Médicos Pela Vida: de 209 profissionais, apenas 2 são infectologistas
Lista conta com profissionais de diversas outras especialidades, como dermatologia, oftalmologia e cirurgia plástica
atualizado
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“Somos médicos de todas as especialidades que assistimos pessoas acometidas pela pandemia da Covid-19.” É assim que o grupo Médicos Pela Vida se define. O objetivo dos profissionais é “tratar precocemente” pacientes acometidos pelo coronavírus, com atendimento por WhatsApp, telefone e presencialmente.
Em um manifesto publicado na página oficial, o grupo afirma que um dos seus principais pilares é promover a “profilaxia da Covid-19”, com apoio de medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco e vitaminas D e C. Esses fármacos não têm comprovação científica de efetividade contra o coronavírus.
Um levantamento feito pelo Metrópoles, com base em dados do Conselho Federal de Medicina (CFM) e em informações do próprio Médicos Pela Vida, aponta que o grupo conta com 209 médicos cadastrados. Desses, apenas dois têm registro especializado em infectologia pelo CFM.
A lista conta com profissionais de diversas especialidades, como: oftalmologistas, dermatologistas, cirurgiões plásticos, ginecologistas e até acupunturistas. Especialistas avaliam que o atendimento a pacientes com Covid-19 não precisa ser obrigatoriamente feito por infectologistas, mas condenam o uso de medicamentos sem comprovação de eficácia.
Em fevereiro deste ano, o Médicos Pela Vida ganhou notoriedade após publicar, em diversos jornais de circulação nacional, um anúncio defendendo o uso dos medicamentos do chamado “tratamento precoce”. Além disso, o grupo é alvo de investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado Federal.
O levantamento feito pela reportagem conta com dados coletados até o dia 5 de julho. Na data, a página “Encontre um Médico”, localizada no site do Médicos Pela Vida, contava com 209 nomes listados. A lista mostra o nome completo e o número de cadastro dos profissionais no Conselho Regional de Medicina (CRM).
Especialidades
A pesquisa feita pelo Metrópoles buscou o CRM de cada especialista na página do Conselho Federal de Medicina. A maior parte dos médicos listados, 84 profissionais, não têm especialidades cadastradas no CFM. Além disso, do número total, apenas dois médicos são atuantes em infectologia, segundo o CFM.
A lista conta ainda com 16 ginecologistas; 14 pediatras; 12 clínicos médicos; 11 médicos do trabalho; e 8 oftalmologistas. Há também quatro acupunturistas, dois cirurgiões plásticos e quatro dermatologistas. Alguns dos profissionais têm mais de uma especialidade médica cadastrada no CFM.
Médicos
A reportagem tentou contato com os dois infectologistas listados no site do Médicos Pela Vida. As ligações para o telefone atribuído a Normângela Farias Barareto Chaves, de Maceió (AL), não foram atendidas.
Os contatos com o número ligado ao infectologista Carlos Mello de Capitano, de São Sebastião (SP), também não foram respondidos. Uma publicação de maio de 2020 na página da prefeitura informa que o médico era um dos membros do comitê do Plano Municipal de Contingência para Infecção Humana pela Covid-19 no município. No post, a prefeitura informou que adquiriu caixas de cloroquina para tratamento de Covid.
“A Prefeitura de São Sebastião, por meio do Hospital de Clínicas de São Sebastião (HCSS) e Secretaria de Saúde (Sesau) garantiu a compra do medicamento cloroquina que está em falta no mercado, para tratamento aos pacientes infectados pelo coronavírus. Segundo o setor de Farmácia do HCSS, um lote com 3.320 comprimidos, de 400mg, foi adquirido pelo governo municipal”, informa o texto – do ano passado, mas que segue no site.
Outra publicação, de julho de 2020, informava que a prefeitura recebeu doações do medicamento. A reportagem procurou o município para saber se o remédio ainda é adquirido e utilizado na Secretaria de Saúde local. Também foi questionado se o médico Carlos Mello de Capitano ainda faz parte do comitê de contingência. Não obtivemos retorno até o fechamento deste texto.
Perigo
Doutora em farmácia e professora da Universidade de Brasília (UnB), a especialista Dayani Galato avalia que o atendimento de pacientes de Covid-19 por médicos que não são infectologistas não é, necessariamente, negativo.
“Todo médico é médico, e todos têm uma formação generalista. Se a gente for pensar em uma unidade de saúde, o sistema começa em uma porta de entrada que tem atenção primária nos postos de saúde. Posso ter clínicos gerais, médicos da família. Se eu tiver um estudante de medicina recém formado, por exemplo, ele tem formação mínima para fazer o tratamento de algumas doenças, inclusive de doenças infecciosas. Todo estudante de medicina está preparado para prescrever medicamentos”, analisa.
No entanto, Dayani reitera que a prescrição de medicamentos sem base em evidências científicas é extremamente perigosa. Ela explica que, no início da pandemia de Covid-19, uma série de pesquisadores iniciaram uma prática chamada de reproposição.
