertam é humanizar o olhar sobre pessoas em condição de cárcere, especialmente menores de idade vindos de comunidades. A ideia é mostrar que quem cometeu atos análogos a crimes e cumpriu a pena pode, sim, ser reintegrado à sociedade e formar sua própria família.
“O maior objetivo é que o projeto se torne um programa socioeducativo, uma referência para toda a educação dentro e fora do Brasil. Se a gente humaniza esse olhar, se a gente consegue universalizar as oportunidades para os internos e os egressos, nós conseguiremos diminuir consideravelmente o índice de reincidência. Nós conseguimos tocá-los, sensibilizá-los, na grande maioria”, disse.
Alunos
Menores de diferentes perfis já passaram pelo projeto Palavras que Libertam. Um deles é Guilherme*, 20 anos, detido por fato análogo ao crime de homicídio em 2018. Morador de Niterói, na Região Metropolitana do Rio, ele se envolveu em um assassinato em São Gonçalo, na mesma região. Em um primeiro momento, não foi apreendido, pois não houve flagrante. Porém, meses depois, foi detido devido a um mandado de busca e apreensão.
Guilherme cumpriu em torno de três anos de reclusão. Em um dos textos produzidos no projeto, ele conta que o envolvimento com uma menina o fez seguir um “caminho errado”: repetiu de ano na escola, usava o pagamento que recebia como garçom para comprar bebidas e deixou muitos sonhos e desejos de lado. A namorada chegou a engravidar de Guilherme, mas sofreu um aborto espontâneo.
“Minha vida estava desabando e as coisas não andavam tão prazerosas assim… só que pesava, eu cego não queria enxergar a situação pelo lado certo. Em 2017 me envolvi em mentiras grandes para livrar ela de situações complicadas que minha família desconfiava. Aprendi a roubar, virei cafetão dela e cheguei até a fazer uma tatuagem paga pelos programas dela […] Hoje busco redenção pelos meus pecados e agradeço de uma certa forma por ter me causado tudo isso. Como diz o ditado ‘Há males que vêm para o bem’. Tenho 20 anos, criei maturidade e sei que nem tudo na vida é feito de prazeres.”, escreveu.
Outro aluno foi Luciano*, 17 anos, detido três vezes por tráfico de drogas. Ele atribui seu ingresso no crime a más influências que conheceu na comunidade que mora em Cabo Frio, na Região dos Lagos. Aos 12 anos, começou a fumar maconha e consumir bebidas alcoólicas. Mesmo com os apelos da família, não conseguia largar o vício e abandonou a escola, quando foi apreendido pela primeira vez. Em uma ocasião, ele seria morto por um policial, mas sua mãe se colocou diante do agente e pediu que ele a matasse, pois não conseguia viver sem o filho.
“Achava que tudo na vida era um mar de rosas, até perceber que nada na vida era fácil, principalmente na vida errada. E mesmo sendo integrante do Comando Vermelho, via que aquela vida não era pra mim e nem para ninguém, mas mesmo assim eu insisti em continuar. Até que em julho de 2020 fui preso por um ato infracional […] Como era minha segunda passagem, ganhei uma medida de internação”, escreveu Luciano em um dos textos.
Impacto
Hoje, Guilherme e Luciano estão em liberdade. O primeiro voltou ao trabalho de garçom e mora com o pai em Niterói (RJ). Além disso, está estudando para ingressar na Universidade Federal Fluminense (UFF) no ano que vem.
O outro se alistou no Exército Brasileiro, como sonhava, e está em busca de emprego. Mora com os pais e a irmã.
“O Palavras que Libertam foi de extrema importância para mim, porque me ajudou a ser uma pessoa melhor, abriu portas para mim. Comecei a ler e escrever mais e criar planos para a minha vida. Eu devo tudo a esse projeto e ao Binho. Tive a oportunidade de conhecer pessoas e agora estou aqui fora seguindo a minha vida, não estaria aqui fora se não fosse o projeto”, contou Guilherme, em um áudio enviado ao Metrópoles.
“Na paz de Deus. Tô por aqui, tranquilo. Se quiser que eu escreva outros [textos], vai falando que eu vou te mandando. Daqui de casa, eu tiro foto da folha”, ouviu Binho de Luciano.
“Em muitas das vezes, os orientadores ocupam o lugar de pai, mãe e familiar para fazer a diferença no destino que esses jovens vão tomar. Isso é muito importante para nós. É lindo quando eu vejo um adulto que foi meu aluno como chefe de família, uma pessoa realizada vivendo na sociedade. Também quando eu vejo aquele moleque que seguiu meus conselhos, saiu do crime e buscou viver uma vida de luta, como todo trabalhador e toda trabalhadora”, afirmou Binho.
O trabalho desenvolvido ao longo destes sete anos por todos os alunos do projeto Palavras que Libertam está reunido em uma antologia homônima a ser lançada na Bienal do Livro Rio, em dezembro. Com apresentação da cineasta e diretora Rosane Svartman e prefácio do ex-diretor do Degase major Márcio Rocha, a obra reúne, em mais de 30 páginas, textos selecionados de cada aluno sobre suas próprias histórias, desde o cometimento de atos infracionais até perspectivas futuras.
Em 2019, o projeto também ganhou o prêmio do Instituto Pró-Livro, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) sem fins lucrativos. No próximo ano, a ideia é lançar um documentário que mostre a dinâmica do projeto e do Degase na mudança de olhar sobre os menores infratores.
A iniciativa também chegou ao conhecimento de uma estudante da Universidade de Sorbonne, na França. Prima de uma psicóloga do Degase, ela apresentou o projeto ao orientador, que adorou o tema e falou que ela deveria abordá-lo no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Binho contou que ficou lisonjeado com a novidade. “Fiquei muito feliz com essa oportunidade de [o projeto] Palavras que Libertam ser uma referência internacional na socioeducação”, celebrou o educador.
Dificuldades
Binho apontou que a estigmatização dos menores infratores na sociedade em geral impede uma continuidade do trabalho que o projeto desenvolve nos centros socioeducativos do Degase. O escritor criticou a falta de políticas efetivas para ressocialização de egressos do sistema.
“Se não tiver uma universalização de políticas públicas para atender esses jovens, tudo que for feito e investido todo dia vai ser em vão, porque eles precisam, principalmente, de prevenção. O ideal é que eles não chegassem à criminalidade, já que eles cometeram a infração e foram cumprir a medida socioeducativa, nós precisamos gerar a oportunidade para que eles não venham reincidir”, declarou Binho Cultura.
Mas nada faz com que Binho pare de trabalhar por estes meninos. “O que me move são histórias, a maioria [dos jovens] é como eu fui e eu percebo que tudo teria sido diferente se, na primeira violação de direito, eles tivessem sido atendidos, acolhidos. A política pública não chega às famílias deles – educação, saúde, cultura, por exemplo. Eu vejo, ao longo de 20 anos atuando com projetos, o quanto a arte, a educação e o esporte são importantes”, ressaltou o escritor.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos menores.