Matanças no Brasil e nos EUA expõem banalização de violência armada
Tanto ataques em massa nos EUA quanto excessos e massacres policiais no Brasil têm sentido apenas na própria violência, dizem especialistas
atualizado
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Crimes de ódio e operações policiais que deixam um grande número de mortos são atualmente uma violenta rotina tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e têm em comum o uso indiscriminado de armas de fogo.
A terça-feira (24/5) foi mais um dia de contagem de baleados nos dois países – por aqui, o Ministério Público Federal (MPF) abriu investigação criminal para apurar a legalidade de uma operação realizada na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, que deixou ao menos 22 pessoas mortas. Nos EUA, mais um ataque a tiros a uma escola deixou ao menos 19 mortos, incluindo o atirador.
Ataques armados são hoje um evento comum e naturalizado pelas sociedades dos dois países, avalia o professor João Trajano Sento Sé, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Nos Estados Unidos, ataques a tiros como o ocorrido na escola primária Robb Elementary, no Texas, e violência policial, sobretudo contra negros e outras minorias, se tornaram rotineiras.
No Brasil, o primeiro modelo de atentado não é comum, mas o uso da força descomunal da polícia, principalmente contra negros, é quase cotidiana, assim como a justificativa de que os alvejados seriam todos criminosos.
Os exemplos são numerosos, em especial nas grandes cidades. Em 2019, o carro do músico Evaldo dos Santos Rosa foi alvejado por 80 tiros de militares do Exército no Rio de Janeiro. Em 8 de junho de 2021, a jovem Kathlen Romeu, ainda grávida, foi morta por policiais durante uma operação na favela onde ela morava, também no Rio. A PM alegou que os policiais foram atacados por criminosos.
Em 2021, sob a desculpa de um confronto armado contra o tráfico de drogas, policiais mataram 28 pessoas no ataque que ficou conhecido como Chacina do Jacarezinho. Ffoi o segundo maior banho de sangue do estado do Rio de Janeiro. O maior foi em 2005, quando um grupo de cinco policiais militares, insatisfeitos com o comando da corporação, resolveu sair matando pessoas a esmo, instaurando o caos e o terror na Baixada Fluminense. Foi a Chacina da Baixada.
O professor Gabriel Zacarias, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, explica que esses casos, seja por ataques em massa, seja por força policial, são exemplos de violência autotélica – que encontra sentido na própria violência.
O professor lembra do caso da Chacina de Costa Barros, quando 111 tiros foram disparados contra o carro de cinco jovens, no Rio de Janeiro, em 2015. Ele pontua que, mesmo que o objetivo dos policiais fosse matar suspeitos, poucos tiros bastariam – vale lembrar que não há pena de morte no Brasil, e, se houvesse, dependeria do devido processo judicial. Mais de uma centena, para ele, seria um excesso sem explicação.
De forma semelhante, nos EUA, policiais também aplicam repressão sem controle, principalmente contra negros. O caso George Floyd ficou marcado pela brutalidade do assassinato. O uso da força policial contra um homem desarmado e já imobilizado não tem sentido se não na violência em si, avalia o especialista.
O professor Trajano aponta que, no caso do assassinato de Floyd, a gravação da cena fez o mundo se chocar com a situação. As gravações, tanto de testemunhas quanto da própria polícia, serviram para incentivar o debate sobre a violência policial no país.
No Brasil, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro têm projetos-pilotos para adotar câmeras similares às norte-americanas nas fardas dos oficiais brasileiros. O professor Gabriel Zacarias aponta que essas iniciativas são válidas, mas trazem um risco de espetacularização das cenas. Ele avalia que, conforme os ataques foram deixando de ser descategorizados e passaram a ser um tipo próprio, os agressores tomaram o desejo de aparecer. No caso do Massacre de Buffalo, o assassino transmitiu os assassinatos pela internet ao vivo.