“É quando a gente pega medicamentos disponíveis no mercado, que em algum momento no passado mostraram ter atividade contra sintomas, contra vírus parecidos com o Covid, no caso. Eles foram repropostos, pesquisadores foram estudar para ver se funcionam”, explica. Remédios como a hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina foram avaliados como possíveis formas de prevenir a doença causada pelo coronavírus. Nenhum estudo teve resultados satisfatórios.
“Quando a gente usa esses medicamentos sem ter um motivo clínico plausível, não teremos o benefício desse medicamento, colhemos só os efeitos de risco. Quando esses remédios foram repropostos e houve centenas de estudos, nenhuma pesquisa bem elaborada conseguiu comprovar que eles podem prevenir a Covid, ou que uma pessoa com Covid teria um prognóstico melhor”, afirma
A farmacêutica cita que utilização desses medicamentos sem prescrição adequada pode levar até ao óbito. Ela afirma que discursos políticos de incentivo aos remédios e disseminação de fake news foram os principais agravantes do uso do chamado Kit Covid durante a pandemia. Dayani também acredita que o mercado farmacêutico encontrou uma fonte de lucro na venda desses fármacos, o que influenciou na disseminação dos remédios.
“A gente tem cenas muito tristes que aconteceram quando começou a segunda onda [de Covid] no Norte do país. Tinham farmácias com filas imensas de pessoas tentando comprar antibióticos, cloroquina. Tem muita gente que utiliza por crenças ligadas a religião, por crenças próprias pessoais, influenciadas por outras pessoas. A gente tem visto muitos problemas de fake news também. Essa questão da automedicação aumentou muito, o consumo nesse ano foi muito alto. Isso tem muita influência das redes de farmácia, das redes de medicamentos”, analisa.
Dayani reitera que a única maneira de evitar a contaminação por Covid-19 é o seguimento das medidas não farmacológicas. Para a especialista, médicos que receitam medicamentos sem eficácia comprovada colocam em risco a vida da população.
“Isso é um grande erro. O que previne a Covid-19 é vacina, uso de máscaras e higiene das mãos. Medicamentos previnem outras doenças, mas não Covid”, conclui.
O que diz o CFM
Em nota, o Conselho Federal de Medicina disse que “o portador de diploma de medicina reconhecido no Brasil e inscrito nos conselhos de medicina pode fazer diagnósticos e prescrever tratamentos para qualquer doença, independentemente de possuir ou não uma especialidade”.
Além disso, a entidade admitiu que não existem estudos que comprovam a eficácia dos remédios do chamado tratamento precoce contra a Covid-19. No entanto, o CFM entende que médicos e pacientes podem decidir o melhor tratamento para a doença “de forma conjunta”.
“Diante disso, o Conselho Federal de Medicina, por meio de seu parecer 04/2020, entende que o médico na ponta e o paciente, mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, têm autonomia, de forma conjunta, para decidirem qual a melhor opção terapêutica para tratar os casos diagnosticados”, informou o conselho.
“Ou seja, o médico pode ou não prescrever medicamentos que considerar necessários e, por sua vez, o paciente pode acatar ou não o que foi prescrito”, consta na nota enviada ao Metrópoles pela organização.
O conselho afirmou, ainda, que o posicionamento foi “construído a partir de uma criteriosa análise técnica e científica, de forma autônoma e idônea, observando apenas aspectos assistências neste período de pandemia”.
O que diz o Médicos Pela Vida
A reportagem também procurou o grupo Médicos Pela Vida para prestar esclarecimentos sobre o assunto. Assim como o CFM, a entidade afirmou que identificar o quadro clínico de pacientes é atribuição de médicos de qualquer especialidade.
A organização também argumentou que, nos ambulatórios das unidades de saúde do país, o número de infectologistas que atendem pacientes de Covid-19 é pequeno, e que essas pessoas são tratadas por profissionais de diversas áreas.
Sobre o chamado “tratamento precoce”, o grupo afirma que mantém o mesmo posicionamento desde o início: “O que se faz é o que a medicina recomenda para toda e qualquer doença. Seja um câncer, uma pneumonia, seja qualquer virose. É tratar de imediato”.
A nota enviada à reportagem defende que a abordagem sobre o “Kit Covid” é “preconceituosa”. Apesar de citar medicamentos como cloroquina e ivermectina em um abaixo assinado que consta na página oficial, o grupo alega: “Não existe ‘Kit Covid’. Isso é uma falácia. Todo tratamento precisa ser individualizado”.
O Médicos Pela Vida também disse à reportagem que “há estudos em quantidade suficiente em todo o mundo para deixar os médicos à vontade para continuar tratando pacientes”. No entanto, não citou nenhuma pesquisa específica sobre o uso de medicamentos no tratamento contra a Covid.
“Quem desconhece esses estudos, sim, são pessoas negacionistas, que reduzem a discussão científica a nada, que jogam a ciência no lixo e que não estão preocupadas com a vida dos demais, com a vida humana. Há renomados cientistas, inclusive coroados com o Prêmio Nobel, que defendem e recomendam o tratamento imediato”, defendeu o grupo.