Médicos, enfermeiros e ativistas criticam nova Caderneta da Gestante
Ao lançar documento, secretário do Ministério da Saúde incentivou manobras não recomendadas e tidas como prejudiciais à saúde da mulher
atualizado
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As políticas públicas do Ministério da Saúde para atenção a mulheres grávidas e puérperas voltaram a ser criticadas nesta semana, após o secretário de Atenção Primária à Saúde da pasta, o ginecologista Raphael Câmara Parente, relativizar o debate sobre violência obstétrica e incentivar práticas não recomendadas durante o parto. As declarações do secretário foram dadas durante o evento de lançamento da nova Caderneta da Gestante, em 4 de maio.
Além dos comentários feitos pelo gestor, grupos médicos e ativistas criticaram duramente a nova configuração da caderneta, após a constatação da falta de informações importantes sobre a gestação e do tratamento que a caderneta dá a procedimentos não recomendados por profissionais da área. Especialistas ouvidos pelo Metrópoles consideram as falas de Câmara e a nova edição da cartilha como um retrocesso nas ações de atenção a grávidas e puérperas.
“Vamos parar de usar termos que não levam a nada, como violência obstétrica, que só provoca desagregação, coloca a culpa no profissional único, o que não tem o menor sentido”, disse Câmara, durante o evento. O secretário também defendeu a realização da manobra de Kristeller — quando se empurra a barriga da mãe para expulsar o bebê. A prática é condenada por profissionais e considerada violência obstétrica.
Bolsonarista, Câmara é secretário do Ministério da Saúde desde 2020. Ele é defensor das cesarianas e um dos apoiadores do projeto de abstinência sexual como prevenção da gravidez, encampado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Veja a fala de Raphael Câmara contra o debate sobre violência obstétrica:
“É importante eu, como obstetra, falar que, dependendo da situação, e, concordo, em casos excepcionais, eles podem e devem ser feitos, e quem define isso é o médico. Não são leigos, não são militantes, não são ativistas”, disse.
Câmara chegou a dizer que a manobra de Kristeller é “extremamente suave”. “Não é subir em cima da barriga da grávida. Quem inventou isso? É uma manobra extremamente suave, que você, com as duas mãos, na parte de cima da barriga, faz um leve empurrão. Colocam como o médico sentando na barriga da grávida. Isso nunca foi e nunca será a manobra de Kristeller”, afirmou.
Médica, professora da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento, Daphne Rattner explica que o procedimento é altamente perigoso e já deveria ter sido prescrito. Ela exemplifica: “A manobra considera a mulher como um tubo de pasta de dente. Aperta aqui e espirra o bebê do lado de lá. Há relatos de fratura de ossos do bebê, de fratura de costelas da mãe, ruptura do baço, fígado, útero. Algumas mulheres relatam que a dor depois da manobra permanece por vários meses. É inaceitável”, pontua.
Daphne avalia que a atual gestão da Secretaria de Atenção Primária à Saúde ignorou as Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, elaboradas pelo Ministério da Saúde em 2017. “Aparentemente, quem está no MS não leu e não segue essas diretrizes. A impressão é de que as evidências científicas foram dispensadas. É muito sério o que está acontecendo”, avalia.
Sequelas
Vítima de violência obstétrica em 2012, a ativista Gabriela Repolho, cofundadora do coletivo Humaniza, do Amazonas, criticou duramente a nova Caderneta da Gestante. Ao Metrópoles, ela afirmou que o coletivo prepara um ofício que solicita a retificação da fala de Raphael Câmara sobre violência contra mulheres durante o parto. O documento será enviado ao Ministério da Saúde.
A ativista conhece de perto a dor da negligência médica. Ela conta que sofreu pré-eclâmpsia (aumento da pressão arterial durante a gestação) na gravidez da filha. Quando o bebê nasceu, o atendimento à gestante foi atrasado, devido ao prazo de carência do plano de saúde. A demora no atendimento causou complicações, e Gabriela perdeu a visão de um olho.