Zacarias relaciona esses eventos à sociedade do espetáculo. Os assassinos expõem os planos para os seus: discutem em fóruns, postam nas redes sociais, tiram fotos com armamentos e coletes e divulgam manifestos. Não há o desejo de extinguir uma raça, ou criar uma organização racista.
Esses homicidas desejam, diz o professor, se tornar heróis e atingir glória momentânea. Inclusive, pontua Zacarias, o assassino de Buffalo não cometeu suicídio, como ocorre em muitos atentados, muito provavelmente para viver a “aclamação”. Para Zacarias, o caso de Buffalo não se tratou apenas de racismo, foi uma justificativa para formas de ataques semelhantes, por grupos extremistas.
O professor João Trajano aponta que a sociedade brasileira e a americana são uma tão racista quanto a outra, mas o Brasil é menos sensível a esses problemas do que os EUA. Por lá, afirma, a discussão já ocorre há mais tempo. Nos anos 1950, movimentos sociais, como os Panteras Negras, e líderes, como Martin Luther King, encabeçavam debates intensos.
Também há, no Brasil, movimentos negros importantes, mas menores em comparação aos americanos. O professor Zacarias aponta que o caso de George Floyd comoveu mais porque, nos Estados Unidos, a segregação é mais clara. No Brasil, avalia ele, disseminou-se a cultura de miscigenação como uma espécie de garantia contra o racismo. Essa ideia aboliu as distinções raciais, que fazem parte da desigualdade econômica – e só tornou mais difícil a aceitação do racismo.
Para João Trajano, dois fatores principais possibilitam os mass shootings nos EUA: uma cultura de associativismo grande no país e o acesso fácil a armas. Essa cultura de pertencimento dá um poder de mobilização muito forte. Grupos supremacistas, racistas, misóginos e xenofóbicos se veem representados em atentados, que, por sua vez, retroalimentam esses mesmos grupos.
Mas o que faz com que o ódio dessas pessoas se materialize em catástrofe é o acesso a armamentos, avalia o especialista. “Uma pessoa com ódio pode fazer muito mal. Uma pessoa com ódio e uma arma pode fazer muito mal e também matar”, explica o professor Trajano.
Nos EUA, o direito à posse de armas é assegurado na Constituição e faz parte da cultura norte-americana, resistindo a várias iniciativas legislativas e judiciárias de imposição de mais limites.
A facilidade para adquirir uma arma de fogo possibilita os assassinatos tão frequentes. Faz parte da cultura estadunidense o uso de armas. Trajano aponta os mitos do cowboy e o uso de revólveres por ele. Essa cultura se espalha pelo mundo, em especial no pós-globalização. Países, como o Brasil, importam essas figuras estéticas.
Ataques em escolas
Um tipo de atentado que já foi importado dos EUA para o Brasil é o school shooting, ou ataque em escolas. Em 2019, na cidade de Suzano, São Paulo, jovens invadiram o colégio em que estudavam, mataram 10 e feriram 11, entre alunos e funcionários. Eles cometeram suicídio após o massacre. Em 2018, na cidade de Medianeira, no Paraná, não houve mortos, mas duas pessoas foram feridas.
Esses dois casos foram inspirados em massacres dos EUA, como o mais famoso deles, em Columbine. Esse evento foi referência por ter sido altamente planejado por dois alunos do fim do ensino médio americano. Nesse massacre, 12 alunos e um professor morreram, e 21 pessoas ficaram feridas. Os dois assassinos sofriam bullying na escola, mas as motivações definitivas não são totalmente claras.
O professor Gabriel Zacarias relembra que, como os mass shootings, os atentados em escolas passaram a ser uma categoria que acabou sendo apropriada por diferentes ideologias. Indivíduos com motivações de misoginia, racismo e supremacismo efetuam esses assassinatos. No início, a motivação era a violência pelo ódio, apenas. Em alguns desses casos, como no de Columbine, os assassinos cometeram suicídio. Mas, conforme Zacarias pontuou, hoje, os assassinos também querem aclamação do seu círculo.
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