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MPF vai à Justiça contra nomeação de pastor evangélico na Funai

Ação judicial aponta “evidente conflito de interesses”, riscos à política de não contato e ameaça de genocídio e etnocídio para indígenas

atualizado

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Divulgação/Funai
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1 de 1 funai - Foto: Divulgação/Funai

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou nesta terça-feira (11/02/2020) ação civil pública para suspender a nomeação do missionário Ricardo Lopes Dias para o cargo de Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação Nacional do Índio (Funai). O processo pede a suspensão da nomeação por evidente conflito de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil desde a década de 1980, apontando ameaça de genocídio e etnocídio contra os povos indígenas.

Para nomear o missionário, a presidência da Funai fez antes uma alteração no regimento interno do órgão, retirando a exigência de que o coordenador da área de isolados seja um servidor de carreira. Para o MPF, é indubitável a ilegalidade da nomeação de Ricardo Lopes Dias ao cargo, porque a medida enfraquece a capacidade institucional da Funai em proteger a autodeterminação e a vida dos povos indígenas, mandamentos constitucionais que regem a atuação da fundação.

“A vontade da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 consagrou a virada paradigmática da postura indigenista brasileira: do fim das práticas de integracionismo e assimilacionismo para o respeito à alteridade dos povos. É papel das instituições do sistema de justiça garantir que o pacto constitucional seja resguardado, em respeito à vontade dos povos que o constituíram”, diz a ação ao pedir a suspensão da nomeação e da portaria que alterou o regimento.

Caso a Justiça concorde com o pleito, a portaria nº 167/2020 da Funai será anulada, o que assegura que apenas servidores efetivos da fundação possam coordenar a área que protege povos em isolamento voluntário e de recente contato. Consequentemente, a portaria nº 151/2020, que nomeou Ricardo Lopes Dias, também será anulada.

Para os autores da ação judicial, “a nomeação de pessoa que não seja servidor público efetivo e que, ademais, possua vinculação com organização missionária cuja missão é evangelizar povos indígenas, reveste-se de evidente conflito de interesses com a política indigenista do Estado brasileiro, cujas premissas encontram-se na Constituição de 1988 e nos tratados internacionais de direitos humanos”.

“A referida nomeação aponta para o esvaziamento da proteção constitucional aos direitos dos povos indígenas e para vícios do ato administrativo”, dizem os signatários.

O processo aponta que a responsabilidade da coordenação assumida por Ricardo Lopes Dias – assim definida pela ordem jurídica nacional – é implementar uma política não assimilacionista e não integracionista. Há, portanto, “nítido conflito de interesses na nomeação de pessoa com profundas ligações, de formação e de trabalhos desenvolvidos, com organização que tem por meta estreitar com os indígenas, preferencialmente os isolados e de recente contato, relações de dependência favoráveis à propagação da fé, representando um movimento assimilacionista e de integrar o indígena à sociedade nacional”.

Documentos
O MPF teve acesso a documentos assinados por movimentos missionários internacionais aos quais Ricardo Lopes Dias é ligado que comprovam o envolvimento da Missão Novas Tribos do Brasil, a que ele pertenceu por dez anos, em um movimento de fazer contatos forçados e evangelizar povos isolados. Nos documentos, utiliza-se o termo “finalizar a missão” para designar o que os missionários dizem ser uma “comissão” dada por Jesus Cristo em trecho da Bíblia, e que “obriga evangélicos a promoverem a conversão de povos indígenas em todo o planeta”.

Os documentos do movimento missionário permitem verificar o esforço em obter dados que auxiliem “na tentativa de identificar as necessidades e oportunidades entre aqueles que pouco ou nado ouviram de Cristo”, ou seja, em obter dados sobre identificação e localização dos povos em isolamento voluntário e de recente contato, para concluírem a tarefa de que “o evangelho de Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, chegue a todos em todos os lugares, prioritariamente àqueles que pouco ou nada ouviram da única e insubstituível salvação em Cristo Jesus”. Para o MPF, esses dados são extremamente sensíveis e o acesso de missionários a eles pode colocar os povos em risco de genocídio e etnocídio.