“Por ser um atendimento de urgência, o hospital tinha que me assistir. Mesmo assim, tive que esperar. Com essa espera, perdi a visão do olho esquerdo, um quadro irreversível. Como se não bastasse a sequela física, fui privada de acompanhante, humilhada. Me senti completamente impotente”, relata.
O caso motivou Gabriela a pesquisar mais sobre violência obstétrica, e, em 2015, ela criou o coletivo Humaniza ao lado de outras mulheres. O grupo atua no atendimento a vítimas e já auxiliou na realização de 170 denúncias de violência obstétrica, tanto no estado do Amazonas quanto em outras regiões.
De acordo com a fundadora do grupo, as maiores queixas são negativa de acompanhante durante o parto (garantida por lei), episiotomia sem anestesia, sutura de pontos sem anestesia, xingamentos, constrangimentos e atraso no atendimento médico.
“A gente tem a expectativa de que representantes do Ministério da Saúde estejam envolvidos na elaboração de políticas públicas para melhorar o atendimento às mulheres, para diminuir as mortes maternas. Se um representante se sente à vontade para falar isso em um evento público, o que esperar daqueles que estão aguardando as mulheres nas maternidades? Abre espaço para que outros profissionais continuem essas práticas”, analisa.
No fim da tarde dessa terça-feira, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) divulgou nota oficial criticando duramente a nova caderneta e pedindo que o material seja “recolhido e reelaborado”. Leia a íntegra:
“O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) alerta profissionais e gestantes sobre as alterações introduzidas na 6ª edição da Caderneta da Gestante, do Ministério da Saúde, que contrariam evidências científicas consolidadas e as diretrizes para parto normal no Brasil (2017), pactuadas pelo próprio Ministério da Saúde com atores técnicos e sociais, inclusive o Cofen, a Federação Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o Conselho Federal de Medicina (CFM), Organização Panamericana da Saúde (OPAS/OMS) e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
A caderneta estimula a prática da episiotomia, corte feito no períneo durante o parto para facilitar a saída do bebê. Essa prática, considerada uma mutilação genital, é contraindicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018.
Outro retrocesso que o documento traz é a indicação, a critério médico, da manobra Kristeller, que consiste em empurrões, apertões e pressões na barriga da gestante para forçar a saída do bebê. Profissionais chegam a subir na barriga da grávida para fazer essas manobras, relacionadas a lesões e desfechos desfavoráveis.
A cartilha promove, ainda, práticas inseguras, como a utilização da amamentação para prevenir gravidez nos primeiros seis meses após o parto. Embora reduza a fertilidade, a amamentação é comprovadamente pouco eficaz como método contraceptivo, devendo ser preferencialmente combinada a outro método. Estudos associam o espaçamento curto entre as gestações a maior risco de mortalidade neonatal e infantil.
Recomendamos que material seja recolhido e reelaborado, de acordo com as evidências científicas disponíveis.
As mulheres brasileiras têm assegurado o direito de recusar intervenções que violem sua integridade. Relativizar violência obstétrica é um retrocesso para a assistência ao parto no Brasil e não contribui para a melhoria dos indicadores de assistência materno-infantil.”
Problemas da nova caderneta
O objetivo da Caderneta da Gestante é servir de instrumento para acompanhamento da mulher nos períodos de gestação, parto e pós-parto. O documento conta com informações médicas e um espaço para que a gestante preencha e registre impressões sobre a gravidez. Especialistas e ativistas acusam o Ministério da Saúde de excluir informações importantes na nova atualização, além de incentivar práticas não recomendadas — como a indicação de cesárea como alternativa de parto, e não como indicação para casos de risco.
Segundo o Ministério da Saúde, mais de 3 milhões de exemplares do documento serão distribuídos a todos os estados e ao Distrito Federal neste ano. O investimento na ação é de R$ 5,7 milhões. A médica Daphne Rattner explica quais foram as principais mudanças no documento e quais riscos as alterações podem trazer às gestantes.
