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Médicos relatam pressão para dar remédio sem comprovação científica

Um dos principais exemplos é o uso da cloroquina contra a covid-19, que virou um centro de um debate politizado e notícias falsas nas redes

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HAL GATEWOOD/UNSPLASH
comprimidos em fundo azul
1 de 1 comprimidos em fundo azul - Foto: HAL GATEWOOD/UNSPLASH

Embora pesquisas não apontem benefícios no uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com covid-19, o debate político em torno dos medicamentos – capitaneado, muitas vezes, pelo presidente Jair Bolsonaro – coloca médicos na linha de frente do atendimento sob grande pressão. Segundo pesquisa da Associação Paulista de Medicina, 48,9% de quase 2 mil profissionais entrevistados em todo o País relataram pressões de pacientes ou parentes para prescrever remédios sem comprovação científica. Nas redes sociais, também há relatos de intimidação.

O presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Clóvis Arns, chegou a ser ameaçado de morte nas redes sociais e foi alvo de notícias falsas após a instituição publicar recomendação contra a cloroquina para a covid-19, no dia 17. “Notícias falsas e informações sensacionalistas ou sem comprovação técnica são inimigos que os médicos enfrentam simultaneamente à covid-19”, diz o estudo da Associação Paulista de Medicina (APM).

“Pediram a morte do presidente da SBI nas redes sociais, minha família ficou apavorada, não queria que eu fosse trabalhar”, contou Arns. “Por outro lado, tivemos várias manifestações de apoio de diversas sociedades médicas e do Senado Federal. Queremos ficar longe dessa briga ideológica, nosso objetivo é discutir cientificamente apenas. Fazemos medicina baseada em evidências.”

A intensivista Bruna Lordão, de 32 anos, pediu demissão do Hospital Geral de Vila Penteado, na zona norte de São Paulo, onde trabalhava, após ser chamada de “assassina” por parentes de um paciente, a quem ela se recusou a prescrever cloroquina. “As pessoas não querem saber de pesquisa cientifica”, conta a médica. “Elas querem saber o que o Bolsonaro tomou, o que o (presidente americano Donald) Trump disse”, contou.

“Foram certamente os piores momentos da minha carreira”, disse ela, médica há cinco anos. “Quando você trabalha num pronto-socorro, numa UTI, vai ter muitas baixas, com certeza. Mas nada igual à UTI covid-19: são três, quatro óbitos por dia. Muita gente morrendo, num mesmo lugar, da mesma coisa”, acrescentou Bruna.

A gota d’água para o pedido de demissão, no entanto, veio por causa da cloroquina, quando ela foi dar a notícia da morte de um paciente à família. “Sei que é um momento complicado. Entendo a agonia e a angústia das pessoas, mas começaram a me chamar de assassina porque eu não tinha usado cloroquina no tratamento”, disse.

“As pessoas não entendem que não existe benefício no uso da cloroquina porque o presidente fala que tem benefício. E acreditam piamente nisso. Ninguém entende que a gente não usa justamente porque não tem benefício” afirmou ela, que trabalhou com pacientes da covid-19 desde o início da pandemia.

Testes suspensos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) suspendeu há um mês testes com cloroquina e hidroxicloroquina porque todos os resultados até então apontavam que elas “não reduziam a mortalidade dos pacientes”. Outro grande estudo, o Recovery, foi conduzido pelo Reino Unido em mais de 11 mil pacientes. Também em junho, seus principais coordenadores informaram que “não há efeito benéfico” no uso da hidroxicloroquina.

Na última segunda-feira, estudo feito em 55 hospitais brasileiros e publicado na revista Science confirmou que a cloroquina tampouco funciona em quadros leves e moderados de covid-19. Vários países, incluindo os Estados Unidos, já interromperam o uso experimental dos remédios e suspenderam ensaios clínicos em razão da arritmia cardíaca que o medicamento pode provocar em pacientes graves. Há duas semanas, artigo na revista médica Lancet voltou a apontar riscos dos remédios para o coração com os remédios, originalmente para lúpus e malária.

Na mesma semana, porém, Bolsonaro informou ter covid-19 e foi às redes sociais anunciar que tomava cloroquina, exibindo embalagens do remédio, como numa propaganda. “Aos que torcem contra a hidroxicloroquina, mas não apresentam alternativas, lamento informar que estou muito bem com seu uso e, com a graça de Deus, viverei ainda por muito tempo”, escreveu ele no Twitter.

A politização desse debate, que deveria ser exclusivamente científico, não é só retórica. Levou à queda de dois ministros na pandemia (os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, contrários ao uso do remédio) e tem consequências diretas no atendimento de pacientes, como mostra o levantamento da APM. O próprio Ministério da Saúde passou a recomendar seu uso.

“Pelo menos 69,2% (dos entrevistados) dizem que (notícias falsas ou sensacionalistas) interferem negativamente, pois levam algumas pessoas a minimizar (ou negar) o problema e, assim, a não observar as recomendações de isolamento social e higiene, ou a não procurar os serviços de saúde”, destaca o estudo sa APM. “Outros 48,9% falam que, em virtude das fake news, pacientes/familiares pressionam por tratamentos sem comprovação científica.”

Prescrição de fora. Chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Patrícia Rocco diz que muitos pacientes já chegam ao hospital tomando cloroquina prescrita por médicos particulares.

“Fico muito preocupada com três coisas: pessoas estarem determinando medicamentos na base do “eu acho” e “na minha experiência”, pessoas ficarem criticando estudos clínicos e médicos indicando remédios (sem comprovação) nas redes sociais”, destacou Patrícia, integrante da Academia Nacional de Medicina.

Intimidação parte até dos colegas, diz infectologista
Chefe da infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o médico Alexandre Naime Barbosa afirma que por parte de pacientes e familiares ele costuma ter questionamentos. Mas que pressões costumam vir de outros médicos.

“A pressão parte de profissionais que não estão na linha de frente do combate, são professores ou médicos mais velhos, que não atendem covid-19 e defendem a cloroquina nas redes sociais”, conta Barbosa. “Em geral, eles fazem isso por dois motivos: ou por ingenuidade, porque não estudam, não sabem avaliar um artigo científico, ou por má-fé mesmo; há colegas que têm um engajamento político importante nessa linha.”

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