Ricardo Lopes Dias atuou como missionário da Missão Novas Tribos do Brasil junto ao povo Matsés, no Vale do Javari, com o objetivo, declarado por ele mesmo em uma dissertação de mestrado, de “desenvolver um programa de evangelização dos Matsés no Brasil, o que resultaria de um trabalho demorado, meticuloso e sofrível que envolveria jornadas de estudos para aquisição do idioma Matsés, coleta de material cultural para análise, e progressivamente, uma elaboração de material linguístico, didático, informativo e religioso”

A nomeação de Ricardo Lopes Dias para o cargo na Funai mereceu repúdio de todas as organizações indígenas brasileiras, da Associação Brasileira da Antropologia e da Confederação Nacional de Igrejas Cristãs. Em carta, lideranças Matsés que conheceram a atuação do missionário em seu território também repudiaram a escolha: “Ele manipulou parte da população Matsés para que fosse fundada uma nova aldeia, chamada de Cruzeirinho. As lideranças tentaram ir até essa nova aldeia, em busca de um diálogo, mas foram expulsas com violência. O senhor Ricardo tirou proveito dos Matsés, se apropriou de nossa cultura e vendeu sua casa na aldeia para a igreja”, dizem.

A ação do MPF se apoia também em parecer da antropóloga Aparecida Vilaça, do Museu Nacional. “A pregação intensa dos missionários, que explicitamente criticam as práticas culturais indígenas, somada à posição de controle de bens manufaturados exercida por eles enquanto habitantes das aldeias, produz nos indígenas um sentimento de humilhação, que leva à rejeição de sua cultura tradicional. Abandonam os seus rituais, festas e narrativas de mitos, o que constitui severa perda cultural. Trata-se assim de atuação que viola diretamente o parágrafo 1 do artigo 231 da Constituição do Brasil”, diz no laudo.

Mudança de paradigma – A ação judicial analisa os três paradigmas que orientaram o tratamento dado aos povos indígenas em isolamento, pelo estado brasileiro, ao longo da história. No primeiro paradigma, que vigorou do período colonial até 1910, o contato se dava através da catequese e do uso da violência física. “Do contato resultava a alta mortalidade e, por vezes, o genocídio e etnocídio. Hostis, arredios, selvagens e bravos eram alguns dos termos utilizados para se referir aos povos em isolamento. Inexistia legislação específica ou agências estatais que impedissem práticas violentas”, lembra o texto.

Após 1910 foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que promovia expedições de contato sob o comando do marechal Cândido Rondon, com o lema “morrer se for preciso, matar jamais”. A catequese e a violência física deram lugar a um método ‘novo’ e ‘pacífico’ que não causaria danos físicos imediatos aos povos contatados, embora implicasse na perda do controle territorial e no avanço da fronteira econômica, configurando o que alguns autores chamaram de ‘extermínio pacífico’.

“A política indigenista do país estava regulamentada especialmente por dois documentos legais: a Convenção nº. 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, e o Estatuto do Índio, de 1973 (Lei nº. 6.001/1973). Estes textos compunham a base jurídica da doutrina integracionista, que entendia que os povos indígenas deveriam ser “progressivamente integrados à sociedade nacional”. O contato é visto como etapa da construção de um projeto de nação, que não podia tolerar a diversidade cultural em seu interior”, informa a ação do MPF.

O terceiro paradigma se inicia no final da década de 80, com a promulgação da Constituição da República, em 1988, e da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho, em 1989, e perdura até os dias atuais. “O pacto social plural firmado na Constituição de 1988 firmou o respeito à autodeterminação dos povos indígenas como a base a pautar a atuação do Estado. Entende-se que cabe aos povos indígenas a decisão sobre seus destinos, seu modelo de vida e suas prioridades de desenvolvimento. Passa-se a tratar a opção de determinados povos indígenas pelo isolamento como manifestação legítima de um direito à resistência ou ao não contato”.

O isolamento, diz a ação judicial, “não é fruto do acaso, mas uma escolha de vida e, portanto, é manifestação da autodeterminação dos indígenas”. “Daí, portanto, ser preferível falar em povos indígenas em isolamento voluntário do que em simplesmente povos indígenas isolados, que não explicita o isolamento como produto de uma decisão coletiva. Considerando o histórico de violência que marcou as expedições de contato –– com disseminação de epidemias, violência física direta, desterritorialização, trabalho forçado etc ––, muitas vezes resultando em genocídio e etnocídio, determinados povos indígenas optaram por não estabelecer relações com a sociedade envolvente”, explicam os quatro procuradores da República que assinaram a petição.

A ação tramita na 6ª Vara de Justiça Federal em Brasília sob o número 1007395-45.2020.4.01.3400

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