- Episiotomia
Na edição anterior do documento, de 2018, consta a informação de que a episiotomia não deve ser realizada como procedimento de rotina, por causar dor e desconforto após o parto, além de aumentar os riscos de infecção. Na nova atualização, no entanto, os riscos do procedimento não são citados.
“Não se recomenda episiotomia de rotina. A Organização Mundial da Saúde reconhece que haverá indicação para o procedimento, mas em raríssimos casos, como em determinados momentos quando percebe-se que o bebê não está bem e que pode haver prejuízo para sua saúde ou da mãe. A forma como ela é abordada na caderneta é inadequada”, explica Daphne.
- Incentivo à cesariana
Segundo a especialista, a caderneta atual não deixa explícito que a melhor e mais segura indicação de parto é o procedimento vaginal — e que a cesariana deve ser realizada apenas em situações em que há risco para a mulher e o bebê. A última edição do documento atesta que “a cesárea não deve ser uma opção de parto, e sim uma indicação médica”.
Na nova caderneta, apesar de citar alguns riscos da cesariana, o Ministério da Saúde classifica o procedimento como opção de parto, mesmo em situações de baixo risco ou sem indicação médica.
“Consideraria prejudicial à saúde essa mudança de orientação. Temos no Brasil uma mortalidade materna que resiste a várias tentativas de redução. Não estou desqualificando a cesariana, ela é um excelente procedimento quando existe risco na saúde da mulher e da criança. Mas ela tem sido utilizada de maneira leviana. Uma cirurgia por si só agrega risco. Na cesárea, você tem maiores perdas sanguíneas que no parto vaginal e tem uma taxa maior de infecção pós-parto, porque o corte é mais profundo”, ressalta Daphne.
- Outras alterações
A professora também pontua que a nova edição da caderneta exclui informações importantes para gestantes. Uma delas é a retirada dos gráficos de mobilograma, que servem para realizar o acompanhamento dos movimentos do bebê a partir da 34ª semana de gestação. O espaço foi retirado da nova caderneta.
“É um gráfico que a mulher pode fazer para verificar quando o bebê se movimenta. Ela deve monitorar, e, se houver alterações, procurar um serviço de saúde, porque pode indicar algum problema para a criança”, explicou a médica.
Outra indicação retirada da nova caderneta é a indicação para que a gestante realize o exame eletroforese de hemoglobina, que identifica a presença de doença falciforme. “Nós temos uma população que é mais de 50% preta e parda. Nessa população, é muito frequente a anemia falciforme. Essa recomendação para realização de exame foi retirada da caderneta. Era um dado importante para a mulher, pois quanto mais precocemente se identifica a doença, mais rápido consegue se tratar”, conclui.
Veja a íntegra da nova Caderneta da Gestante lançada pelo Ministério da Saúde:
Caderneta Gestante Versão Eletrônica by Metropoles on Scribd
Outro lado
O Metrópoles procurou o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara Parente, para solicitar esclarecimentos sobre as declarações dadas a respeito da manobra de Kristeller e violência obstétrica. O gestor não retornou as ligações. O espaço segue aberto para manifestação.
O Ministério da Saúde também foi procurado para se posicionar sobre o tema. A pasta enviou uma nota à reportagem. Leia na íntegra:
O Ministério da Saúde vem reestruturando o modelo de cuidado materno-infantil no Sistema Único de Saúde (SUS). Com a nova Rede de Atenção Materna e Infantil (Rami), as ações de atenção à saúde das mulheres e crianças no SUS receberão quase o dobro de investimento financeiro, passando de R$ 924 milhões para R$ 1,6 bilhão por ano.
A Caderneta da Gestante é mais uma ação desenvolvida para qualificar a assistência materna e infantil na rede pública. O documento é um importante instrumento de acompanhamento da gestação, parto e pós-parto.
Por fim, a pasta entende que as práticas realizadas durante o parto devem ser debatidas entre a paciente o médico obstetra, de acordo com a indicação de cada caso. A pasta orienta ainda que situações de abuso, desrespeito e maus tratos devem ser denunciadas.
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